Num mundo onde os elogios à excelência se confundem frequentemente com expectativas de perfeição, a psicóloga clínica Ellen Hendriksen propõe uma abordagem diferente: realista, humana e prática. No livro Como ser bom o suficiente (edição Nascente) a autora oferece ao leitor um guia estruturado para quem vive sob a pressão constante do perfeccionismo e da autocrítica.

A autora parte de uma constatação comum, embora pouco discutida em profundidade, a de que muitas pessoas bem-sucedidas, admiradas pelo seu desempenho e dedicação, vivem em silêncio com um sentimento persistente de falhanço. Este paradoxo é, segundo Hendriksen, o verdadeiro rosto do perfecionismo.

No livro, a psicóloga desmonta a ideia tradicional de que o perfecionismo se traduz numa tentativa de alcançar padrões impossíveis. Em vez disso, descreve-o como uma luta contínua com a sensação de nunca ser suficiente. O foco não está tanto na busca por perfeição, mas na tentativa constante de evitar críticas, sobretudo as que se dirigem para dentro.

A autora delineia sete mudanças comportamentais e cognitivas que visam transformar esta experiência: da autocrítica para a benevolência, do controlo para a autenticidade, da procrastinação para a produtividade, entre outras. O objetivo não é abdicar da excelência, mas aprender a conviver com a falibilidade humana de forma saudável e produtiva.

 Ellen Hendriksen é psicóloga clínica no Center for Anxiety and Related Disorders (CARD) da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, instituição de referência no estudo e tratamento da ansiedade. Doutorada pela Universidade da Califórnia em Los Angeles, concluiu a sua formação na Harvard Medical School. Vive atualmente com a sua família na área metropolitana de Boston.

Do livro, publicamos o excerto abaixo:

As múltiplas saladas de perfecionismo

Da mesma forma que uma salada pode ser panzanella, César ou de fruta, também o perfecionismo tem manifestações de uma diversidade infinita. Se juntar uma centena de pessoas que lutam contra o perfecionismo, vou mostrar‑lhe cem formas diferentes de se ser perfecionista. Por exemplo, apesar de alguns de nós estarem vocacionados para os detalhes (vemos as gralhas nos textos, as gafes de etiqueta e quadros tortos que mais ninguém vê), o mesmo não sucede com toda a gente. Outros tentam fazer tudo sozinhos — somos péssimos a pedir ajuda, a aceitar favores ou a delegar. Outros ainda esforçam‑se muito por mostrar boa cara; está tudo bem, independentemente de como de facto nos sentimos. As combinações são infinitas e os fenótipos resultantes podem ser tão diferentes como niçoise e tabule.

Grande chamada de atenção aqui: não há juízos de valor morais quanto a qualquer dos traços e hábitos do perfecionismo. Quase todas as tendências que iremos discutir neste livro são modos úteis e gratificantes de funcionar no mundo. Só começam a funcionar contra nós quando os nossos hábitos se tornam rígidos e as nossas expectativas passam a ser irrealistas. Vamos repetir: nenhuma das nossas tendências é inerentemente má. Na verdade, a maioria é bastante boa. Tudo se resume ao que fazemos com elas.

Há uma epidemia que nos está a esgotar: o perfeccionismo. As explicações do psicólogo Thomas Curran
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Mas estou a divagar — regressemos às saladas. Uma vez mais, há variedades infinitas de saladas e de pessoas com perfecionismo. No entanto, da mesma forma que qualquer salada mantém algumas características básicas (uma seleção de ingredientes ligados por um molho comum), o perfecionismo está ligado por tendências comuns. Um fluxograma vale mil palavras. Este baseia‑se na investigação que os doutores Roz Shafran, Zafra Cooper e Christopher Fairburn realizaram quando eram colegas na Universidade de Oxford. É uma matrioska psicológica das duas tendências centrais de sobrevalorização e autocrítica envoltas em camadas de padrões pessoais exigentes, juízos de si mesmo do tipo “tudo ou nada” e a evitação. Quando o mostro aos meus clientes, quase todos dizem: “Ei, é exatamente isso que faço”.

Mas espere, há mais. Na literatura, no meu consultório e no presente livro, podemos identificar sete tendências comuns que acompanham este ciclo. Apesar de nem todas as pessoas que sofrem de perfecionismo se reverem na totalidade dos sete domínios abaixo, aposto consigo que se identifica com muitas das frases que se seguem, algumas parafraseadas de questionários de autorrelato validados.

De facto, quanto mais vezes os seus olhos se arregalarem de reconhecimento nos exemplos, mais provável será o perfecionismo desempenhar um papel na sua vida, tanto a nível individual como interpessoal.

