No momento em que a saúde mental ocupa um lugar central no debate público, o novo livro de Sarah Davies apresenta-se como uma ferramenta para quem viveu — ou vive — sob o peso de um relacionamento abusivo. Como se libertar de um narcisista (edição Nascente) apresenta-se como um guia prático destinado a ajudar vítimas a reconhecer os padrões de abuso narcísico e a recuperar o controlo das suas vidas.

Davies — psicóloga e terapeuta especializada em trauma — guia o leitor através das principais características do narcisismo, desde os comportamentos mais subtis até às formas mais evidentes de manipulação emocional. A autora destaca a alternância entre sedução e crueldade como uma das marcas mais destrutivas do abuso narcísico, gerando confusão, desgaste psicológico e uma erosão profunda da autoestima.

Sarah Davies leva para o livro a sua própria experiência de vida: "Conheci o abuso narcísico em primeira mão. Eu própria percorri a jornada da recuperação e continuo a fazê-lo na qualidade de psicóloga clínica e terapeuta de trauma, com muitos pacientes com quem trabalho em consulta", lemos na introdução à obra. No mesmo excerto, a autora enfatiza: "Estar envolvido com uma narcisista assemelha-se muito a andar numa montanha-russa: há altos e baixos, e por vezes é empolgante e divertido, enquanto noutras é absolutamente horrível e assustador. E, tal como numa montanha-russa, se estivermos lá durante muito tempo, passamos mal".

O livro oferece ferramentas concretas para que os leitores aprendam a identificar sinais de alerta, quebrem padrões de codependência e desenvolvam competências emocionais e comunicacionais que lhes permitam proteger-se e curar-se. Temas como o trauma, a gestão emocional e a reconstrução da autoestima são abordados com sensibilidade e pragmatismo.

Sarah Davies, que mantém uma clínica em Londres e escreve regularmente para publicações como The Guardian, Daily Mail e Cosmopolitan, baseia-se numa experiência clínica alargada para oferecer um suporte técnico, mas humano.

Esta publicação junta-se ao mais recente trabalho da autora, Raised by Narcissists (2024), onde explora o impacto do narcisismo parental.

Do livro, publicamos o excerto abaixo.

Narcisismo vulnerável

O narcisista vulnerável caracteriza-se por um tipo de atuação ligeiramente diferente e, sem dúvida, um pouco mais difícil de identificar. Essencialmente, partilha a mesma patologia de base que o narcisista grandioso, ou seja, tem um ego e uma autoestima frágeis, resultantes do mesmo tipo de danos precoces. (Abordaremos este tópico em breve.) No entanto, o narcisista do tipo vulnerável apresenta-se como mais inocente e frágil. Pode falar baixinho, ser sedutor, gentil, despretensioso, talvez até tímido, reservado, sensível, encantador, meigo e prestável. O medo e a vulnerabilidade, profundamente enraizados, são mascarados por uma série de técnicas de controlo e manipulação, mais subtis do que as observadas no narcisista grandioso. Isto inclui tentar satisfazer as próprias necessidades fazendo-se passar por atencioso e prestável, até mesmo altruísta. É o salvador. Pode acontecer que se mostrem muito generosos, que ofereçam presentes e dinheiro, já que usam o estatuto financeiro para ganhar poder e controlo. Conseguem envergonhar os outros de várias formas subtis e indiretas. Fingem ou utilizam a doença ou problemas de saúde (reais ou imaginados) para obterem simpatia, cuidado e preocupação, por exemplo, ou culpabilizam os outros para ganharem controlo e verem as suas necessidades satisfeitas. Podem, ainda, encontrar formas subtis e indiretas de receber atenção, simpatia ou admiração, o que poderá incluir usarem o amor ou o sexo como forma de controlo ou manipulação. O narcisista vulnerável pode ser um verdadeiro sedutor silencioso. Todas as técnicas são utilizadas, em última análise, para satisfazer as suas próprias necessidades de suprimento narcísico.

Como superar e sobreviver a uma relação tóxica? A norte-americana Stephanie Sarkis ajuda-nos em dez passos
Como superar e sobreviver a uma relação tóxica? A norte-americana Stephanie Sarkis ajuda-nos em dez passos
Ver artigo

O narcisista vulnerável é, com frequência, o mártir que sacrifica as próprias necessidades pelos outros (e se, ao menos, toda a gente visse e apreciasse esta atitude!). Para o narcisista vulnerável, é mais fácil apresentar as suas "fraquezas" ou "vulnerabilidades" do que para o narcisista grandioso. Assim, o narcisista vulnerável terá todo o gosto em contar histórias de como foi vitimizado, maltratado por terceiros, incompreendido, explicando como a vida lhe é difícil e como a culpa é dos outros. Mais uma vez, tudo isto com o objetivo final de manipular e controlar, a fim de receber a atenção, o afeto e a simpatia que julga tão necessários ao estado frágil do próprio ego. O narcisista pode apresentar uma mistura dos dois.

