Qual a frequência das mentiras?
Qual será o número médio de mentiras que o cidadão comum diz por dia? A resposta não é linear, variando de estudo para estudo. Bella DePaulo, investigadora na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, coordenou um dos estudos pioneiros nesta área, tendo pedido a 77 estudantes universitários e a 70 pessoas que não estavam a estudar para manterem um diário, em que reportavam todas as mentiram que diziam em conversas com a duração mínima de dez minutos, ao longo de sete dias. Em média, os estudantes reportaram duas mentiras por dia e os restantes cidadãos uma mentira por dia.
Em paralelo, foi revelado que os participantes mentiram uma vez em cada quatro conversas e a 34% de todas as pessoas com quem interagiram durante essa semana. Ironicamente, a frequência de mentiras foi provavelmente bastante mais alta, pois muitas pessoas podem não ter tido consciência das mentiras que disseram ou não ter querido admitir todas as mentiras de que se lembraram, sobretudo se tiverem sido sérias.
Além disso, só foram contabilizadas mentiras em conversas com uma duração mínima de dez minutos; é perfeitamente possível mentir em conversas mais curtas! Estudos mais recentes com milhares de sujeitos confirmam que a mentira é, de facto, um fenómeno muito frequente na vida quotidiana.
Esta é a frequência de mentiras, mas qual será o meio mais utilizado?
Baseando‑se na mesma metodologia do estudo de Bella DePaulo, um conjunto de investigadores da Universidade de Cornell solicitou aos participantes não só que registassem o número de mentiras durante sete dias, mas também o meio em que a interação teve lugar. Os resultados indicam que os participantes mentiram mais frequentemente ao telefone; este foi o meio privilegiado, devido à distância social e à conversa não ser gravada. Em segundo lugar, foram eleitas as interações cara a cara; apesar da proximidade, a conversa também não é gravada e, como tal, não pode ser utilizada como meio de prova. Em seguida, os mentirosos recorreram às mensagens instantâneas, dada a distância social e a possibilidade de as conversas poderem ser apagadas depois; o WhatsApp, por exemplo, permite eliminar mensagens até dois dias após o envio. O e‑mail é a última opção, dado que não pode ser apagado pelo mentiroso e a mensagem enganadora fica registada na conta da outra pessoa.
Robert Feldman, James Forrest e Benjamin Happ, investigadores da Universidade de Massachusetts, realizaram um estudo muito curioso em que agruparam mais de cem participantes em pares e lhes pediram para se apresentarem e conversarem durante dez minutos. Os autores queriam saber se a frequência de mentiras variava de acordo com os temas específicos das conversas. Para tal, criaram três grupos: um em que solicitaram aos participantes para parecerem agradáveis, outro em que lhes pediram para parecerem competentes e outro em que sugeriram que simplesmente conhecessem a outra pessoa.
Embora as instruções sobre a agradabilidade e competência criem um certo grau de artificialidade, refletem muitas das interações quotidianas, em que queremos causar uma boa impressão. Nenhum dos participantes sabia que o estudo estava relacionado com a mentira e desconheciam que uma câmara estava a gravar a interação. Após os dez minutos, o participante era conduzido para uma sala, para rever o vídeo e identificar alguma «imprecisão» no discurso. Na realidade, os investigadores estavam a contabilizar a frequência de mentiras, mas utilizaram a palavra «imprecisão», dada a carga moral da palavra mentira.
Qual terá sido a frequência média de mentiras nos três grupos? Apesar de os grupos que tinham a instrução para parecerem mais agradáveis e competentes terem mentido mais, o grupo ao qual foi dito para apenas conhecer a outra pessoa também recorreu à mentira. Em média, cada participante contou três mentiras durante a interação de dez minutos! Não nos estamos a referir apenas a mentiras brancas e pequenos exageros, mas também a mentiras descaradas: alguns sujeitos afirmaram ter contratos discográficos ou ter constado do quadro de honra do liceu, quando nada disto era verdade!
