Há muito que Roberto Ramallete perdeu a conta ao número de vezes que calcorreou as águas do rio Tejo, no troço raiano que separa Portugal de Espanha. Na língua castelhana de Roberto, nascido em Cedillo, na Extremadura espanhola, o grande rio ibérico faz-se Tajo. Olhando para as margens, embalados pelo ronco dormente da embarcação que percorre o rio, Tejo ou Tajo não passam de uma questão de pronunciação. Em tudo, as margens são irmãs. Azinheiras, sobreiros, zambujeiros, murta, salgueiros, medronheiro, rosmaninho, urzes, entre dezenas de outras espécies vegetais, emolduram a fronteira entre a linha de água e as fragas, habitadas por cegonhas-pretas, grifos e abutres.
Para Roberto, esta é mais uma, entre milhares de descidas e subidas do rio Tejo – e seus afluentes como os rios Ponsul e Aravil - a bordo da pequena embarcação de cruzeiros, o Balcón del Tajo, que navega o Parque Natural Tejo Internacional. Mais de 50 mil hectares de território partilhados equitativamente entre Portugal (26 mil hectares) e Espanha (25 mil hectares). Uma região de têmpera selvagem que abarca, na margem lusa, os concelhos de Castelo Branco, Idanha-a-Nova e Vila Velha de Ródão e, no país de Cervantes, um quinhão da província de Cáceres.
Para chegarmos ao embarcadouro de Lentiscais, na margem portuguesa, houve que percorrer 20 minutos de estrada (Nacional 18 e, depois, a Municipal 1266), desde a capital de distrito, Castelo Branco. Uma viagem de curvas e contracurvas na paisagem coleante beirã que não desmente a proximidade do Alto Alentejo. Manchas de sobreiros, azinheiras, oliveiras disputam os campos castigados pelo calor, com a presença de eucaliptal e pinhal. Longe, escondida na bruma, a serra da Gardunha esbate-se em cinzentos. Para lá desta, avoluma-se o gigantismo da Estrela.
Manchas de sobreiros, azinheiras, oliveiras disputam os campos castigados pelo calor, com a presença de eucaliptal e pinhal.
Uma curva na estrada, devolve-nos um veio de frescura talhado na paisagem. O rio Ponsul, traça a linha de água que acotovela afloramentos rochosos e vegetação mediterrânica. A pouco mais de 200 metros, avistamos o cais fluvial que nos servirá de ponto de partida para a jornada no Tejo Internacional. O sítio foi declarado reserva da biosfera transfronteiriça pela UNESCO em 2016.
Por agora, na descida para o cais, acompanha-nos o chilrear da passarinhada que nidifica sob o tabuleiro da ponte inaugurada no início da década de 1970, quando o esforço para dominar as águas do Tejo/Tajo ergueu a Barragem de Cedillo. De resto, não mais do que o rumorejar das águas nas margens do rio e o chape-chape obstinado do cais. Despertam-nos curiosidade enormes campos verdes, quase luminescentes, de uma erva miúda paralisada sobre as águas. Saberíamos mais tarde, nas palavras de Roberto que, aqui, neste território selvagem também pendem os riscos da predação humana e das alterações climáticas. Já lá iremos.
O "monstro" que ameaça o rio
É protagonista a marcha sonolenta da embarcação que se prepara para encostar ao cais. Nela, um grupo de espanhóis prepara-se para um dia de visita a Portugal. Fazemo-nos à estrada líquida com a próxima hora e meia de descoberta e uma breve lição de navegação. Não há como confundir popa e proa, bombordo e estibordo, como também há que atender às explicações sobre a correta utilização de um colete de salvamento.
De resto, o protagonismo fica entregue ao que a natureza tratou de esculpir e um alerta para a fragilidade deste ecossistema, o “primeiro parque natural transfronteiriço da Europa, assim reconhecido em 2012”, como refere Roberto Ramalhete.
O grande rio ibérico, com os seus mais de mil quilómetros de extensão, desde a nascente, na serra de Albarracim, em Espanha, à foz, ao largo de Lisboa, tem aqui 200 metros de largura.
Por hora navegamos as águas do Rio Ponsul. “Não mais de 70 metros de largura, a deste afluente do Tejo. O grande rio ibérico, com os seus mais de mil quilómetros de extensão, desde a nascente, na serra de Albarracim, em Espanha, à foz, ao largo de Lisboa, tem aqui 200 metros de largura”, informa o nosso anfitrião. Custa crer que em setembro de 2019, a seca e as políticas de gestão de água entre os dois países ibéricos, tornaram o Tejo, num fio de água no ponto que agora navegamos. Isto, quando olhamos para o sonar de bordo e percebemos que temos sob o casco da embarcação 40 metros de descida até ao leito do rio.
