Ainda criança foi-me oferecida uma antologia de contos. Uma obra de grande formato, de capa dura, papel encorpado e belamente ilustrada. A qualidade daquele livro nunca conseguiu superar na forma a apreensão e desconforto que o conteúdo das histórias nele encerradas me provocavam. Não há como ficar indiferente à narrativa de um nobre de barba azul que proíbe a jovem esposa de entrar numa das divisões da sua sombria casa. Sabendo o leitor de antemão que as seis anteriores mulheres desapareceram. Ou de não temer pela vida da criança que se embrenha na floresta, mundo onde habita nas sombras um enorme e feroz canídeo. Não o sabia eu na altura, mas aquelas páginas onde lia o “Barba Azul”, o “Capuchinho Vermelho”, ou o “Gato das Botas”, eram depositárias de uma centenária tradição europeia de contos que incluía autores como Madame de Beaumont, Charles Perrault e os irmãos Jacob e Wilhelm Grimm.
À época não poderia imaginar que quase quatro dezenas de anos volvidos, seria um dia confrontado, à mesa do jantar, no restaurante de uma instituição de ensino no Estoril, com os temores que estas narrativas sombrias me imprimiram. Para mais quando sou convidado a abandonar o ambiente quente e ensolarado de um fim de tarde de primavera e a perpassar a porta para uma câmara fria escurecida com pesados reposteiros. Um lugar onde ardem dezenas de velas em outros tantos castiçais e a música do compositor francês Erik Satie ecoa melancólica na escuridão. Uma câmara com uma mesa de 12 metros, 25 lugares marcados e onde não sou poupado à companhia de um esqueleto à escala real e ao convívio com uma suína cabeça toda ela expelindo fumos. Dentro de momentos serei convidado a degustar crocantes de sangue, tártaros envolvidos em alcachofras e, inclusivamente, a aguardar de olhos vendados que chegue à mesa uma laje onde é servido o prato principal.
Agrada-me, contudo, saber que sou protagonista de um contexto cénico engendrado há meses no âmbito da cadeira de Food Design. Uma noite em torno da cozinha e das artes onde têm um papel central docentes e, principalmente, os alunos do Mestrado em Inovação em Artes Culinárias da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril (ESHTE). A sala soturna onde se desenrolarão as próximas duas horas de jantar é o Descobertas Restaurante, hoje preparado a preceito para receber um momento de homenagem a uma autora britânica, Angela Olive Carter (1940-1992), que olhou para a grande tradição contista europeia e a reinterpretou e adaptou à sua obra. No caso presente, olhamos e provamos a antologia “The Bloody Chamber” (1979). Páginas que os alunos da ESHTE bem sabem como são desafiantes. Leram-nas integralmente, discutiram-nas com o professor Ricardo Bonacho, trabalharam-nas com chefs. E, finalmente, traduziram-nas em seis momentos de degustação para uma linguagem universal, a da cozinha.
Neste jantar de maio “Angela Carter. Appetites beyond the grasp of imagination”, todos os pormenores contam até o número de lugares à mesa. Vinte e cinco, recordando que neste 2017 volve um quarto de século sobre a morte da autora (40 sobre a sua visita a Portugal). Um convívio gastronómico integrado no âmbito mais alargado do encontro académico e cultural “Receiving /Perceiving Angela Carter”que decorreu de 23 a 30 de maio na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Na próxima página levantamos o véu sobre este jantar.
É chegado o primeiro momento deste jantar. Aos comensais é lançado um desafio em jeito de adágio popular. “Comer gato por lebre”. Ao prato, uma peça de madeira, chega-nos um chapéu de abas largas. Sob este, duas coxinhas. Soltam-se as palavras de Maria José Pires e Cláudia Viegas, coordenadoras do Mestrado em Inovação em Artes Culinárias e nossas anfitriãs neste serão: “Afável no primeiro ronronar, traiçoeiro na segunda dentada. Esta primeira sugestão inspira-se no conto o ´Gato das Botas`, um vigarista e burlão”. Mote para fazer deste prato um embuste. As coxinhas, onde é suposto encontrarmos carne de frango, acolhem, carne de coelho (aqui está a lebre) e um chutney de couve-roxa o que confere um aspeto sanguíneo. Esta segunda coxinha prima pelo picante, permitindo perceber o trocadilho lançado com o início da prova. Ou seja, primeiro ronrona, suave, depois atraiçoa as expetativas e arde. E o meu palato foi enganado.
