Existe uma crença e mito popular que as vítimas de violência doméstica são pessoas - normalmente mulheres-, com poucas habilitações literárias, poucos recursos económicos e que são extremamente frágeis. Tende-se mesmo a valorar judicialmente o depoimento de uma vítima que chora enquanto fala, que treme e apresenta naturalmente uma postura física debilitada.
Esta é realmente uma possível postura, mas que corresponde a um rótulo perfeito para as vítimas serem entendidas e reconhecidas como tal e, por isso mesmo, merecem a atenção e voto de credibilidade da Justiça quando o seu depoimento é corroborado pelos depoimentos das restantes testemunhas de acusação e outros meios de prova eventualmente existentes no processo.
O problema está quando nos deparamos com vítimas que não correspondem a este perfil, que é de facto um estereótipo.
É que não existe um perfil de vítima, mas antes pessoas com diferentes personalidades, diferentes formas de sentir e reagir perante os problemas, mormente perante uma situação de violência doméstica.
Ora, as habilitações literárias existentes, senão mesmo a elevada literacia científica, e possível existência de altos cargos profissionais não podem nunca ser encaradas como características de uma pessoa que possam excluí-la da possibilidade de ser vítima de violência doméstica.
Ao contrário, o flagelo da violência doméstica é passível de se instalar em todas as esferas e/ou camadas sociais e profissionais, pelo que as vítimas e agressores são provenientes de qualquer condição socioeconómica. Por conseguinte, a violência doméstica é transversal aos diferentes padrões culturais, religiosos, económicos, profissionais, etc.
Algo diferente é a constatação, comum a diferentes estudos e estatísticas, de que a violência doméstica ocorre mais frequentemente nos meios socioeconómicos mais desfavorecidos, o que pode ser um efeito de fatores culturais e educacionais mais fortemente legitimadores da violência, presentes nestes meios socioculturais ou, simplesmente, um efeito da maior visibilidade que vítimas e agressores destes meios mais desfavorecidos têm, dado que, por falta de alternativas económicas e sociais, tendem a recorrer mais às instâncias públicas de apoio a vítimas e a evitar a exposição às instâncias judiciais e apoio social.
Por outro lado, existem ainda pessoas que apesar de vítimas de atos de violência de extrema gravidade, ao reproduzirem verbalmente perante terceiros os factos ocorridos não deixam transparecer as suas vulnerabilidades. Aqui encontramos as vítimas que tendencialmente falam alto, com alguma hostilidade, que se impõem nas suas convicções e que não respondem às questões colocadas da forma pretendida pelos juízes ou que respondem com afirmações distorcidas por forma a mostrarem, ainda que inconscientemente, a sua indignação e revolta perante a situação vivenciada, e que podem gesticular ou não na sua verdade. Estas não são menos vítimas que as outras! E de forma alguma podem sentir que o sistema as ridiculariza e subestima naquilo que são, no que fazem e no que dizem, sentindo vergonha de se expor e falar, acompanhadas de um sentimento de inferioridade que inevitavelmente se instala e em nada abona na resolução do problema.
O depoimento das vítimas deve ser apreciado, aceite e valorado na diversidade e individualidade de cada vítima com um claro respeito pela diferença e pelo direito à igualdade e não discriminação.
A ideia que existe um perfil de vítima é fictícia e absolutamente irreal. O problema da violência doméstica é um flagelo instalado na nossa sociedade e as pessoas, vítimas de diferentes quadrantes, têm variadas formas de sentir os problemas e de reagir perante eles, independentemente das suas habilitações literárias, profissões, condições económicas e sociais. Mas todas merecem igual respeito, tratamento e reconhecimento!
Um artigo de opinião da Advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.
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