Tal como no estudo de Bella DePaulo, a frequência de mentiras foi possivelmente mais elevada, visto que os participantes podem ter sentido pudor em assumir certas mentiras. Os resultados do estudo tiveram uma grande atenção mediática, merecendo cobertura de canais televisivos como a BBC e de jornais como o New York Times, que destacaram o sensacionalismo dos resultados. Na realidade, estes não são extraordinários, mas perfeitamente normais, confirmando uma vez mais o quanto a mentira está disseminada no nosso quotidiano.88 Com esta ideia em mente, vamos agora entrar no mundo da deteção da mentira e compreender quais os principais fatores psicológicos que desencadeiam este fenómeno.
Erros e desafios que dificultam a deteção da mentira
Considera‑se um bom detetor de mentiras? A maioria das pessoas acredita piamente que possui uma capacidade acima da média para reconhecer mentiras, mas será realmente assim? Em 2006, os investigadores Bella DePaulo e Charles Bond compilaram as avaliações de mais de 24 mil sujeitos e verificaram que a taxa média de sucesso na deteção de verdades e mentiras foi de apenas 54%.89 É quase como atirar uma moeda ao ar e escolher cara ou coroa!
Embora sejam surpreendentes, talvez estes resultados possam ser explicados por os participantes serem pessoas comuns, sem conhecimentos especializados na avaliação da credibilidade. Certamente os profissionais com anos de experiência e formação específica nesta área serão muito mais competentes. Basta pensar nos romances de Agatha Christie e de Arthur Conan Doyle ou em séries de televisão como C.S.I. ou Mentes Criminosas, para perceber as extraordinárias e acutilantes capacidades de deteção da mentira dos protagonistas.
Os psicólogos Paul Ekman e Maureen O’Sullivan decidiram analisar esta questão e pediram a mais de quinhentos profissionais, incluindo membros dos Serviços Secretos, poligrafistas, juízes, polícias, detetives e psiquiatras para avaliarem a credibilidade de uma dezena de vídeos. Os profissionais tinham acesso à expressão facial, aos movimentos corporais e ao discurso de mulheres que relatavam o que sentiam em relação a um filme que estavam a ver. Todas descreviam emoções positivas, mas metade disse a verdade, pois estava a ver um filme agradável sobre a natureza, e as restantes mentiram, uma vez que estavam a ver um filme horrível com pessoas amputadas e queimadas.
Será que a taxa de sucesso destes profissionais foi mais elevada do que a obtida pelas pessoas comuns? Não, foi praticamente idêntica! Apesar de mais confiantes na sua capacidade para avaliar a credibilidade, a classificação dos especialistas oscilou entre 55% e 57%. Não só é inexistente a relação entre a autoconfiança e a capacidade para detetar mentiras, como o excesso de autoconfiança pode, inclusive, dar origem a mais erros, já que resulta na tomada de decisões rápidas, com base em informações limitadas. A única exceção foram os membros dos Serviços Secretos, que obtiveram uma taxa de sucesso de 64%, o que, mesmo assim, é um valor bastante baixo. A que se deverão estes resultados? Vamos descobrir os principais erros e desafios que dificultam a deteção da mentira e explicam os baixos resultados, tanto dos cidadãos comuns como dos profissionais.
2.1. Os erros de Pinóquio, Brokaw e Otelo
Recorda‑se da história do Pinóquio? Nesta famosa narrativa infantil, o marionetista Geppetto esculpe um boneco de madeira que ganha miraculosamente vida. Qual a característica distintiva da personagem criada por Carlo Collodi? O aumento do nariz, sempre que ele contava uma mentira! O nariz não crescia quando estava nervoso ou irritado, somente quando dizia uma mentira; logo, o erro de Pinóquio alerta‑nos para a crença na existência de um comportamento ou de uma combinação de comportamentos específicos que se manifestam apenas quando uma pessoa está a mentir. Apesar de ser aliciante a possibilidade de ver um determinado movimento corporal ou escutar uma frase concreta e afirmar perentoriamente que alguém está a mentir, a realidade é bastante mais complexa. De facto, existem sinais comportamentais relacionados com a mentira, mas nenhum lhe é exclusivo, uma vez que podem ocorrer por outros motivos. Além disso, pessoas diferentes podem exibir pistas diferentes e a mesma pessoa pode evidenciar pistas distintas, consoante a situação.
