Se avaliarmos o percurso da Chef Zélia Santos, a primeira mulher a liderar um restaurante do icónico Belmond Reid’s Palace, na gastronomia, determinação é um dos adjetivos que sobressai. Afinal, falamos de um setor ainda predominantemente dominado por homens e onde as mulheres têm de trabalhar mais para provarem o seu valor.

Natural da Madeira, começou a sua formação na Escola Profissional de Hotelaria e Turismo, conciliando inicialmente a paixão pela cozinha com um percurso na contabilidade. No entanto, foi o "bichinho" da gastronomia que prevaleceu, conduzindo-a a uma carreira de 18 anos no histórico hotel madeirense.

Hoje, lidera o Brisa do Mar, um restaurante sazonal. Falámos com a Chef e nesta conversa refletimos sobre as desigualdades que ainda existem no mundo da alta cozinha, como é, muitas vezes, ser a única mulher dentro de uma equipa, mas também da importância da saúde mental e de desperdício zero.

Quando descobriu a sua paixão pela cozinha?

Foi muito cedo. Quando terminei o 9ª ano tínhamos a opção de Ensino Profissional na Escola Profissional de Hotelaria e Turismo. Tinha mais ou menos 16 anos quando fui estudar cozinha.

Na Madeira?

Sempre na Madeira. Foram três anos lá e depois tive logo colocação no hotel Reid’s.

E nunca pensou seguir outro caminho?

Sim, entretanto, fiz um curso de contabilidade durante três anos. Aliás, o meu estágio também foi no Reid’s, na parte de contabilidade. Mas depois o bichinho da cozinha falou mais alto.

Porquê?

A contabilidade era uma paixão antiga. Era aquilo: “Tenho mesmo de fazer para ver se gosto”. E aí a cozinha sobrepôs-se, já lá vão 18 anos.

Como foi o seu percurso profissional?

No início, estive quatro anos no Le Faunes, o restaurante francês, que deu lugar ao William, o nosso restaurante com estrela Michelin. Depois estive no [Villa] Cipriani durante mais ou menos 12 anos, um restaurante italiano. Nos últimos três anos, era o braço direito do Chef.

Que significado tem para si ser a primeira mulher a liderar a cozinha de um restaurante do Belmond Reid’s Palace, um hotel com mais de 130 anos de história?

Muito orgulho. Orgulho em mim, pelo facto de ser mulher e ter conseguido. Porque infelizmente ainda vivemos num mundo em que existe um pouco de discriminação. Nós podemos ser tão boas quanto os homens, mas se tivermos de dar a posição, damos sempre a eles. Portanto, ter esta posição de chefia é uma vitória.

Chef Zélia Santos, a primeira mulher a liderar um restaurante no Belmond Reid’s Palace. Num setor dominado por homens, “as mulheres não têm de provar que são iguais. Têm de provar que são melhores”
Chef Zélia Santos, a primeira mulher a liderar um restaurante no Belmond Reid’s Palace. Num setor dominado por homens, “as mulheres não têm de provar que são iguais. Têm de provar que são melhores” créditos: Divulgação

Este marco pode inspirar outras mulheres na gastronomia, numa área historicamente dominada por homens?

Sem dúvida, é provar que conseguimos. No início, existe aquela fase de adaptação, o medo, obviamente. “E se falhar?”, “E se realmente não conseguir?” Mas tem corrido muito bem e ser escolhida foi sem dúvida: "Ok, trabalhei para isto. Estão a reconhecer o meu trabalho." Ainda bem que não desisti. Sem dúvida, uma valorização. Tive o prazer de conhecer a Chef Marlene, no início do ano [2024]. Esteve num evento no hotel, e adorei falar com ela, o facto de ela ser Chef. Deu-me conselhos. E agora que eu também sou Chef quero também dar um bom exemplo, e um sinal [a outras mulheres] de que: “Olha, eu consegui! Vocês também conseguem.”

Uma mulher não está em pé de igualdade com um homem dentro de uma cozinha. A que se deve?

Obviamente, e isto é o machismo a falar, nós não podemos ter o mesmo comportamento que eles têm. Para ter o respeito que tenho hoje dentro do hotel tive de criar muitas barreiras, tive de delinear um comportamento.

