O restaurante Mapa, que lidera desde setembro de 2023, pretende ser uma expressão do património da nova gastronomia portuguesa. Em que consiste esta nova gastronomia?

Tem a ver basicamente com uma reinterpretação da cozinha tradicional portuguesa e trabalhar com o melhor dos nossos produtos. Nós estamos no Alentejo onde temos Novilho alentejano, Porco Preto, Borrego Merino, frutas e legumes produzidos aqui na terra, estamos a uma hora de Setúbal com um peixe e marisco maravilhoso. Por isso é tentar trabalhar os melhores produtos disponíveis e de excelência com um conceito que tenta respeitar os sabores da cozinha tradicional, com novas técnicas, e também uma parte do conceito muito direcionada para as influências que, ao longo dos anos, fomos trocando com outras culturas gastronómicas, seja em produtos, seja em técnicas. E isso dá-nos um leque muito grande para desenvolver e para trabalhar.

Para além das suas raízes portuguesas e indianas, de que forma é que a sua personalidade na cozinha se identifica com este projeto?

Tenho uma ligação não pessoal demais, mas longa. O meu pai é indiano, da parte da Índia portuguesa, e sempre cozinhou muito bem. A minha mãe é da zona de Sintra e também sempre cozinhou muito bem. Em casa fui tendo, desde miúdo, essa perceção de aromas diferentes e sabores diferentes. Por isso, no meu gosto pessoal, essa parte está muito desenvolvida desde jovem e isso dá-me algum conforto para poder trabalhar e desenvolver as coisas.

Quando me propuseram vir renovar o conceito gastronómico e o conceito do Mapa, fiquei super entusiasmado e tem sido uma experiência maravilhosa

Apesar de esta não ser a sua primeira vez no L’AND Vineyards, como é que foi aceitar este desafio?

Fiz cá um evento em 2017, numa Rota das Estrelas, e tinha ficado a conhecer o projeto. Adorei, achei maravilhoso, um espaço lindo. Quando me propuseram vir renovar o conceito gastronómico e o conceito do Mapa, fiquei super entusiasmado e tem sido uma experiência maravilhosa.

O contacto com o desconhecido vem, por vezes, acompanhado de um sentimento de medo ou receio. Em algum momento sentiu isso ao abraçar este novo desafio profissional?

Acho que não. Acho que há sempre o chegar e nós nunca sabemos como é que vamos ser recebidos. E esse, se calhar, é o ponto mais importante do princípio da aventura. Mas senti desde o princípio, tanto da equipa de cozinha como das restantes equipas do hotel, uma motivação e um apreço muito grande. Senti-me super bem recebido. Não podia esperar melhor. Isso deu-me logo uma estabilidade e à-vontade grande para construir as coisas e para desenvolvê-las com a equipa de cozinha. Entrei em setembro e fomos para uma remodelação de espaços primeiro: alterámos a cozinha toda, construímos uma cozinha nova e abrimos o Mapa só em fevereiro [de 2024]. Nesses tempos fui aproveitando também para conhecer as pessoas, porque sou uma pessoa que acha muito importante essa ligação pessoal e essa compreensão de cada um. Depois fomos desenvolvendo novas formas de trabalho, nova organização na cozinha e um novo conceito. E senti sempre uma grande motivação da parte de todos para quererem aprender, para estarem disponíveis, para darem o seu melhor. Isso foi muito importante para a construção do que temos estado a fazer.

E a construção da janela junto à entrada do restaurante Mapa também é uma coisa nova...

Sim, acho muito importante o contacto com o cliente. Durante anos andávamos a espreitar atrás da porta em muitos restaurantes. No Tavares, por exemplo, ia espreitar para ver a expressão das pessoas quando recebiam um prato. E acho que aquela janela nos dá uma perceção de quem chega, de quem sai e como sai, e é muito bom. Quando disse à equipa que íamos ter uma janela na cozinha, ficaram super assustados. Assustados por quê? Porque não estavam habituados. 'Porque a cozinha às vezes está [desorganizada]'. Se às vezes está [desorganizada], tem de deixar de estar. Ou seja, nós temos de trabalhar com organização, com rigor, com disciplina e limpos. Temos de receber com um sorriso, de dizer adeus com um sorriso e vamos sentir coisas boas do lado de lá da janela, de certeza. E quando começaram a perceber que os clientes, ao entrarem, cumprimentam, dizem adeus e dão um sorriso, mas principalmente à saída, batem ao vidro, agradecem e sorriem, ajuda-nos a ir para casa super satisfeitos com o trabalho que estamos a desenvolver e com a forma como estamos a fazer as coisas.