Nesse mesmo leito vive uma das criaturas que ameaça o ecossistema. Pode alcançar os três metros de comprimento e pesar mais de 150 quilos. O “monstro” tem nome: Siluro, uma espécie que habita os rios da Europa Central, introduzida no Tejo. Como também o foram a Carpa, o Lúcio e o Achigã. “A Carpa terá sido aqui deixada pelos romanos no século I d.C.. Como é um peixe muito proteico, era utilizado na alimentação das populações. Provavelmente, um transporte de rio terá afundado com os peixes vivos a bordo, trazidos em tanques de outra proveniência”, alvitra Roberto, embora sublinhando que é uma hipótese, não uma tese.
O eucalipto foi para aqui trazido, quer por Portugal, quer por Espanha, para alimentar a indústria da celulose. Para além de não reter qualquer humidade nas folhas, é uma espécie que lança um herbicida no solo. Não há vegetação que vingue.
Endémicos nas águas deste habitat são o Barbo e a Boga, como também o é, no que respeita à flora, a Íris Lusitanica, flor de pétalas delicadas.
Numa curva de rio, Roberto alerta-nos para uma boia. “É uma armadilha para capturar lagostins, outra espécie invasora. Uma praga trazida das américas”. Ainda na cartilha das pragas neste território, o eucalipto, “aqui introduzido nos anos de 1970 e 1980. Foi para aqui trazido, quer por Portugal, quer por Espanha, para alimentar a indústria da celulose. Para além de não reter qualquer humidade nas folhas, é uma espécie que lança um herbicida no solo. Não há vegetação que vingue onde existe eucalipto, mesmo quando passam anos após o seu abate”, elucida Ramalhete.
Ao longo de todo o percurso não há como evitar pôr os olhos nos campos de erva que juncam a superfície do rio: “é a ´alface da água` [trata-se da Azolla filiculoides]. Prolifera com a poluição e subida da temperatura da água do rio. No passado, estas águas eram mais frias. Hoje, esta erva chega a tapar por completo a linha de água, o que impede, por exemplo, a garça-real e o guarda-rios de se alimentarem”. Sublinhe-se que a Azolla prolifera nas massas de água quando estas se encontram estagnadas e poluídas por fosfatos e nitratos.
Também nos céus
Soltando o olhar do rio e lançando-o para o alto, espanta-nos o voo itinerante de uma dúzia de grifos. Pairam nas correntes ascendentes de ar, espicaçadas pelo calor do dia. Ajuda-os o corpo leve, não mais de oito quilos de criatura alada, com 2,5 metros de envergadura de asas. “Há mais de 700 casais na área do parque. Assim como encontramos o Abutre Negro que chega aos três metros de envergadura de asas. Constrói ninhos que podem pesar 300 quilos”, refere Roberto.
Roberto alerta-nos para os traços da presença humana nas margens. Colmeias, associadas à atividade apícola.
Um elenco faunístico que inclui o Abutre do Egipto, “o único que põe dois ovos”, a Águia Real, a Águia Imperial Ibérica, “com apenas três casais na área do parque” e a Cegonha-Preta que conta com 23 casais. “Ao contrário da prima Cegonha Branca que se alimenta de tudo um pouco, esta ingere peixes do rio”, adianta o nosso interlocutor.
Roberto alerta-nos para os traços da presença humana nas margens. Colmeias, associadas à atividade apícola e, mais exuberantes na sua arquitetura, socalcos, muitos deixados ao abandono. Há dezenas, num esforço exaustivo do Homem para dominar as encostas íngremes. Centenas de milhares de blocos de xisto que retêm o solo numa “cama” de terra para a cultura da oliveira.
Meia volta da embarcação no rio, anuncia o ponto de viragem rumo ao cais de Lentiscais. Um retorno que, não obstante se fazer sobre as águas já trilhadas, tem travo a novidade. A imobilidade das margens é apenas uma ilusão. A vida brota, em pequenas colónias de grifos, no salto momentâneo de um peixe, na brisa que agita os ramos de um salgueiro e na suspeita do gingar do corpo de uma lontra rente à linha de água.
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