E quando eu digo criar barreiras, é pelo facto de os homens brincarem mais uns com os outros e as mulheres não podem ter esse comportamento na cozinha. Porque se nós dermos mais atenção, podemos estar a abrir caminho para outros comportamentos. E ser mulher e ter uma posição de chefia [obriga-nos] a criar muitas barreiras. Eu costumo dizer que tenho uma cara muito fechada, mas não é à toa. É porque tive de o fazer.

Em que sentido?

Quando fui para o Cipriani, eram 15 homens, entre cozinha e restaurante. Eu era a única mulher. Então estar ali num ambiente que é só de homens que falam de futebol, mulheres, carros… Tem de ser um processo de integração mais: “Ok, vamos falar sobre isto, mas tenho de me dar ao respeito para ser respeitada.” É isso que quero dizer quando digo criar barreiras. Sem prejudicar ninguém, sem me prejudicar, mas não podemos ter o mesmo comportamento que eles têm.

Há uma certa dureza que as mulheres têm de assumir?

Eu tive muito apoio dos outros chefs do hotel, sem dúvida que me têm apoiado muito durante esta primeira temporada do Brisa do Mar. Aliás, deixo um especial agradecimento a eles porque têm sido incansáveis comigo. Mas mantenho sempre o mesmo comportamento. Não me posso exceder ali, porque depois vou acabar por perder o respeito que andei a construir este tempo todo. Aliás, a minha equipa atualmente é só homens. São três homens que me respeitam imenso.

E tem trabalhado com mulheres?

Entretanto, começaram a entrar raparigas para o restaurante, nestes últimos dois anos.

Há 18 anos não se viam tantas mulheres nas cozinhas?

É uma profissão que exige muita flexibilidade, muito trabalho. E realmente quando comecei eram poucas mulheres. Por isso é que digo: As que estão são as fortes!

As mulheres têm de provar mais o seu valor para conseguirem prosseguir esta carreira?

Sim. As mulheres não têm de provar que são iguais. Têm de provar que são melhores.

Temos de ser extraordinárias.

Sim, mas também parte de quem nos escolhe. Isto é um aparte, e não teve nada a ver comigo, mas quando se escolhe uma mulher para chefia [pensa-se]: “Ah, ela pode engravidar. Ela vai ter um filho doente”. E isso ainda pesa um bocado, se bem que já está a mudar, e ainda bem. Porque um homem também já fica em casa com a criança. Ainda bem que está a mudar porque é preciso mudar.

Também é importante que os homens apoiem as mulheres neste sentido.

Sim! No outro dia estava a ver uma reportagem e alguém disse: “Ah, o meu marido ajuda-me muito.” Não, ele não ajuda! Ele faz a parte dele.

Ainda há muito essa conversa vinda das mulheres.

Pois, mas felizmente já está a mudar e já sinto isso. Como profissional, como mulher também. E ainda bem.

Chef Zélia Santos, a primeira mulher a liderar um restaurante no Belmond Reid’s Palace. Num setor dominado por homens, “as mulheres não têm de provar que são iguais. Têm de provar que são melhores”
Chef Zélia Santos, a primeira mulher a liderar um restaurante no Belmond Reid’s Palace. Num setor dominado por homens, “as mulheres não têm de provar que são iguais. Têm de provar que são melhores” Vista do restaurante Brisa do Mar. créditos: Divulgação

Falou da Chef Marlene Vieira e apesar de haver várias chefs talentosas em Portugal, não existem mulheres com estrelas Michelin no país. Como acha que se pode promover mais reconhecimento para as mulheres na alta cozinha?

Aliás, as expectativas era que ela fosse ganhar [uma estrela Michelin]. Até conversámos sobre isso. É preciso acontecer uma primeira vez. A partir do momento em que uma mulher ganhe, as coisas vão tornar-se muito mais fáceis. Mas a mulher que ganhar vai ter de provar que: “Realmente eu mereço estar aqui”. Os homens, não. Merece? “Parabéns, trabalhaste muito!” A mulher precisa de fazer um trabalho continuado para se dizer “Ok, ela mereceu”. Tem a ver com a mentalidade. Acho que ela [Chef Marlene Vieira] merecia, tem trabalhado para isso. Mas continua a haver o fator machismo. Um chef ganhou? Acho que vai ter mais likes, mais visualizações. Mas, espero que na próxima edição, se não for ela que seja outra. Mas que tenhamos uma mulher a ganhar esse prémio.