As múltiplas saladas de perfecionismo
As múltiplas saladas de perfecionismo créditos: Nascente

Em primeiro lugar surge aquela relação hipercrítica consigo mesmo, que pode extravasar para ser rígido também com os outros. Talvez se reveja em algumas das seguintes declarações:

- Tendo a recriminar‑me, a sentir‑me exageradamente culpado ou a entrar em pânico quando cometo um erro ou faço algo mal.

- Levo as situações mais a peito do que a maioria das pessoas — fico a pensar durante muito tempo nos problemas, erros ou conflitos.

- Penso com frequência que o meu trabalho, desempenho ou as minhas ideias não são suficientemente bons.

- Quando sou criticado, tendo a fechar‑me, culpar os outros ou a tornar‑me defensivo.

- Já me disseram que sou controlador, dado à microgestão, demasiado picuinhas, ou demasiado crítico.

- Admito que posso ser crítico, quer tácita quer explicitamente.

Por isso, na Mudança 1, “Da (Auto)Crítica à Benevolência”, vamos aprender a ser menos duros connosco. Vamos parar de andar sempre a tentar consertar‑nos.

Vamos também parar de tentar consertar as pessoas que nos são mais próximas (aqui entre nós: não é que algum de nós faça isso). Vamos desafiar os mitos da crítica e aprender que chegámos onde chegámos apesar de nos julgarmos a nós mesmos.

A seguir vem a sobrevalorização. Identificamo‑nos excessivamente com o nosso desempenho. A nossa qualidade enquanto pessoas sobe e desce quando cumprimos, ou não conseguimos cumprir, todas as expectativas exigentes que estabelecemos para nós mesmos. Sobrevalorizamos porque procuramos aceitação e ligação com os outros. No entanto, contraintuitivamente, todo o esforço e dedicação constituem obstáculos a que nos sintamos próximos dos outros, além de ser mesmo muito stressante. Talvez estas afirmações o façam anuir com a cabeça:

- O meu desempenho (trabalho, notas, forma física, aparência, casa, coisas que faço por divertimento, etc.) afeta a opinião dos outros quanto ao meu caráter, moral ou a mim enquanto pessoa.

- Não existe uma verdadeira diferença entre dar o meu melhor e fazer as coisas bem.

- Costumo ver‑me como uma pessoa com valor, mas quando tenho um mau desempenho, por vezes sinto‑me imprestável ou que algo está mal em mim.

- Se não compreendo algo ou não o consigo fazer bem imediatamente, tenho tendência a culpar‑me.

- Crio expectativas ou prazos impossíveis para mim, e depois fico stressado quando não os consigo cumprir.

- Mesmo quando faço algo cuidadosamente, sinto muitas vezes que não está perfeito.

- Tenho de estar a trabalhar em prol de um objetivo ou de uma conquista para me sentir bem comigo mesmo.

- Estou sempre a trabalhar para melhorar alguma coisa (a minha saúde, o meu sono, o meu guarda‑roupa, a minha vida social, o meu rendimento, etc.).

Por isso, na Mudança 2, apropriadamente chamada “Regressar à Sua Vida”, vamos mudar de “Sou o que faço” para viver com significado. Vamos mudar o foco dos nossos relacionamentos e talvez até divertir‑nos no processo.

As múltiplas saladas de perfecionismo
As múltiplas saladas de perfecionismo créditos: Nascente

Em terceiro lugar, orientamo‑nos em direção às regras. Os deveres da vida chamam‑nos. Apressamo‑nos a concentrar‑nos nos presumíveis deveres e responsabilidades, e ou os abordamos com o ímpeto de quem gosta de riscar itens da lista ou ficamos paralisados pela evitação. Por exemplo, o leitor e um amigo podem ter a mesma regra pessoal a respeito de manter uma casa limpa na perfeição, mas pode manifestar essa regra através de bancadas imaculadas e tupperwares organizados, enquanto ela encolhe os ombros, declara “Se não consigo fazer tudo, para quê tentar?” e vive na desarrumação. Nessa senda, talvez algumas destas frases lhe pareçam familiares:

- Gosto de saber quais são as regras e expectativas, para as poder seguir.

- Já me chamaram teimoso, rígido, ou uma pessoa que não muda.

- Acho que é importante fazer as coisas devidamente ou da forma certa.

- Espero um melhor desempenho nas minhas tarefas diárias do que a maioria das pessoas.

- Quando sinto pressão para fazer algo, por vezes resisto ou revolto‑me ao fazê‑lo com relutância ou até ao não fazê‑lo.