Um exemplo flagrante prende‑se com a análise do toque no nariz: os investigadores Alan Hirsch e Charles Wolf compararam um momento em que Bill Clinton respondeu de forma genuína a perguntas neutras, como o seu nome, com um momento em que foi questionado sobre o assédio a Monica Lewinsky. O ex‑presidente dos EUA tocou vinte e seis vezes no nariz quando mentiu, em contraponto com a ausência de toques no nariz quando disse a verdade. Que ilações poderia retirar desta experiência? Os autores referem que a mentira eleva a frequência cardíaca e gera um inchaço nos tecidos nasais; como esta inflamação causa comichão e impele a pessoa a coçar o nariz, é um indicador fiável de mentira. Esta é uma conclusão abusiva que compara «alhos com bugalhos»; não é possível equiparar a reação a uma pergunta neutra com a reação a uma pergunta com impacto emocional.
Os «narizes do Pinóquio» baseiam‑se maioritariamente em crenças populares incorretas, sem qualquer fundamento científico. Estas ideias, propagadas pelos media e por livros de autoajuda, sugerem a existência de um dicionário que indica com precisão quando alguém está a mentir, sendo as pistas quase exclusivamente centradas na ansiedade, tensão e nervosismo. Como iremos ver adiante, não só existem muitos mais fatores além do nervosismo, como os mentirosos, estando conscientes das crenças populares sobre a mentira, podem deliberadamente controlar o seu comportamento para parecerem mais credíveis.
Curiosamente, os profissionais das forças armadas e das forças de segurança revelam crenças muito semelhantes às do público em geral, sendo as mais comuns o desvio do olhar, o toque em regiões específicas da face, a transpiração excessiva e os movimentos do tronco ou dos pés. Estes estereótipos estão de tal forma disseminados, que muitos dos manuais sobre técnicas de entrevista de investigação forense possuem uma lista de comportamentos específicos associados aos mentirosos, focada essencialmente na ansiedade.
A Técnica Reid, desenvolvida originalmente pelo poligrafista John E. Reid, é o método de interrogatório mais popular nos EUA102, descrevendo a existência de sinais específicos que permitem distinguir a verdade da mentira, como a «postura de abertura genuína» ou a «postura com as pernas cruzadas e músculos contraídos enganadora». Não é de estranhar que várias investigações indiquem que os profissionais que aderem de forma mais arreigada a estas crenças possuem uma taxa de sucesso na deteção da mentira mais baixa do que os cidadãos comuns.
Naturalmente, quando as pessoas avaliam a credibilidade, vão concentrar‑se nas pistas que conhecem melhor e às quais foram mais expostas. Para introduzir o segundo grande erro na deteção de mentira, imagine que está num programa televisivo a ser entrevistado por um pivot intrusivo. Como se sentiria? Provavelmente, iria sentir algum nervosismo e necessidade de preservar a sua privacidade, caso as perguntas fossem demasiado invasivas. Quando Tom Brokaw, entrevistador do programa Today Show no canal NBC, ouvia os entrevistados a darem respostas longas, complicadas ou evasivas, ficava convencido de que estavam a mentir. Brokaw não levava em conta que todos os seres humanos têm idiossincrasias específicas, que não são necessariamente sinais de mentira, apenas formas particulares de se expressarem.
As manifestações de nervosismo também podem estar relacionadas com os traços de personalidade: as pessoas mais tímidas e introvertidas sentem‑se normalmente mais desconfortáveis em situações de exposição social e podem exibir sinais evidentes de tensão e ansiedade. Decerto conhece pessoas que mexem na aliança quando estão a falar ou tamborilam quando estão a pensar. Estes são comportamentos típicos daquela pessoa particular, que podem ser indicadores de nervosismo ou simplesmente hábitos que o indivíduo manifesta quando está perdido em pensamentos. Logo, o erro de Brokaw105 consiste em negligenciar as diferenças individuais, avaliando as particularidades e peculiaridades naturais do interlocutor como sinais de mentira. Assim sendo, é fundamental conhecer a linha de comportamento base da pessoa e os seus tiques, antes de fazer qualquer tipo de interpretação.