É uma ambição sua?

Não. Nós temos um restaurante Michelin, já estive presente em algumas coisas. Obviamente que é o mundo que fascina, mas não tenho essa ambição.

É muita pressão?

É muita pressão. Há uma parte de saúde mental que é preciso ser cuidada. Cada vez mais. E entrar neste mundo é desligarmo-nos um bocadinho do lado pessoal e trabalhar muito. Aliás, já faço um esforço pessoal para ter o que tenho agora. E ir para um Michelin… Obviamente que gostava de trabalhar num, mas não estar à frente dele.

Uma coisa que o pós-pandemia trouxe foi o facto de se falar mais de saúde mental, nas várias vertentes da sociedade, e também na alta cozinha.

Exatamente. Eu não tenho vergonha de dizer que faço terapia há quatro anos. Tenho uma psicóloga, que já se tornou uma amiga. E já agradeci porque, o facto de não ter desistido, foi por ter o suporte dela. Obviamente que tenho de ser eu [a fazer esse trabalho], mas aconselho todas as pessoas a fazer terapia.

Chef Zélia Santos, a primeira mulher a liderar um restaurante no Belmond Reid’s Palace. Num setor dominado por homens, “as mulheres não têm de provar que são iguais. Têm de provar que são melhores”
Chef Zélia Santos, a primeira mulher a liderar um restaurante no Belmond Reid’s Palace. Num setor dominado por homens, “as mulheres não têm de provar que são iguais. Têm de provar que são melhores” créditos: Divulgação

A Chef Zélia lidera o restaurante Brisa do Mar, que só pelo nome já retira toda a pressão.

Estou a sentir-me muito feliz ali. É uma tranquilidade diferente. Tem o contacto com o cliente, que tem sido fascinante. Foi a minha primeira vez e tem corrido muito bem. Os clientes vêm, cumprimentam. Eu vou às mesas e eles ficam fascinados. Aliás, o cliente que procura uma cozinha destas também já vai com essa abertura. E depois, temos uma vista espetacular. Acho num dia mau aquilo melhora. Temos tido bom tempo, noites quentes. E os clientes ficam lá depois do jantar a desfrutar. Estou a gostar, está a correr muito bem. A primeira temporada foi muito boa, muito mesmo.

Este é um conceito sazonal.

É sim, fechamos no final de outubro. Temos abertura em abril e vamos trabalhar no novo menu, em algumas coisas que precisem de ser mudadas.

O que é que faz quando o restaurante está fechado?

É a minha primeira vez [nesta situação], mas vou tirar férias porque, como estive dedicada 100% ao projeto, não tive férias. Antes do final do ano [de 2024] não vou voltar a trabalhar no menu novo. Provavelmente vou dar apoio às outras cozinhas e em janeiro trabalhar para o novo menu. Quero visitar restaurantes, ir ao continente. Seria muito bom para mim, a nível profissional, ver o que é que se faz, o que é que se come [fora da ilha]. É trabalhar nesse sentido.

Sendo natural da Madeira, como é que a sua ligação à ilha e à sua cultura influenciou a forma como pensa a gastronomia no Brisa do Mar?

Por exemplo, nós temos um pão que é tradicional de Porto Moniz, no norte da ilha, que todos adoram. Eu, sendo de cá, não conhecia a história. Habitualmente, os pães são cozinhados no forno. Este é cozinhado num caldo e finalizado numa grelha. Portanto, o pão, já tem uma história. E temos muitos produtos de cá, como o cuscuz regional.

