“Proponho que comece a pensar em si como um corpo cheio de microrganismos com que tem estabelecida uma relação muito amigável, para bem de ambos. Em número, os microrganismos da barriga superam a quantidade das nossas células, portanto, deve imaginar-se como um ‘superorganismo’ em que se misturam características, é claro, humanas, mas também microbianas”. Com estas palavras retiradas do prólogo ao mais recente livro da médica espanhola María Dolores de la Puerta Soler, estão feitas as apresentações entre o mundo microbiano que nos habita e nós, humanos, encarados como Arcas de Noé de cosmos infinitesimal. No livro Um intestino feliz (edição HarperCollins), a autora traça uma relação para muitos de nós insuspeita, a da ligação estreita entre a felicidade e as bactérias do nosso intestino. De acordo com a médica, uma boa microbiota ajuda a ter uma boa saúde física e psicológica.
Nas páginas do livro que traz como subtítulo as palavras Como a microbiota melhora a sua saúde mental e o ajuda a controlar as emoções, percebemos o que é realmente a microbiota, como podemos cuidar dela e que hábitos são necessários para a equilibrar através da alimentação, do exercício e do sono, assim como o impacto que pode ter na digestão, no stresse ou na inflamação. Temas que trazemos para esta conversa com Dolores de la Puerta. Um diálogo entre Lisboa e Madrid que tem sempre presente uma das frases que inaugura o livro agora nos escaparates nacionais: “Estamos enganados quando pensamos que vivemos na era do Homem, hoje e sempre, vivemos na era das bactérias. É absolutamente relevante sermos conscientes de que não estamos sozinhos, de que não vivemos sozinhos ou talvez possamos dizer… que não somos apenas humanos.”
Escreve no seu livro que a descoberta da microbiota mudou por completo a sua vida profissional. O que tem de tão interessante o estudo da microbiota?
No meu caso prendeu-se à necessidade de dar resposta a um problema médico para o qual a medicina convencional, há 24 anos, não encontrava uma saída. Encontrei no estudo da microbiota o caminho para a solução de um problema imunitário de uma pessoa da minha família. A única solução que me era apresentada pela medicina apontava para os fármacos. Quis procurar outras opções e encontrei na microbiota a solução do problema. A partir dai pareceu-me ser um assunto tão importante que me levou à decisão de mudar o meu caminho profissional. Era cirurgiã e mudei a minha atividade profissional, dedicando-me a partir daquele momento, exclusivamente, à microbiota, ao seu estudo e, em consulta, a acompanhar pacientes com todo o tipo de desordens relacionadas com a microbiota.
Também no seu livro refere que vivemos da era das bactérias. No caso concreto, as bactérias que vivem em nós. Que microrganismos são estes?
O nosso corpo, à exceção do tecido conjuntivo do olho, é colonizado por microrganismos de todo o tipo. Dentro e fora do corpo encontra, entre outros, bactérias, vírus, fungos, leveduras, protozoários, arqueobactérias. De todos estes grupos microbianos que vivem no nosso corpo, o mais importante e também o mais numeroso, o mais rico e diverso, prende-se com a microbiota intestinal. Desta forma, temos muitos biliões de microrganismos a viver em perfeito equilíbrio entre eles e connosco. Conhecemos a microbiota que vive em cada um de nós como Microbiota Comensal e é tão pessoal e individual de umas pessoas para outras como uma impressão digital.
Podemos afirmar que abrigamos um ecossistema.
É realmente um ecossistema. De facto, considera-se que a microbiota intestinal, dadas as características que referi, é o ecossistema mais rico e mais diverso da Terra. Em número, os microrganismos da barriga superam a quantidade das nossas células.
Como em todos os ecossistemas há elementos positivos e negativos. Para que exista o equilíbrio que refere existem comportamentos que devemos assumir?
Claro. Como referi esse ecossistema vive em equilíbrio e este depende, basicamente, dos grupos de microbiota que se encarregam de manter a estabilidade do ecossistema intestinal. No decorrer das nossas vidas há fatores que podem alterar a microbiota, como a toma de antibióticos, o stresse, as gastroenterites, entres outros. Fatores que influem sobre a microbiota de estabilização ou microbiota de homeostase. Se há essa desordem, perde-se o equilíbrio do ecossistema o que favorece o excesso de crescimento de microrganismos que deveriam estar somente em menor quantidade na microbiota normal.
O que acontece quando se dá o desequilibro que refere?
Pode favorecer o desenvolvimento de doenças, porque as moléculas produzidas pelos microrganismos que referi são pro-inflamatórias, são alcalinizantes, atravessam a barreira hematoencefálica e produzem também neuroinflamação. Acresce que sobrecarregam a função hepática, alteram a sinalização do sistema imunitário. Ou seja, a perda do equilíbrio de que falamos e o excesso de crescimento de microrganismos patógenos produz o aparecimento da doença associada à microbiota.
