“Paixão na criatividade, na seleção, combinação e confeção de ingredientes; e compaixão por não consumir produtos de origem animal, na sua maioria obtidos através de métodos desumanos de criação, transporte e abate”, estão na base das escolhas alimentares de Márcia Soares Gonçalves. Uma mensagem que esta formada em Ciências da Nutrição, expressa na abertura do seu primeiro livro “Receitas com Paixão” (edição ArtePlural).
É a propósito desta abordagem que falamos com Márcia, uma confessa apaixonada pela culinária vegetariana. No terreno, esta nortenha de nascimento centra a sua vida profissional presente na inovação e no desenvolvimento de novos produtos alimentares e na área da nutrição clínica. Márcia está a desenvolver um pão para a população em geral. Mas só dentro de alguns meses nos revela o segredo.
Márcia, o livro “Receitas Com Paixão” nasce de uma adesão sua, há alguns anos, à cozinha vegetariana. O que a motivou nesse sentido?
A minha opção alimentar baseou-se na preocupação com a sustentabilidade ambiental e ao respeito pelo bem estar animal. Foi uma adesão consciente e feita com cuidado. Ainda falta na sociedade a consciência sobre a pegada alimentar que deixamos. Uma realidade que explico no livro.
Ao folhearmos o livro percebemos que o padrão alimentar vegetariano integra um corpo largo de variações. Por exemplo ovolactovegetariano, lactovegetariano, entre outros. Quer explicar-nos?
Há alguma confusão em relação aos termos. Quem estuda nutrição sabe estas diferenças e o impacto que têm na saúde. O termo vegetariano é mais alargado, refere-se a indivíduos que excluem a carne e o pescado mas que podem incluir ovos e lacticínios. Os ovolactovegetarianos incluem ovos e lacticínios na sua mesa, os ovovegetarianos incluem só os ovos, os lactovegetarianos incluem só os lacticínios. Já os vegetarianos estritos, com uma dieta 100% vegetal, como os veganos, excluem todos os produtos de origem animal. E, aqui, as escolhas alimentares só de origem vegetal podem ser muito diferentes.
Este livro também traduz a ideia de que uma alimentação vegetariana não é obrigatoriamente insípida e pobre em variedade, certo?
Sim, os alimentos presentes na gastronomia portuguesa e mesmo aqueles incorporados de outras regiões, permitem-nos uma grande diversidade e variedade à mesa. E, atenção, sem que tenhamos um custo de aquisição elevado. Contudo, a minha experiência pessoal diz-me que a oferta na restauração tradicional ainda não dá resposta à procura de toda essa variedade e riqueza. Vivo perto de Espinho, onde há muita oferta de peixe. Um peixe cozido chega à mesa com batatas e couves também cozidas e nem um tempero. Sem o cuidado de apresentar a batata ou a salada de forma mais apelativa ou colocar o tradicional azeite, o alho.
Os alimentos presentes na gastronomia portuguesa e mesmo aqueles incorporados de outras regiões, permitem-nos uma grande diversidade e variedade à mesa.
Se a Márcia tivesse de eleger os melhores entre os melhores alimentos, quais seriam?
As leguminosas, os cereais integrais, as verduras (porque mais densas nutricionalmente que os restantes vegetais), as ervas aromáticas, porque fornecem compostos fitoquimicos que são essenciais e deviam estar mais presentes na nossa alimentação. Os frutos gordos, por exemplo as amêndoas. Ao escolhermos fontes de gordura, sempre os frutos gordos e as sementes porque também nos chegam com mais proteína e mais minerais e vitaminas, como a E. Para gorduras mais refinadas, prefiro o azeite.
Quais são os produtos que estão a ser muito desmerecidos pelos portugueses?
As leguminosas como o feijão, o grão, as lentilhas, sem dúvida muito esquecidas; os produtos hortícolas, as verduras, em específico as couves. Por exemplo, em Trás-os-Montes integravam a alimentação diária, muito rica.
E em que proporção deviam entrar na nossa alimentação, num individuo adulto?
Uma a duas porções diárias, ou seja, 80 gramas por porção se cozidas e 25 por porção em cru, o que facilmente se incorpora numa base de sopa. Por exemplo, em vez da batata juntar a leguminosa.