Já assistiu à peça de Shakespeare A Tragédia de Otelo, o Mouro de Veneza? No ato final, Otelo, invadido por um ciúme cego, acusa a esposa Desdémona de o trair com Cássio. Desdémona implora ao marido que chame Cássio, pois este irá testemunhar a sua inocência e clarificar o mal‑entendido, mas Otelo, ainda mais enraivecido, afirma que já o mandou executar. Como se sentiria se fosse injustamente acusado de ter cometido um crime, não pudesse provar a sua inocência e estivesse prestes a ser assassinado? Seria seguramente invadido, tal como Desdémona, por uma experiência de pânico. Otelo interpretou o medo de Desdémona como um sinal inequívoco do adultério e, envolto por um ciúme dilacerante, matou‑a.
Não pôs a hipótese de o medo ter uma outra origem, nomeadamente o medo de ser desacreditada e a possibilidade de ser assassinada. Este foi o erro de Otelo: ignorar a existência de explicações alternativas para a pessoa sentir uma dada emoção. Da mesma forma que uma pessoa culpada pode sentir medo de a sua mentira ser detetada, uma pessoa inocente pode sentir medo de ser desacreditada. Em ambos os casos, a experiência do medo é real e manifesta‑se de forma semelhante; note‑se que este erro não está apenas associado ao medo, mas pode surgir relativamente a qualquer outra emoção. Nesta medida, é possível detetar que alguém está a revelar uma emoção específica, mas não o motivo pelo qual esta foi ativada. Mais ainda: o nosso interlocutor pode não estar a reagir àquilo que acabámos de dizer, mas estar simplesmente a recordar‑se de uma experiência pessoal ou a imaginar um evento futuro.
Vejamos o seguinte exemplo, para clarificar o impacto destes três erros na deteção da mentira: encontra‑se pacientemente na receção de uma empresa, à espera de ser chamado para uma entrevista de emprego; a dada altura, o entrevistador irrompe na receção, cumprimenta‑o e convida‑o a entrar na sala de reuniões e a sentar‑se numa cadeira à sua escolha. Pousa a sua mala e senta‑se na cadeira, mas demora alguns segundos a pôr as mãos em cima da mesa. Nota imediatamente uma suspeita da parte do entrevistador; está provavelmente a interpretar o ocultamento dos braços e das mãos como um indicador de que poderá ter algo a esconder (erro de Pinóquio). Estava apenas a esfregar as mãos devido ao frio, antes de as pôr em cima da mesa.
Volvidos alguns minutos, é questionado sobre as cinco qualidades que considera mais importantes para o desempenho do cargo; enquanto pensa na resposta, olha para baixo, mexe no lóbulo da orelha direita e abana ligeiramente o pé esquerdo. O entrevistador olha para si de forma crítica, pois considera que estes são comportamentos estranhos e, como tal, poderão ser indicadores de mentira (erro de Brokaw). Porém, são apenas comportamentos idiossincráticos, tiques que o ajudam a pensar e facilitam o acesso à memória.
A entrevista prossegue e o entrevistador está mais atento do que nunca ao seu comportamento; observa que, antes de responder a uma pergunta mais pessoal, se endireita na cadeira e movimenta fugazmente os olhos para cima e para a direita. Ele agora tem a confirmação da sua suspeita, visto que identificou comportamentos que acredita estarem claramente relacionados com a mentira. Começa a confrontá‑lo com uma torrente de perguntas invasivas, utilizando um tom acusatório. Perante este questionamento cerrado, começa a manifestar sinais de medo e de desconforto, que o entrevistador interpreta como provas inequívocas de que tomou consciência de que as suas mentiras foram desmascaradas e das consequências que daí advirão (erro de Otelo).