Ou seja, é importante manter a microbiota saudável porque a sua função implica a saúde do organismo a todos os níveis. Não só a saúde digestiva, dada a microbiota do intestino, como também influi na saúde do nosso sistema imunitário, do nosso sistema endócrino, do metabolismo, do eixo intestino-cérebro, a nível central, de doenças neurológicas, do desenvolvimento neurológico das crianças, da patologia neurodegenerativa nos mais velhos. Em qualquer aspeto da nossa saúde, a microbiota tem sempre um papel maior ou menor. Por vezes é a única responsável, outras vezes o seu papel é colateral, a par de outras circunstâncias que desenvolvem a doença.
Referiu há pouco a toma de antibióticos. É uma questão que está a suscitar muito debate em Portugal devido à toma excessiva destes fármacos...
Os antibióticos são necessários sempre que, efetivamente, há a necessidade de os tomar. O que se passa é que sempre que tomamos antibióticos, a microbiota de estabilização desorganiza-se. Desta forma, há que cuidar da estabilização da microbiota durante e após o tratamento com um antibiótico através da ingestão de probióticos.
Há alterações da microbiota ao longo da vida?
Sim. A microbiota exerce a sua influência de diferentes formas ao longo da vida e, naturalmente, permite-nos viver com saúde ou, por outro lado, vir a desenvolver doenças. Diria que o momento mais importante são os primeiros anos de vida. O ecossistema intestinal constrói-se no primeiro ano de vida e estabiliza-se e consolida-se numa janela de tempo muito curta, entre os três e os cinco anos de idade. Desta forma, tudo o que ocorre nesta janela de tempo vai marcar a nossa microbiota de adultos. Pode ficar afetada se nos primeiros momentos da vida houver um problema com a construção da microbiota devido, por exemplo, a ingestão de leite de fórmula em vez de leite materno [Estima-se que entre 25 a 30% da microbiota do recém-nascido provém do leite materno] ou a toma antibióticos por parte do bebé. O que tem de bom é a microbiota ser um órgão vivo. Podemos atuar sobre ele para reparar qualquer desordem que apresente.
Falou há pouco na homeostase intestinal, questão que também detalha no seu livro. Quer explicar-nos do que se trata?
A homeostase é a palavra que nós, médicos, utilizamos quando nos referimos a equilíbrio. Homeostase implica, quando falamos de microbiota e olhamos para o ecossistema intestinal, do equilíbrio entre as bactérias e também ao equilíbrio da microbiota com o nosso corpo.
O estilo de vida que levamos tem um papel importante no equilíbrio da nossa microbiota?
Claro. O nosso estilo de vida permite-nos manter uma microbiota saudável ou, pelo contrário, favorece a sua desordem. Neste aspeto, a alimentação é um dos pilares mais importantes para mantermos uma microbiota saudável. Os alimentos ultraprocessados, os alimentos refinados, os aditivos, os conservantes, os corantes, contribuem para um cenário pro-inflamatório.
Há alimentos proibidos quando falamos de uma microbiota saudável?
Sim, há alimentos proibidos e alimentos que devemos ingerir. Entre os alimentos proibidos, como referi anteriormente, devemos evitar os que contêm aditivos, conservantes, corantes, alimentos processados e ultraprocessados e todos os refinados e pré-cozinhados. Há que privilegiar alimentos frescos e há que privilegiar cozinharmos as nossas refeições. A microbiota gosta especialmente de alimentos com fibra de qualidade, hidratos de carbono de cadeia longa, sobretudo os tubérculos como a batata, a batata-doce ou a mandioca. Por exemplo cozinhados e ingeridos a frio no dia seguinte. A banana também fornece amido, assim como algumas leguminosas e o arroz. Também os alimentos fermentados, lácteos ou não lácteos são benéficos. Nos lácteos, há a referir o iogurte, a coalhada e o queijo. Nos alimentos fermentados não lácteos posso referir o kefir de água, o chucrute, o tempeh, o miso. Os polifenóis também são aconselhados e encontramo-los em alimentos muito acessíveis como os frutos vermelhos, a romã, o azeite, os cogumelos, o cacau, o chá e o café. Basicamente, estamos a falar de uma dieta completa e variada, sem grandes restrições, porque a microbiota alimenta-se do mesmo que nós. Se fazemos dietas restritivas, também estamos a favorecer a restrição no nosso grupo microbiano. Na prática, temos de diversificar a dieta para diversificar a nossa microbiota.
As bactérias do intestino têm influência no nosso equilíbrio psicológico? No seu livro refere, inclusivamente, o eixo microbiota-intestino-cérebro como uma autoestrada dos sentimentos.