A partir da minha prática clínica e da minha experiência, identifiquei uma série de perfis narcísicos de tipo vulnerável, descritos abaixo em pormenor. Estes perfis são mais difíceis de detetar do que o vulgar narcisista de tipo grandioso, que é arrogante e explícito. No entanto, são igualmente — e, em alguns aspetos, mais — perturbadores, uma vez que, frequentemente, estes tipos de personalidade demonstram qualidades aprazíveis e atrativas, sendo, ao mesmo tempo, controladores e manipuladores, o que só aumenta a confusão de qualquer pessoa que com eles se relacione. Um aspeto importante a ter em conta é que os narcisistas podem ter mais do que um tipo de perfil vulnerável: o leitor pode reconhecer as características de dois ou mais perfis na mesma pessoa.

O focado em conquistas

O narcisista focado em conquistas procura aqueles que têm estatuto ou contactos, com um emprego desejável ou importante. Tudo o que tende a importar para este subtipo é o que se faz na vida, bem como o que se tem ou possui. Nada é suficiente para um narcisista materialista. Comunica, de várias formas, que o que quer que seja que o leitor conquiste nunca será suficiente. Procuram parceiros que tendam a estar exaustos, que sejam viciados em trabalho, que desempenhem um papel, eles próprios, na procura do contentamento que passa pela chegada evasiva ao que é «suficiente». Neste caso, há muitas vezes um nítido desrespeito pelo bem-estar emocional. Poderão ignorar, ou não reconhecer, a fadiga/stress/cansaço ou as necessidades emocionais do parceiro, defendendo, em vez disso, a ideia de que o amor que lhe dá está dependente de conquistas ou ganhos, nomeadamente por meio de críticas e/ou elogios a conquistas, ou através de demonstrações e/ou supressão de amor e amparo.

Dependência emocional: o que fazer quando a situação passa todos os limites?
Dependência emocional: o que fazer quando a situação passa todos os limites?
Ver artigo

"O meu companheiro raramente ajudava nas tarefas domésticas. Eu tinha um emprego importante, com uma carga horária pesada, um trabalho exigente, e chegava a casa num nível de exaustão e stress enormes. Ele ficava em casa, só a administrar a propriedade que tínhamos. Quando eu chegava a casa, estava tudo desarrumado (apesar de termos empregados de limpeza), não havia comida no frigorífico, nada preparado para o jantar. Ele estava à espera que eu trabalhasse, tratasse da casa e cozinhasse também. Sentia‑me exausta. Agora, que penso nisso, estava no meu limite. Não sei como é que aguentei. Mas sentia a obrigação de agradar. De não o desiludir. Não o queria desiludir. Se mostrasse cansaço ou que estava em esforço, era como se isso fosse uma fraqueza. Quando nos encontrávamos com amigos, ele falava incessantemente do orgulho que tinha em mim, de tudo o que eu conseguia fazer e de tudo o que eu conciliava. Eu sentia que era impossível fazer menos do que isso".

A vítima

O narcisista vulnerável do tipo vítima fica muito satisfeito em mostrar e partilhar as suas "vulnerabilidades" com os outros. Estará, mais ou menos, constantemente a queixar-se de como é ou foi maltratado. Tende a ter um historial de "maus" ex-namorados, relações ou empregos. Todas as relações anteriores, pouco saudáveis ou tóxicas, foram culpa da outra pessoa — ou, pelo menos, é o que afirma. Nunca considera o papel que desempenhou em nenhuma delas. Na sua forma mais abusiva, o tipo vítima queixa-se de que é vítima na relação atual. Aponta o dedo ao parceiro e queixa-se de que ele/ela não é suficientemente compreensivo/a ou atencioso/a para com as suas necessidades; pode até sugerir que é "vítima" da raiva ou das inseguranças dos outros, por exemplo. Mas note-se que são as vítimas e que nunca estão dispostos ou são capazes de assumir a responsabilidade pelo seu papel em nenhuma situação. O objetivo desta atitude é posicionar-se como vítima e, por conseguinte, levar os outros a uma posição de "salvadores" ou levar as pessoas a tomarem medidas que, em última análise, servem as suas próprias necessidades e desejos egoístas.