É buscar aquilo que nós temos, desconstruir e construir outras coisas e introduzir estes produtos nossos. Temos o peixe fresco que é dos produtos mais consumidos. Este cuscuz é uma desconstrução do tradicional arroz de pato – em vez de usarmos o arroz, estamos a usar o cuscuz – e que tem sido muito bem recebido porque muitos clientes não conhecem e depois gostam. Por exemplo, os frutos vermelhos que temos numa sobremesa, são produzidos cá. Acho que temos de apostar nos fornecedores daqui, porque somos uma ilha e temos dificuldade em ter certos produtos. E também apostamos muito na sustentabilidade. Não temos quase desperdício nenhum.

Que papel a gastronomia pode desempenhar na promoção de práticas sustentáveis?

Quando estive a fazer os pratos, com o apoio do Chef Diogo [José Diogo Costa], que é nosso Chef-Executivo, fomos pensando: “Olha, com isto podemos fazer isto”. Portanto, nós usamos todo o peixe, não temos desperdício nenhum: o filete é vendido como peixe fresco; para o ceviche; para a sopa. As espinhas usamos no caldo. É um ambiente em que temos zero desperdício. Com as aparas dos legumes fazemos caldos para os [pratos] vegetarianos. O menu foi mesmo trabalhado para isso, para termos zero desperdício, ou quase zero.

Aquilo que as nossas avós consideravam economia doméstica, na modernidade considera-se sustentabilidade.

E eu tenho muita bagagem disso. Por exemplo, eu vivo numa zona alta [da Madeira]. O meu pai era agricultor, então nós vivíamos muito dessa base agrícola. A minha mãe, hoje em dia, continua a fazê-lo para consumo doméstico. Então já tinha essa base. Nós não fazíamos desperdício em casa. E para mim tornou-se muito mais fácil fazer isso no trabalho, porque as ideias já estavam cá.

Chef Zélia Santos, a primeira mulher a liderar um restaurante no Belmond Reid’s Palace. Num setor dominado por homens, “as mulheres não têm de provar que são iguais. Têm de provar que são melhores”
Chef Zélia Santos, a primeira mulher a liderar um restaurante no Belmond Reid’s Palace. Num setor dominado por homens, “as mulheres não têm de provar que são iguais. Têm de provar que são melhores” créditos: Divulgação

A cozinha ao ar livre e o foco na simplicidade dos sabores tradicionais são elementos centrais no Brisa do Mar. Como equilibra a tradição com a inovação na criação dos seus pratos?

O que é que se come? O que é que as pessoas procuram? Foi baseado nisso. Por exemplo, a história do cuscuz. Um dos meus pratos preferidos é arroz de pato. Só que não queria ter um arroz de pato que já todos conhecem. Daí a ideia do cuscuz. Foi muito o que as pessoas procuram comer num restaurante que fica perto do mar, de comida de conforto, mais simples. É pensar como se fosse o cliente.

Eu costumo dizer que temos umas finalizações muito rápidas, mas umas preparações muito lentas. Temos uma salada de lulas, que é cozinhada a baixa temperatura. Temos um pato que é cozinhado a baixa temperatura. Torna-se um serviço mais rápido, mas temos produções muito trabalhosas. O cliente chega e come uma salada de lulas fresca, que tem um granizado de coentros e limão muito fresco, muito propício ao Brisa do Mar. Procurámos ter uma coisa muito leve e fresca.

Que projetos gostaria de concretizar no futuro?

Obviamente, melhorar o Brisa do Mar. É a minha primeira temporada, temos um ou outro aspeto que podemos melhorar. Trabalhar no novo menu, numa coisa diferente.

Tenho conversado com o Chef Diogo, mas gostava de manter um ou dois pratos para o cliente repetente, acho que devemos proporcionar isso. Mas apostar numa coisa mais diferente. Daí eu querer ir a Lisboa ver o que se faz. Acho que é importante.

Se pudesse voltar atrás no tempo, há alguma decisão ou caminho que tomaria de forma diferente na sua jornada até aqui?

Tenho conversado com muitas pessoas ultimamente. Os chefs, quando saem ou ficam pequenas temporadas nos hotéis, têm uma oportunidade de crescimento maior. E acho que me faltou isso, faltou-me sair. Ainda bem que não saí agora porque tive esta oportunidade e estou a trabalhar num restaurante espetacular. Mas devia ter saído mais.

É uma coisa que pode vir a concretizar.

Sim, e já estou mais preparada para isso.