No que toca às crianças, qual é a sua perspetiva em relação ao que os pais lhes dão em termos alimentares e o que deveria ser dado?
Essa questão é complexa, os pais têm de se esforçar mais para introduzir hortícolas na alimentação dos filhos, tendo mais cuidado no que respeita aos lanches, que não recebem a devida atenção. Estamos tão focados com o que é servido nas cantinas escolares que nos esquecemos de analisar o que as crianças levam de casa. Nem todas as escolas fornecem o regime de fruta escolar, que é uma medida legislada, ou seja fornecem o leite achocolatado rico em açúcar mas ainda não fornecem fruta às crianças. Os pais têm que educar os filhos neste sentido. Também, e muito importante, o apoio de uma nutricionista nas escolas de forma a incutir a educação alimentar nas crianças, desde cedo.
No seu livro refere alternativas saudáveis às clássicas bolachas nas lancheiras…
Sim, as barrinhas caseiras não têm açúcar adicional, para além do que está naturalmente presente nos alimentos indicados, e por isso constituem um bom snack. Outra sugestão, um iogurte. Para uma criança vegetariana, uma omelete no forno é uma boa opção porque é muito completa em proteína, é saciante. Também em termos de saciedade são importantes alimentos que contenham hidratos de carbono complexos como a aveia, gorduras saudáveis como os frutos gordos, manteigas de barrar são uma forma de integrar os frutos oleaginosos na alimentação da criança.
Estamos tão focados com o que é servido nas cantinas escolares que nos esquecemos de analisar o que as crianças levam de casa.
Partamos do princípio que uma criança nasce no seio de uma família vegetariana. Pode seguir um regime puramente vegetariano?
Sim, uma alimentação 100% vegetariana supre todas as necessidades das crianças em todos os ciclos de vida. Mas é necessário bastante planeamento, e a criança deve ser acompanhada por um profissional de saúde para que se assegure que está tudo bem. Os pais não devem ser demasiado restritivos. Dentro do vegeterianismo existem opções mais restritivas como a macrobiótica que restringe a ingestão de leguminosas, e tal pode levar a uma deficiência no consumo de proteína e pode ocorrer um risco. Os vegetarianos devem estar bem informados e ser devidamente aconselhados pelo profissional de saúde [nutricionista] e acompanhados pelo pediatra. Não há nenhum estudo que refira esta dieta como desvantajosa em crianças.
A Márcia sublinha esta questão dos estudos. No seu livro tem o cuidado de fundamentar tudo aquilo que diz e fornece uma bibliografia para quem estiver interessado em aprofundar os temas. Temos uma obra bem defendida, certo?
Esta questão é pertinente, a população vegetariana está cada vez mais esclarecida e existe muita informação disponível. Muita não quer dizer que seja toda boa. É importante fornecer informação credível. Este livro fornece essa informação credível. Também sugiro algumas fontes, ou seja, manuais em português e informação para crianças em idade escolar. Uma abordagem importante para os pais.
Há pouco referiu que esta alimentação não é onerosa. Também não obriga a confeções demoradas. Quer dar-nos alguns exemplos?
Produzir e preparar em casa sem dúvida que é mais económico do que comprar refeições pré-feitas. Em termos de tempo, podemos maximizar as operações se fizermos comida em maior quantidade e, depois, congelá-la para uma gestão posterior das refeições. Um exemplo são os hambúrgueres de leguminosas que estão sempre à mão. São uma boa sugestão para rentabilizar a questão do tempo. Alimentos como cereais integrais e leguminosas não são caros. Não têm de ser biológicos. São acessíveis e sai mais barato que enlatados.
A Márcia não fecha, naturalmente, o livro a quem, não prescindindo dos produtos de origem animal, procura diversidade nos vegetais. Quer aprofundar?
Segundo os resultados do “Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física” que saíram em 2017, de facto andamos a comer mais carne do que é preconizado na roda dos alimentos. Contudo, gosto de analisar a nível individual. Como em tudo não podemos cair em generalizações. Temos de observar caso a caso. Por exemplo, alguns idosos até beneficiariam com o consumo de mais proteína animal. Mas sim, em geral, devemos incluir mais refeições vegetarianas no nosso dia a dia. Com isso também reduziríamos a pegada ecológica. Só temos a a ganhar.