"Quando conheci o meu companheiro, ele tinha um bom emprego, bem pago, que consideravastressante, mas do qual gostava. Dava‑lhe o estatuto de que, percebo agora, a frágil autoestima deleprecisava em absoluto. Cerca de um ano após o início da relação, ele demitiu‑se, e, nessa altura, decidimos mudar‑nos para outro sítio. Estranhamente, ele passou a referir‑se sempre ao “facto” de ter“desistido do emprego importante dele por mim” e que, por isso, eu deveria estar eternamente grata e em dívida para com ele. Nunca lhe pedi para fazer tal coisa. A decisão nem sequer foi minha. Fiquei confusa com o comportamento dele, mas, como entretanto comecei a ler e a aprender sobre narcisismo ecomporta‑ mento controlador e abusivo, apercebi‑me de que isso era uma parte do problema. Ele estava atentar fazer‑me sentir mal, culpada.

A nossa relação começou a deteriorar‑se. Quando atingi o meu limite, decidi que não aguentava mais a postura controladora dele e, de alguma forma, consegui arranjar forças para o deixar. Dizem que ele continua a culpar‑me pela mudança de carreira dele e —como se não bastasse — faz de mim a má da fita, dizendo que nos mudámos por minha causa e que eu me fui embora e o abandonei! Tanto quanto percebo, ele beneficia de uma série de vantagens ao apresentar‑se como a “vítima”. Os amigos e a família dele mobilizam‑se para o ajudar e oferecem‑lhe simpatia, e todos falam mal de mim como se eu fosse a malvada, a louca. É ele a vítima — coitadinho. É absurdo — é narcisismo".

Amor, culpa e controlo: as
Amor, culpa e controlo: as créditos: Nascente

O resgatador/salvador

O resgatador/salvador é, de facto, um tipo de narcisista que vejo e sobre o qual ouço muito na minha prática profissional. Curiosamente, as pessoas parecem estar, ou envolver-se, em relações com um narcisista vulnerável do tipo resgata- dor/salvador em alturas em que elas próprias estão vulneráveis — provavelmente, quando acabam de se separar ou divorciar, quando estão de luto ou numa altura particular- mente stressante no trabalho. O salvador costuma surgir, é quase certo, num momento em que a pessoa se encontra mais vulnerável. Aparece, qual cavaleiro de armadura reluzente, pronto a cuidar, proteger e tomar conta de um novo parceiro. Trata-se de uma variante do bombardeamento de amor (love bombing) — para ser mais precisa, do bombardeamento de cuidados (care bombing) — e, com toda a franqueza, se for posto em prática num momento de necessidade, é bem recebido e algo a que é fácil sucumbir. No entanto, tal como acontece com o bombardeamento de amor, nas fases iniciais, isto acaba por criar uma dependência pouco saudável, pois, com o tempo, o narcisista salvador torna-se controlador.

"Tinha‑me divorciado há pouco tempo quando conheci o Michael. Tinha estado numa relação emocionalmente abusiva, e foi um divórcio amargo e arrastado. Estava exausta. Depois, apareceu o Michael e eu nem queria acreditar na minha sorte! Era romântico, carinhoso e atencioso. Comprava‑me presentes, vinha cozinhar para mim depois do trabalho — na verdade, ia levar‑me e buscar‑me ao trabalho. Ajudou‑me a recuperar financeiramente. Não tardou a pagar contas da casa, por sua insistência, e depois mudou‑se lá para casa, seis meses depois de nos conhecermos. Pensando bem, eu estava tão abatida com a minha relação anterior, que nem sequer tinha energia para dizer “não” a qualquer uma das suas sugestões. Deixei‑o fazer tudo o que queria. Para ser sincera, foi muito bom ter alguém tão carinhoso e atencioso na altura, porque era o oposto de como as coisas tinham acabado com o meu parceiro anterior. Mas com o tempo, à medida que me fui sentindo melhor e mais forte, comecei a aperceber‑me de como ele era extremamente controlador. Ele queria — aliás,eu diria que precisava — fazer quase tudo por mim. Eu mal conseguia respirar. Se insistisse que queria comprar a minha própria comida ou ir sozinha para o trabalho, ele mostrava‑se desconfiado, discutia, ficava chateado ou ressentido. Era incrivelmente carente. Tinha muitos acessos de culpa. Comecei a sofrer de ansiedade e ataques de pânico quando me apercebi de que estava noutra relação abusiva — ele aproveitou‑se de mim quando eu me encontrava vulnerável. Foi então que procurei ajuda profissional para acabar com estes padrões de uma vez por todas. Pensei: Eu preciso definitivamente de deixar este tipo de relação!"