Acho que o próprio conceito permite-nos uma longevidade enorme nesse aspeto de ir melhorando, de ir trabalhando, de ir alterando pratos sem ter de alterar o menu por completo

E ajuda a quebrar um bocadinho aquela barreira que existia, não é?

Claro, e que cada vez menos existe. Mas, obviamente, eles não estavam habituados. A cozinha não tinha janela, era um espaço fechado e eles sentiam-se mais seguros, mais guardados. Mas a verdade é que nós não temos de ter medo de assumir e de mostrar quem somos. Há clientes que querem vir à cozinha e nós recebemo-los e falamos com eles. E essa sensação para o cozinheiro e para a equipa é muito boa. É gratificante perceber que o cliente está muito satisfeito, que adorou a refeição, que volta no dia a seguir. Porque quando depois os vemos a chegar pensamos 'Voltaram. Estão cá outra vez'. E isso é uma coisa que, se não houver essa pequena janela, por mais pequena que seja, passa-nos ao lado e acho que é muito importante essa parte da motivação das equipas. E a janela ajuda a isso, claramente, e a perceber que tem de ter a bancada limpa e organizada. Teria de ter mesmo que a janela não existisse, mas ali ainda mais. Se está todo sujo, aconteceu um acidente, vai trocar a jaleca, porque o cliente está a chegar, não vai querer ver a cozinha de um cozinheiro toda suja.

O Mapa é um restaurante de fine dining que se desdobra em dois menus distintos: Caminhos e Alentejo. O primeiro pretende valorizar a gastronomia resultante da troca de culturas das viagens realizadas durante a época dos Descobrimentos. Qual a parte mais desafiante de criar um menu deste tipo?

Acho que o desafio maior tem a ver com a quantidade de sítios onde nós acabamos por ter essa troca de culturas e de influências, algumas que demos, outras que trouxemos. Mas é um leque tão grande de opções, que às tantas nós tínhamos 50 pratos pensados para o primeiro menu, que eram hipóteses. Acabamos por definir este. Acho que o próprio conceito permite-nos uma longevidade enorme nesse aspeto de ir melhorando, de ir trabalhando, de ir alterando pratos sem ter de alterar o menu por completo, encaixando produtos e sabores que se complementem bem e que façam uma viagem simpática para quem está a comer o menu. E o menu Alentejo tenta trazer um bocadinho de toda a nossa cozinha, que é trabalhada com os melhores produtos, tanto de origem animal como vegetal. Portugal, felizmente, é um país riquíssimo na qualidade dos produtos que tem. O Menu Alentejo tenta trazer alguns momentos da cozinha tradicional alentejana.

É um tributo à região...

Sim, e acho que fazia sentido.

Temos de estar conscientes de que estamos a trabalhar um campo completamente oposto àquilo que é a realidade, por exemplo, das grandes cidades, em que há os produtos todos durante todo o ano

Porque motivo escolheu o gastrónomo Virgílio Gomes para o ajudar na construção deste menu?

Primeiro porque é uma referência da gastronomia portuguesa no que diz respeito à História, à data, à certificação do que foi a realidade e do que é concreto, e porque é um amigo de longa data também. Quando o Paulo me falou do projeto e me trouxe cá para falar com o José [Sousa Cunhal, fundador e CEO do L'AND Vineyards] e com a Marta [Passarinho,  diretora-geral do hotel], tinham em cima da mesa também a ajuda do Virgílio para esse encontro criterioso de técnicas, de receitas e de produtos. Reuni-me várias vezes com ele e fomos construindo, mas termos uma base de dados definida pelo Virgílio que, obviamente, nos dá, logo à partida, uma seriedade e uma tranquilidade de estarmos a fazer as coisas bem. Depois, o resto é desenvolver na cozinha, com técnicas, com sabores e apurar.

Porque caminhos nos levam os momentos e propostas que compõem este menu de degustação?