Curiosamente, o seu livro não exclui as gordura e também os açúcares. Não é contraditório quando falamos de vegetarianismo?
O que ponderei foi aconselhar refeições incluídas numa base diária, evitando nestas os açúcares refinados. Logo na abertura do livro faço recomendações relativamente à ingestão de açúcares e de sal, de acordo com a Organização Mundial de Saúde. No capítulo das sobremesas, e presumo que as pessoas as façam esporadicamente, por exemplo quando alguém faz anos, resolvi não excluir gorduras e açúcares. Isto porque pretendo que o livro seja também utilizado por pessoas que não são vegetarianas.
Quando criei o blogue Compassionate Cuisine e partilhei as receitas, recebi alguns emails de mães com filhos que tinham alergia ao ovo e às proteínas do leite de vaca. Estas mães agradeciam-me porque queriam fazer um bolo bom e apetitoso para o aniversário dos filhos. Assim, encontramos no livro algumas sobremesas com açúcar e outras com a introdução deste com precaução. Por exemplo, as trufas de amendoim, para além do açúcar presente no chocolate, não têm mais nenhum açúcar de adição. A mousse rápida de cacau também não tem açúcar de adição, só aquele que está presente nas tâmaras que também está acompanhado de fibra.
As receitas que estão no livro foram transpostas do seu blogue ou são novidade?
É um misto, algumas são do blogue, mas alteradas. Para além da pasta de iogurte, que é uma base, algumas são semelhantes mas têm outras sugestões na preparação. As fotografias também são novidade. Fui eu que as tirei, não tenho formação na área mas gosto muito de fotografar, já são cinco anos de projeto [risos].
Já em relação às algas, gosto de recordar que já foi em tempos um alimento incorporado na alimentação portuguesa
A Márcia introduz alguns alimentos que habitualmente não estão na nossa mesa, como as algas e a preparação de tofu de diversas formas…
A ideia é inspirada por obras estrangeiras ligadas à alimentação, em concreto por Mark Pittman. Procuro que as pessoas que consomem pela primeira vez estes ingredientes tenham várias opções de preparação e os cuidados a ter, claro. Por isso estão descritos os métodos de drenar e marinar tofu e sugestões para a confeção (grelhar, estufar, assar no forno), de acordo com os atributos dos alimentos. No fundo o objetivo é adaptar os métodos para que as pessoas obtenham os alimentos mais a seu gosto.
A pessoa não tem obrigatoriamente que introduzir esse alimento no seu padrão alimentar, mas é mais uma opção e como explico inicialmente, o tofu é uma opção rica em proteína e cálcio e pode trazer vantagens. O objetivo é motivar e garantir maior sucesso na cozinha.
Já em relação às algas, gosto de recordar que já foi em tempos um alimento incorporado na alimentação portuguesa, nomeadamente na região de Vila do Conde. Até mesmo como elemento para enriquecer os solos agrícolas. As algas são ricas em iodo e podem ser incorporadas na alimentação, por exemplo secas ou tostadas no forno.
Vindo de uma família transmontana e vivendo no norte do país não sente saudades da comida tradicional? Não cai em tentação?
Confesso que, por vezes, as sobremesas deixam-me um bocadinho mais tentada. Cresci num meio onde era comum comer os cozidos substancias, com os enchidos, as carnes. Foram pratos que fizeram parte da minha infância. Contudo não tenho a tentação de os consumir.
Por outro lado, há dias fui a um restaurante 100% vegetariano e apresentaram-me uma tábua de enchidos vegetarianos. Fiquei surpreendida. Não gosto destes sabores que surgem como substitutos. Por outro lado tenho de perceber que encontram mercado, pessoas que os procuram. Pessoalmente gosto das coisas como elas são. Não vou chamar lasanha a um alimento que nada tem a ver com esta.
Márcia, como é ter este seu primeiro livro nas mãos?
Na fase de produção do livro era muito diferente olhar para as provas. Quando temos o livro físico temos o sentimento de missão cumprida. Também nos traz a responsabilidade da exposição pública e, após alguns anos a lançar artigos no blogue, tenho um compromisso para com os leitores.
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