No final de cada ano é habitual fazer-se uma reflexão a respeito das coisas positivas e negativas ocorridas ao longo do ano e que inevitavelmente foram marcantes.

No ano 2024, eu destaco como sendo digno de registo o caso trazido a público da mulher guerreira Giséle Pelicot, vítima sobrevivente de violência sexual por parte do marido e vários homens angariados por aquele.  

Esta mulher suportou crimes praticados contra ela absolutamente hediondos e injustificáveis, diria mesmo absolutamente impossíveis de compreensão. A sua força e coragem para responsabilizar judicialmente os homens que a violaram ergueram muitas vozes e movimentos a enaltecer a sua determinação na responsabilização judicial dos homens que a violaram.

Sabe-se que a violência sexual é uma realidade que as vítimas, na sua grande maioria mulheres, tendem a esconder por vergonha, por temerem a exposição da sua intimidade e por temerem juízos de valor da sociedade em geral e suas implicações. Por isso, a violência sexual confina-se habitualmente ao ato em si e às consequências existentes apenas para as suas vítimas que dificilmente têm coragem para apresentar queixa do crime cometido. Como resultado, os agressores continuam impunes!

Os agressores sexuais de mulheres são homens e tendencialmente são pessoas conhecidas das vítimas, quase sempre maridos, companheiros, pais, etc. Precisamente por isso é-lhes muito difícil enfrentar o seu agressor. 

No âmbito das relações de intimidade a violência sexual dos homens para com as mulheres é gritante e continua a ser uma realidade totalmente camuflada e legitimada pela nossa sociedade que persiste em dormir sobre valores de género estereotipados, patriarcais, segundo os quais a vontade da mulher nada importa, valores absolutamente violadores dos direitos humanos das mulheres. 

Pois bem, Giséle Pelicot foi capaz de erguer a sua voz e transmitir às outras vítimas e ao mundo que as mulheres vítimas de violência sexual não têm de ficar em silêncio. Esta guerreira e sobrevivente passou a mensagem muito clara que todas as vítimas sobreviventes de violência doméstica e sexual merecem Justiça e não devem ficar reféns da vergonha pelo abuso e violência que lhes foram infligidos. A própria afirmou que “a vergonha deve mudar de lado”. Ou seja, os agressores é que têm de sentir vergonha das suas condutas, não as vítimas!

Tendo consciência que a voz de Giséle Pelicot não é suficiente para mudar mentalidades de um momento para o outro, espero sinceramente que seja mais uma voz promotora da mudança que tem teimado em não acontecer em Portugal no que tange à realidade das mulheres vítimas de violência sexual. A vergonha há que dar lugar à coragem e à luta pela dignidade!

Um artigo de opinião da advogada Ana Leonor Marciano, especialista em Direitos Humanos, violência de género, violência doméstica, Direitos das crianças.