Este é um primeiro Menu Caminhos, e já numa fase bem consolidada, completamente consciente para a equipa daquilo que é o conceito daquilo, as técnicas, os sabores, muito bem afinado, mas leva-nos um bocadinho à descoberta e tentar depois trabalhar as técnicas e esses sabores. Passamos por Moçambique, passamos pela Índia, passamos pela Tailândia, passamos pelo Japão, e o objetivo é deixarmo-nos influenciar e tentar trabalhar com o maior critério possível com o produto português, mas com influências de sabores e técnicas desses lados.

Já o Menu Alentejo é composto por propostas que são um tributo à região. Ao privilegiarem produtos sazonais, locais e biológicos, é fácil encontrar matéria-prima para se trabalhar ao longo de todo o ano ou isso não é uma preocupação?

Sim, acho que tem de se ter cuidado, porque tendo essa linha de pensamento e de trabalho, temos de estar conscientes de que estamos a trabalhar um campo completamente oposto àquilo que é a realidade, por exemplo, das grandes cidades, em que há os produtos todos durante todo o ano. E aqui temos de ter uma consciência maior de que esses produtos existem durante uma determinada altura, no seu ponto de melhor qualidade e também em relativa quantidade. Ou seja, nós não conseguimos a quantidade que queremos de tudo, porque se queremos ter esse registo de trabalhar com o produto sazonal e com o produto de excelência, depois ele também tem algumas limitações, mas isso faz-nos ter de preparar e esquematizar isso de uma forma equilibrada e consciente.

Eu gosto das coisas feitas com muito rigor, muita disciplina, com muito bom ambiente e com um sorriso na cara, se possível

Qual a vossa relação com a Herdade do Freixo do Meio?

É ótima. É do irmão do José e, obviamente, tem um trabalho reconhecido nacional e internacionalmente. E é ótimo poder ter projetos desses aqui connosco.

Falamos muito dos sabores e das matérias-primas, mas que técnicas é que não podem faltar aqui à mesa do L'AND Vineyards?

Acho que, principalmente, das menos importantes na parte culinária, que são sentido responsável, rigor e disciplina. Eu gosto das coisas feitas com muito rigor, muita disciplina, com muito bom ambiente e com um sorriso na cara, se possível. Eu acho que nós temos esse espírito criado e bem marcado. A equipa já tem consciência daquele que foi um momento de mudança, já interiorizou, já compreende, já questiona e já ajuda a construir também. E isso era um passo muito importante. Mas, basicamente, acho que é isso que depois define o resultado final das receitas.

Qual o balanço que faz destes últimos meses? Qual o feedback que tem recebido dos clientes ao trabalhar este menu?

Tem sido ótimo. Uma parte mais importante tem a ver com o que nós sentimos do feedback do cliente. Isso dá-nos motivação, dá-nos um sentido quase de gratidão porque percebemos que estamos a dar o máximo para construir e proporcionar uma experiência diferente ao cliente, e o que temos recebido de feedback é ótimo. Não há nada mais motivador do que isso para a equipa e para nós, igualmente.

Obviamente que sei que era muito bom para um projeto como o L'AND ter também uma estrela ou voltar a ter uma estrela Michelin. Se é um objetivo pessoal? Não

E há algum prato estrela ou que se tenha destacado como um dos favoritos?

Acho que não. Eu tenho sempre curiosidade em perguntar aos clientes, mas há muitos que falam da Matapa, há muitos que falam do Atum, há muitos que falam do Carabineiro, há pessoas que são fascinadas pelo salmonete. O leitão também tem tido muito boas apreciações, por isso eu ainda não consegui perceber se há ali algum prato [estrela] no menu... A Bebinca, há quem diga que é a melhor bebinca que já comeu. Acho que está menu super equilibrado e super bem conseguido.

Sendo um dos fundadores da padaria artesanal The Millstone Sourdough e tendo em conta o know-how que adquiriu com este projeto, o L'AND faz o próprio pão?