Por isso, na Mudança 3, “Das Regras à Flexibilidade”, vamos rescrever o Livro de Regras Interior, parar de transformar os nossos quereres em deveres, diminuir a responsabilidade excessiva para mera responsabilidade, bem como descobrir porque empancamos e como nos podemos desbloquear.

Em quarto lugar, focamo‑nos nos erros; esforçamo‑nos muito para prevenirmos os futuros, e temos uma mágoa profunda por aqueles que cometemos no passado. Considere as seguintes afirmações:

- É frequente ficar preocupado por causa de algo que disse ou fiz.

- Quando cometo um erro, tendo a fechar‑me, culpar os outros, ou assumir uma postura defensiva.

- Pergunto aos outros se acham que estou a sair‑me bem ou se estou a fazer tudo bem (busca de reafirmação).

- Sinto os erros como fracassos pessoais; indicam algo de negativo a respeito do meu caráter.

- Tendo a pedir demasiadas vezes desculpa ou a nunca pedir desculpa.

- Levo as coisas mais a peito do que a maioria das pessoas; os erros, problemas, ou conflitos ficam‑me na cabeça durante muito tempo.

- Posso ficar empancado, sem conseguir avançar, quando tenho de tomar uma decisão (seja ela pequena, como por exemplo, que presente vou comprar, ou grande, como por exemplo, que oferta de emprego devo aceitar).

Assim, na Mudança 4, “Erros: De Ficar Agarrado a Abrir Mão”, vamos aprender a perdoar os nossos erros e arrependimentos do passado, bem como que os erros e lutas não são pessoais.

Em quinto lugar vem o facto de procrastinarmos. Este é bastante simples:

- Adio tarefas que me fazem sentir ansioso, incapaz, ou assoberbado.

- Se não sei como hei de fazer algo, onde começar, ou se serei bem‑sucedido, fico empancado.

- É frequente trabalhar em aspetos inconsequentes quando devia estar a concentrar‑me em objetivos ou tarefas mais importantes.

- Sofro regularmente de procrastinação.

Na Mudança 5, “Da Procrastinação à Produtividade”, vamos aprender que protelar não tem que ver com gestão de tempo, mas com a gestão de emoções e a ligação com o nosso eu futuro.

Em sexto lugar, tendemos a comparar‑nos com os outros. Também é bastante simples.

- Costumo sair de interações ou das redes sociais a sentir que não sou suficientemente bom.

- Utilizo os sucessos e fracassos dos outros para determinar se me estou a sair suficientemente bem.

- Comparar‑me com os outros faz‑me sentir isolado ou sozinho.

As comparações são inevitáveis, mas na Mudança 6, “Da Comparação ao Contentamento”, vamos deixar de sair das comparações a sentir que somos irremediavelmente inadequados ou problematicamente superiores.

Por fim, a nossa motivação para fazer tudo bem também se aplica às nossas emoções:

- Quando me deparo com dificuldades, digo a mim mesmo que não posso sentir‑me mal porque há outras pessoas em pior situação do que eu.

- Espero ser capaz de fazer tudo bem e com facilidade — não devia sentir‑me

ansioso, inseguro, pouco confiante, nem preocupar‑me com o que os outros pensam.

- Quando fico perturbado ou descontrolado, tendo a pensar que estou a fazer alguma coisa mal ou que algo está errado comigo.

- Abordo o lazer, a socialização ou os passatempos como tarefas que devo fazer bem ou experienciar de uma determinada forma (“Devia estar descontraído”, “Devia estar feliz e despreocupado”, “Devia estar presente no momento”).

E em como mostramos as nossas emoções aos outros:

- Digo aos outros que estou bem quando não estou.

- É uma grande vergonha perder o controlo de mim mesmo (por exemplo, chorar em frente aos outros, perder a calma, parecer ansioso).

- À superfície, tento parecer confiante ou despreocupado, mesmo quando, no fundo, estou em pânico ou a trabalhar freneticamente.

- Rio‑me, pareço preocupado, ou reajo de outra forma adequada porque é o modo correto de reagir à situação, e não porque me sinta de facto assim.

Por conseguinte, na Mudança 7, “Do Controlo à Autenticidade”, vamos questionar a ideia de que existe um sentimento correto para qualquer situação, também chamado perfecionismo emocional, e um modo invulnerável de nos comportarmos, a chamada autoapresentação perfecionista.

Vamos analisar como podemos evocar segurança social e ser autênticos, tanto sozinhos como com os outros. No entanto, antes de entrarmos em tudo isso, vamos olhar para trás, para as origens da nossa constelação pessoal de perfecionismo. Chegámos aqui com boas intenções, por isso vamos refazer o caminho em sentido inverso e ver como tudo começou.

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