Uma das conexões da atividade da microbiota com o nosso corpo prende-se com o eixo intestino-cérebro. É a comunicação que tem a microbiota com o sistema nervoso. E, neste aspeto, há várias questões importantes. O sistema nervoso central constitui-se com o encéfalo e a médula espinal. Mas também temos um sistema nervoso que ‘habita’ no nosso intestino. Ali, há células semelhantes aos neurónios que encontramos no cérebro. A nossa microbiota está em diálogo com esses ‘neurónios’ do intestino.E esses ‘neurónios’ têm um papel motor que permite movimentos automáticos, por exemplo, o trânsito intestinal, ou também são ‘neurónios’ sensitivos que nos permitem processar sensações, sentimentos, pensamentos, iguais ao que temos a nível central, com neurónios motores e sensitivos. O que é o mais interessante é o que a microbiota influi na nossa psicologia. Acresce que no contacto direto, microbiota neuronal intestinal, também há o nervo que sai do cérebro e que vai direto ao intestino. Trata-se do nervo vago. É uma comunicação bidirecional na sua atividade entre o intestino e o cérebro. E o que é mais interessante no nervo vago é que 80% da sua atividade é sensitiva e 20% é motora. É um segundo caminho de comunicação afetiva e emocional para nos ajudar a perceber, a nível central, as circunstâncias que estão a ocorrer ao nível do intestino. Desta forma, emoções, pensamentos, sentimentos resultam de uma comunicação muito viva, em tempo real e permanente entre o intestino e o cérebro. E isto está mediado, em grande parte, pela microbiota.
A microbiota está ligada à construção da personalidade?
Sim. Nas crianças sempre que há desordens de microbiota, há impacto a nível emocional. No meu livro refiro um estudo levado a cabo nos Estados Unidos. Esse estudo, que durou bastantes anos, olhou para uma população com alguns milhares de pessoas saudáveis. Durante o tempo em que decorreu o estudo, fez-se abordagens de personalidade e à microbiota. Os resultados apontaram que as pessoas com uma personalidade mais generosa e empática apresentavam um padrão de microbiota um pouco diferente das pessoas que tinham uma personalidade mais rancorosa ou invejosa, com pensamentos mais negativos. Percebeu-se que havia bactérias específicas em crescimento excessivo ou em défice nuns e noutros grupos. O ecossistema mais rico e diverso correspondia às personalidades com mais ‘luz’, mais generosas e bondosas. As pessoas mais ‘cinzentas’ tinham microbiotas menos diversas. Acresce que havia bactérias individuais que sobressaíam num e noutro grupo. Mas, o que mais chamou a atenção foi a diversidade da microbiota associada a um e ao outro tipo de personalidade.
Podemos dizer que há regimes de alimentação que são mais propícios a uma microbiota saudável. Podemos incluir nesse âmbito o vegetarianismo e o veganismo ou a dieta mediterrânea, por exemplo, também com proteína animal?
Claro. As proteínas animais também são imprescindíveis, porque delas obtemos os aminoácidos. A microbiota vive numa película de muco que cobre a parede interior do intestino. Desta forma, para a estabilidade desta película de muco e do próprio epitélio intestinal necessitamos de aminoácidos. E, para tal, necessitamos das proteínas. Se não houver nenhum problema e tudo funcionar perfeitamente, a proteína vegetal será suficiente. Mas, se há uma desordem na homeostase do intestino, desordem da microbiota, inflamação ou aumento de permeabilidade intestinal, haverá a necessidade de aminoácidos que contribuem para uma recuperação. E, aí, é onde entra a proteína animal. Com os meus pacientes vegetarianos ou veganos, quando estão em tratamento, proponho-lhes a possibilidade de introduzirem na dieta a proteína animal porque, muitas vezes, ajuda a recuperar o epitélio intestinal. Nem sempre é imprescindível, mas por vezes é necessário proceder assim.
Quais são os principais queixas que lhe levam os seus pacientes?
Os sintomas de desordem da microbiota ou de alteração de permeabilidade ou inflamação podem ser digestivos, digestões ‘pesadas’, inchaço abdominal, desconforto, gases, diarreia, obstipação. Podem ser também outras situações, como enxaquecas, problemas de pele, eczemas, pele atópica, quadros de fadiga, problemas de sono, stresse.
Gostaria de perceber que trabalho faz com seus pacientes no sentido de entender a origem das queixas que lhe apresentam.
Claro. Quando começo a trabalhar com um paciente procuro perceber a sua história clínica. E, nesse sentido, pregunto-lhe acerca das suas doenças, se está a tomar fármacos, antecedentes pessoais, antecedentes familiares. Inquiro sobre os ritmos de sono, os hábitos alimentares, os horários, os seus ritmos circadianos, o nível de stresse. Ou seja, faço um estudo muito completo de vida e do estilo de vida. Por exemplo, pergunto se faz exercício, se é sedentário, que tipo de exercício faz e quantas horas por semana. Neste contexto é muito importante que o paciente também coopere, que mude o seu estilo de vida, independentemente daquilo que eu lhe possa prescrever. Muitas vezes, além da história clínica, peço também um estudo laboratorial da microbiota do paciente.
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