Não, porque temos a Millstone como parceira. Não por imposição minha, mas porque a Marta e o José já gostavam imenso do produto e do projeto, e quiseram que fôssemos parceiros, por isso o pão que se utiliza no L'AND, desde o pequeno-almoço até os jantares, é da Millestone. Não o fazemos aqui porque teríamos de criar quase uma zona de produção, equipamento e é uma coisa que dá muito trabalho, obviamente, como tudo que é bem feito, mas depois com duas cozinhas e dois restaurantes, já não era uma coisa assim tão fácil de fazer e havendo bom produto, acho que faz sentido. Em relação à aprendizagem, eu já queria ter aprendido a fazer pão há muitos anos. Era uma coisa que me fascinava e que me criava imensa curiosidade, como é que três elementos que, aparentemente tão facilmente se misturam, depois podem ter resultados tão bons ou tão desastrosos, e ter a perceção de como o processo se desenvolve. [risos] Acho que foi muito bom e nós temos aqui, por exemplo, um prato de presa com puré de nabo fermentado, que trabalha um bocadinho a parte da fermentação. A fermentação foi uma técnica desenvolvida há milhares de anos para nós nos salvarmos. Houve uma altura em que uma das coisas mais perigosas para a vida humana era a água, não havia água potável, e por isso é que nós vemos que nas séries de antigamente toda a gente bebia cerveja o dia todo. Como era um fermentado, isso fazia com que estivessem alegres o dia todo, mas que não estivessem doentes, pelo menos pela água. Por isso, é processo de vida que eu acho que se perdeu um bocadinho há uns anos, mas que hoje está muito reavivado e que faz todo sentido, até pelo bem que nos faz à saúde, por que são processos naturais.

O L’AND Vineyards é dos poucos casos em Portugal que conquistou, perdeu e reconquistou uma estrela Michelin. Voltar a pôr Montemor-o-Novo no guia é um objetivo para si ou neste momento não pensa nisso?

Acho que não penso, nem nunca pensei. Já estive noutros projetos em que as coisas se foram construindo. Acho que o trabalho e o resultado do trabalho se faz com tempo, se faz com essa consciencialização da equipa e com o crescimento global do projeto. Obviamente que sei que era muito bom para um projeto como o L'AND ter também uma estrela ou voltar a ter uma estrela Michelin, sei que seria um complemento ótimo. Se é um objetivo pessoal? Não. Mas digo não como sempre disse. Acho que o importante é nós trabalharmos para satisfação máxima do cliente. Vê-lo sair com um sorriso na cara, agradecer, voltar. Isso é que é realmente importante. Isso é que nos mostra que a construção está a ser feita no caminho certo. Acho que se um dia vier, é muito bem-vinda. Acho que até criar essa pressão nas equipas que estão envolvidas, que não é uma coisa assim tão positiva. Acho que é mesmo criar a consciência nas equipas de que todos os dias temos de fazer o melhor que sabemos, da melhor maneira, para que diariamente, sejam 30 clientes no restaurante ou sejam 10, saiam todos com sorrisos na cara e satisfeitos por terem tido uma experiência diferente e super agradável. Isso é que é a estrela de todos os dias.

A massificação [do fine dining], acho que, obviamente, é perigosa, porque no meio de muitas coisas boas, há imensas coisas más.

Ultimamente muito se tem falado de uma crise no sector da restauração, especialmente nos estabelecimentos de fine dining onde o excesso de oferta se sobrepõe à procura. Como olha para o futuro do fine dining em Portugal? É algo que o assusta?

Sinceramente, eu acho que conceitos há cada vez mais e, e eu digo isto na ótica do consumidor e como cliente, o facto de haver mais conceitos e mais diversidade ajuda-me a manter as opções diversificadas e a poder conhecer coisas diferentes. A massificação, acho que, obviamente, é perigosa, porque no meio de muitas coisas boas, há imensas coisas más. Mas eu acho que o consumidor está cada vez mais consciente daquilo que procura, daquilo que quer, do que não quer, e eu acho que essa triagem vai ser feita, obviamente, pelo consumidor. Eu acho que o fine dining tem tanto espaço como uma cozinha farm to table, como uma cozinha vegetariana, como uma cozinha tradicional. Acho que tem a ver com o momento, com o dia e com a vontade do cliente. Eu acho que nós, sendo criteriosos, sendo sérios e oferecendo produto de altíssima qualidade, vamos ter sempre clientes em qualquer conceito. Por isso não me preocupa muito o futuro do fine dining.