Ainda que este exemplo seja anedótico, possui diversas semelhanças com o que acontece em vários interrogatórios nos EUA, em que o foco central não é o apuramento da verdade, mas a obtenção de uma confissão custe o que custar.108 A abordagem profundamente confrontativa, manipulativa e intimidatória da Técnica Reid, disseminada pela maioria das forças policiais e militares dos EUA, coage muitos suspeitos a confessar crimes graves que não cometeram, incluindo homicídios e violações.
Existem dois motivos fundamentais que induzem os sujeitos a fazer confissões falsas. Na maioria dos casos, o entrevistado não é capaz de lidar com a pressão exercida pelos interrogadores e a confissão serve para escapar ao stresse insustentável da situação; noutros casos, ainda que menos comuns, o entrevistado é manipulado a ponto de acreditar que realmente cometeu o crime, sendo confrontado com um conjunto de provas incontestáveis, todas falsas, do seu envolvimento no evento criminoso.
2.2. Dois desafios adicionais na busca pela credibilidade
Além dos erros de Pinóquio, Brokaw e Otelo, deparamo‑nos com mais dois grandes desafios na busca pela credibilidade. Vou apresentar‑lhe o primeiro desafio por meio de uma pequena experiência. Preparado? Pode começar por se recordar de todas as interações que teve nos últimos três dias, quer tenham sido cara a cara, por telefone ou por e-mail. Depois de fazer uma lista, mental ou por escrito, das pessoas com quem conversou, vai pensar se alguma destas lhe mentiu. É muito provável que, ao lembrar‑se de cada conversa, não tenha considerado que alguém lhe mentiu. É possível, inclusive, que esta questão nem sequer lhe tenha passado pela cabeça, quando estava a dialogar com as pessoas.
Somos seres sociais e precisamos de ter um elo de confiança básico para vivermos de forma plena em sociedade. Muitas pessoas nem sequer conferem o troco que recebem do funcionário do supermercado. A vida seria extremamente desagradável, solitária e desgastante, se estivesse sempre a pensar que as pessoas com que se depara no dia a dia o estão a enganar. Por este motivo, o ser humano possui o viés da verdade, ou seja, a tendência natural para acreditar nos seus pares.
Este fenómeno torna‑nos, na grande maioria dos casos, alheios às mentiras que nos dizem no dia a dia. Em vez de julgarmos de forma objetiva a honestidade das pessoas com base no seu comportamento, acreditamos que nos estão a dizer a verdade. Apenas ficamos atentos à credibilidade do nosso interlocutor, quando observamos comportamentos ou atitudes profundamente incongruentes. Se um desconhecido com cheiro a álcool e a voz arrastada o abordar a dizer que precisa de dez euros para comprar um medicamento para a mãe acamada, vai certamente desconfiar. Contudo, quando os sinais não são evidentes, o viés da verdade opera a nível inconsciente e torna‑o desatento a grande parte das mentiras. Isto não significa que deve adotar uma atitude cínica e desconfiada em relação a todas as pessoas; a maior parte das pessoas com quem interagimos no nosso dia a dia são genuínas e muitas das mentiras a que somos expostos são mentiras sociais irrelevantes. Existem, no entanto, conversas sobre assuntos sérios, que poderão acarretar consequências graves, às quais deverá estar atento.
O segundo desafio acentua a presença do viés da verdade no nosso dia a dia e prende‑se com a relação entre a verdade e a mentira. Numa das experiências práticas que realizo nos meus cursos, os alunos são divididos em entrevistadores, entrevistados e observadores: os primeiros vão avaliar a credibilidade, os segundos vão dizer verdades ou mentiras e os últimos vão analisar, de forma distanciada e objetiva, a dinâmica entre as duas partes. Os entrevistados começam por retirar aleatoriamente uma pedra colorida de um saco preto: a pedra amarela corresponde à verdade e a vermelha à mentira; depois de verem secretamente a cor da pedra e a guardarem no bolso, são questionados pelos entrevistadores sobre um assunto inesperado e têm de responder de acordo com a pedra que retiraram.