O dependente

A dependência é um traço transversal às pessoas narcísicas e, normalmente, é bastante fácil de identificar em potenciais parceiros. No entanto, incluí este aspeto nos perfis vulneráveis porque pode ser uma condição usada para manipular e prender os parceiros de maneira ligeiramente mais subtil. Com isto quero dizer que o narcisista dependente espera que o parceiro o ajude, o salve, o conserte ou que, de qualquer outro modo, assuma a responsabilidade pelos seus atos. A dependência, sob qualquer forma, é essencialmente um comportamento narcísico. Os toxicodependentes em situação de dependência ativa são egoístas e egocêntricos, e estão focados em obter e desfrutar da próxima dose — independentemente da droga escolhida. Isto envolve toda uma panóplia de manipulações para manterem a dependência. O narcisista dependente procurará colocar o parceiro numa posição de salvador, cuidador ou solucionador, fazendo-o, normalmente, sentir-se culpado. Muitas vezes, também recorre ao papel de vítima para facilitar a dependência ativa.

Como reconstruir um coração partido? “Tal como no luto por uma morte, também no fim de uma relação há um processo de despedida” - Psicóloga Joana Gentil Martins
Como reconstruir um coração partido? “Tal como no luto por uma morte, também no fim de uma relação há um processo de despedida” - Psicóloga Joana Gentil Martins
Ver artigo

"Quando descobri que a Lucy me tinha traído, fiquei destroçado. Antes disso, tínhamos, a meu ver, uma ótima relação. Ela era bonita, inteligente, divertida, fazíamos muitas coisas juntos, viajávamos, etc. Encontrei mensagens no telemóvel dela e confrontei‑a com o assunto. Primeiro, ficou furiosa: disse que eu é que não estava a agir bem, por não confiar nela e lhe ir mexer no telemóvel. Senti‑me péssimo. Na altura, senti‑me muito mal e culpado por ter mexido no telemóvel dela. Ela fez‑me sentir como se fosse eu quem estivesse louco. Disse‑me que tinha sido um caso isolado, porque eu estivera fora numa viagem de trabalho e ela tinha‑se sentido sozinha. Basicamente, culpou‑me e disse que, se eu não a tivesse deixado sozinha durante uma semana, ela não teria tido necessidade de me trair. Eu disse‑lhe que ia deixá‑la. Então, começou a chorar, em histeria, e a implorar‑me que ficasse… Que estava arrependida e que tinha cometido um erro. Insistiu que precisava de ajuda, que ia fazer terapia e que não voltaria a fazer o mesmo. Senti‑me mal por ela. Conseguia ver que estava a sofrer. Acho que quis acreditar nela. Tive pena e também me senti, em parte, culpado. Voltámos a tentar. Ela foi a uma sessão de psicoterapia, mas voltou a dizer que aquilo não servia para nada e ficou por ali. Os meses foram passando. Já não havia confiança. Três meses depois, encontrei um recibo de um motel e soube que ela continuava a trair‑me e a mentir. Foi nessa altura que tive de acabar tudo".

O psicossomático

O narcisista psicossomático usa dores, doenças e preocupa ções com a saúde — reais ou imaginadas — para garantir que o foco e a atenção estejam nele. A doença e as queixas de sintomas são usadas para controlar e manipular ou mesmo para evitar que o parceiro o deixe.

"Quando percebi que estava numa relação com um parceiro altamente carente e manipulador, comecei a fazer planos para o deixar. Mas, sempre que tentava pô‑los em prática, ele fingia estar doente ou ficava efetivamente muito doente. Foi só à quinta ou sexta vez em que tentei deixá‑lo, e isso aconteceu, que um amigo me chamou a atenção para o facto de se tratar de um padrão evidente. Uma vez, até chegou a marcar uma cirurgia! Estava a tentar fazer‑me sentir culpa para que não o deixasse. No entanto, quando me apercebi deste padrão muito manipulador, deixei‑o na hora e nunca mais voltei atrás!"

Alguns narcisistas oscilam entre as variantes grandiosa e vulnerável, e qualquer um deles terá provavelmente um historial de ex-namorados/colegas "psicopatas"; por conseguinte, fingirá ter sido sempre a vítima. Contudo, se este padrão de relações desastrosas/vitimização existir, diria que há um denominador comum nesse conjunto — e é essa a pessoa de quem deve afastar-se!