Momento dois e com ele chega à mesa o “Barba Azul”. “Bloody Chamber”, o conto principal do livro em apreço de Carter, inspira um prato que procura ser fiel ao carácter perturbador da narrativa. Uma história que Angela Carter situa no domínio da inocência perdida, no futuro condenado de uma jovem às mãos de um homem brutal. Sou convidado a mergulhar (com algum desconforto, há que admiti-lo) os talheres no seio de uma alcachofra, um símbolo de fertilidade. Dentro, um coração de tártaro de atum, encimado por uma gema maturada e salpicado com algumas pedras de sal. Ingredientes a cru, num convite a degustar e a cogitar sobre esta brutal câmara sangrenta de Angela Carter.
Capítulo três, o mesmo é dizer o prato principal, aqui intitulado “All claws and teeth, she strikes, she gorges”. A música desce de tom, sou vendado, perco horizonte visual, apuro os restantes sentidos. Escuto atentamente as explicações de Maria José Pires e Cláudia Viegas. Vou provar o conto “The lady of the house of love”, história em torno de uma vampirela, de um dilema entre sobreviver ingerindo sangue ou poupar, por amor, a vida de um homem em prejuízo próprio da protagonista. Aqui, no Restaurante Descobertas, corre o sangue. Cai a venda e vejo-me frente à recriação da campa de Angela Carter. É sobre este mármore frio que irei comer este sangue quente. Tal como o conto, complexo, este terceiro momento do jantar é um desafio. Sobre a laje cabe a tapioca hidratada com sangue, a beterraba, o gel e pó de sangue, um crocante de bacon, a barriga de porco cozinhada durante 16 horas a baixa temperatura, o pó de sangue. Um prato que nos deixa frente a vários dilemas. Por onde começar? Como superar a aversão ao sangue? Faço-me diletante e assumo uma atitude errática sobre a laje. Provo a barriga de porco, tenra, curada em sal e açúcar durante dois dias. Alterno-a com as bolinhas de gel de beterraba, sangue, cebola, alho e cominhos. Atrevo-me no pó de sangue produzido a partir de uma paste desidratada que junta carvão ativado. Salto para o bacon crocante, numa alusão às carnes fumadas e junto-lhe um pouco de mousse de sangue. Não me tornarei um vampiro, mas percebo o potencial neste ingrediente que normalmente só associo à cabidela. Aqui harmonizado, tal como todo o jantar, com um tinto do produtor de Torres Vedras, Vale da Capucha.
Na próxima página encontra três sobremesas de conto de fadas
Últimos três capítulos, todos eles doces. Açúcar para amenizar uma noite servida a contos góticos pouco light e definitivamente longe das latitudes da literatura cor-de-rosa. Primeira sobremesa, com o título “Irremediable apetites”. Como mote, “leva aqui o doce tormento da vida e lembre-se: não fale com estranhos no caminho!”. Expressão que espicaça o cantinho da minha memória que guarda a história do Capuchinho Vermelho. Um conto aqui diverso da “história da carochinha” dourada pelo cinema. Angela Carter na sua narrativa, carregada de sexualidade, não facilita a vida à menina e à avó, faz a apologia do mundo feroz do lobo e torna-o um lobisomem. Aqui, na sala longe da floresta, escuto a história que sustenta esta sobremesa e mergulho a colher num bolo com tanto de sanguinolento como de aveludado, acompanhando um crumble e frutos vermelhos.
Segunda sobremesa, “The bounty of the woodland!”, a abrir com mais uma frase enigmática. “Doce ilusão, o calor que nele encontrou esconde a prisão amarga e fria do seu coração”. O retorno, uma vez mais, à perda de inocência, à floresta, a uma criatura fantástica que dela se alimenta, à criança cativa que encontra uma estratégia de sobrevivência. Sobre a mesa, servido como todo o restante jantar pelos alunos da ESHTE, uma peça de madeira. Aqui tenho a floresta e, sobre ela, chocolate branco com menta em jeito de musgo. Serve de cama a um sorvete de pipoca todo ele brancura que se desfaz num coração de calda de frutos vermelhos a cada colherada.
Último capítulo, um doce momento de síntese de toda a obra de Angela Carter. “A suspension of reality”, um prato em formato XXL, um convite a todos os presentes neste jantar “a acreditarem que os contos de fadas ainda guardam surpresas”. É descerrada uma sobremesa com mais de um metro quadrado. Sobre este cemitério comestível, há cartas, chaves, pedras preciosas, flores, sangue. Docentes e alunos do Mestrado em Inovação em Artes Culinárias encerram e instigam os 25 convivas a literalmente comer palavras e saborear literatura, seguindo as pistas deixadas por Angela Carter. Caminhos onde os alunos da ESHTE souberam entrar neste serão, para sair no outro extremo da floresta com louvor e distinção.
Há um ano a Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril foi palco de um outro jantar multissensorial subordinado ao tema “Saudade Portuguesa”. Iniciativa que destacávamos na altura.
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