Apesar de serem encorajados a mentir quando retiram uma pedra vermelha, uma vez que não existem implicações éticas, quase ninguém consegue dizer grandes mentiras; os alunos dizem a verdade, polvilhada com pitadas de mentiras muito pequenas. Optam pela ocultação de informação e, quando precisam de a falsificar, apenas alteram de forma estratégica alguns pormenores. Na realidade, é como se retirassem uma pedra cor de laranja, pois misturam a pedra vermelha da mentira com a pedra amarela da verdade! É curioso que esta situação não suceda apenas com os cidadãos comuns e as suas mentiras quotidianas, mas também com os criminosos que mentem durante as entrevistas forenses.
Portanto, este entrelaçamento da verdade com a mentira é o segundo grande desafio: como a mentira ocorre apenas em momentos muito cirúrgicos, a diferença entre as pessoas que mentem e as que dizem a verdade torna‑se mais subtil. Observemos um exemplo: um homem, ao ser questionado sobre as suas atividades na terça‑feira à noite, pode ocultar que esteve a traficar droga e descrever o que fez no dia anterior. Logo, se foi ao ginásio na segunda‑feira à noite, pode mencionar que realizou esta atividade na terça‑feira à noite e relatar a sua experiência real de treino. A história é quase toda genuína, com apenas uma pequena, mas vital, mentira incorporada. Os detetores da mentira têm de estar muito atentos para evitar que a parte enganosa da história passe despercebida (quando foi ao ginásio), em detrimento da parte verdadeira (o que fez no ginásio).
Em suma, deparamo‑nos com dois grandes desafios que, quando combinados, dificultam em larga escala a deteção da mentira: temos uma propensão natural para acreditar nas outras pessoas e só nos damos conta da necessidade de avaliar a credibilidade quando existem provas muito claras; porém, como a maioria das mentiras contém um fundo de verdade, os sinais comportamentais são pouco evidentes. No capítulo sobre o modelo ABC‑READ, iremos analisar algumas estratégias para lidar com estes desafios.
2.3. A sobrecarga psicológica e os pontos de interesse
Imagine que foi buscar ao aeroporto uma amiga que acabou de chegar de umas férias paradisíacas. Dirigem‑se a um café e ela começa a narrar, de forma entusiástica e com pormenores vívidos, todas as suas aventuras, utilizando um tom de voz elevado e animado, expressões faciais de alegria e gestos ondulantes e expansivos. Será esta história genuína? É muito provável que ela esteja a ser autêntica, dado que observamos uma grande congruência entre as expressões faciais, os movimentos corporais, as palavras e o tom de voz. A sintonia entre o que ela está a sentir e o que está a pensar torna o fluxo de informação fluido, espontâneo e consistente com a narrativa, com o contexto e com a sua linha de comportamento base: é precisamente o que ocorre quando alguém está a dizer a verdade.
A dada altura da conversa, pergunta‑lhe se conheceu pessoas interessante nas suas aventuras e, no preciso momento em que ela diz «Várias pessoas simpáticas», o volume da voz baixa levemente, exibe uma expressão facial subtil de tristeza e para de gesticular. O que terá sucedido? Estes comportamentos são incongruentes com o contexto envolvente, uma vez que estavam animadamente a conversar num ambiente informal e amistoso. É também uma variação significativa da linha base da sua amiga o comportamento natural que adota quando está consigo num ambiente descontraído; ela é tipicamente muito expressiva e esteve animada durante toda a conversa. Finalmente, é incoerente com o conteúdo verbal, visto que a frase «Várias pessoas simpáticas» não está em sintonia com a conduta não verbal apresentada.
Dado que os comportamentos da sua amiga (redução do volume da voz, expressão facial de tristeza e paragem dos gestos) não são explicados por estes três fatores, podem ser considerados Pins. Quanto maior o seu número, maior a probabilidade de a pessoa estar a fabricar ou ocultar informação.
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