
Quem nunca mentiu? A pergunta é desconcertante, mas universal. A resposta, segundo estudos citados por Thomas Erikson, é clara: todos mentimos. E fazemos isto muito mais do que gostamos de admitir. Num simples encontro entre desconhecidos, cada pessoa pode dizer até três mentiras... nos primeiros cinco minutos. A mentira, ao que parece, é uma ferramenta social tão comum como o aperto de mão.
O autor sueco Thomas Erikson, já conhecido pelo livro Rodeado de Idiotas, regressa ao contacto com os leitores com a obra Rodeado de Mentirosos (edição Lua de Papel), título que mergulha no mundo das falsidades, desmistificando o seu uso e os seus impactos. Erikson explora as várias formas de mentira — desde as inofensivas "mentiras piedosas" até às manipulações friamente calculadas. Tudo pode parecer relativo, mas como o autor sublinha, as mentiras, sobretudo as mal-intencionadas, podem destruir relações, minar a confiança e ter consequências devastadoras.
No livro, Erikson classifica os tipos de mentira e analisa-os através de um modelo comportamental que se tornou a sua marca: o sistema das quatro cores — vermelho, amarelo, verde e azul — representando diferentes perfis de personalidade. Esta abordagem, embora simplificada, tem conquistado milhares de leitores em todo o mundo. Segundo Erikson, compreender a forma como cada tipo de pessoa mente (e é enganada) pode tornar-nos não só mais atentos, mas também mais éticos e autênticos.
Além de dissecar os mecanismos psicológicos por detrás da mentira — como a insegurança, o medo da rejeição ou o desejo de poder —, Rodeado de Mentirosos funciona quase como um manual de autodefesa para o quotidiano moderno. O autor alerta para os perigos da desinformação nas redes sociais, os números manipulados em campanhas publicitárias e as “meias-verdades” usadas por partidos políticos, empresas e até instituições públicas.
Apesar de não ter formação académica em psicologia, Erikson é um especialista em comunicação reconhecido internacionalmente. Nos últimos 18 anos, trabalhou com mais de cinco mil líderes e executivos em temas como liderança, influência e comunicação eficaz. As suas sessões de formação passaram por empresas como a Microsoft, a IKEA, a Coca-Cola, a Volvo e até pela Procuradoria-Geral sueca.
Num mundo onde a verdade se dilui facilmente entre “factos alternativos”, estatísticas enviesadas e narrativas convenientes, o autor propõe-nos um polígrafo de bolso.
Do livro, publicamos o excerto abaixo.
Mentirosas infames
Anna Delvey
Anna Delvey, cujo verdadeiro nome é Anna Sorokin, é infame pela sua fraude extremamente hábil e capaz. Anna fez-se passar por uma socialite nova-iorquina abastada e teve um estilo de vida exuberante e luxuoso, para o qual não tinha posses. Os seus feitos são um exemplo extraordinário de como o logro e a manipulação conseguem cativar o público e os meios de comunicação social.
Anna Sorokin nasceu na Rússia e chegou a Nova Iorque em 2014 com sonhos de se tornar uma colecionadora de arte e empresária proeminente. Fazendo-se passar por uma herdeira alemã chamada Anna Delvey, recorreu a uma combinação de charme, confiança e invenções para se infiltrar na elite da cidade e nos seus ambientes mais luxuosos. As suas muitas mentiras baseavam-se na pretensão de que era uma herdeira. Nunca foi revelado de quem nem o que presumivelmente herdaria. Manipulou as pessoas com um nível de controlo tão deslumbrante que posso apenas partir do princípio de que era uma pessoa muito especial.
Um dos exemplos mais extraordinários das fraudes de Sorokin foi a sua tentativa de convencer um banco a emprestar-lhe vinte e dois milhões de dólares para financiar um clube privado de arte. Entregou documentos financeiros falsificados e teceu uma teia de mentiras para apoiar as suas pretensões em como tinha somas avultadas para investir. O banco, porém, começou a desconfiar e negou-lhe o empréstimo. Perguntaram-lhe por que motivo precisava de pedir tanto dinheiro emprestado se já era tão rica…
Mas a tentativa propriamente dita é deveras impressionante. Imagine-se a tentar enganar alguém para lhe dar vinte e dois milhões de dólares. É preciso ter uma boa dose de descaramento.
Sorokin hospedou-se em alguns dos hotéis mais exclusivos de Nova Iorque. Visitava bons restaurantes e exibia a sua aparente riqueza pagando refeições extravagantes. No entanto, muitas das transações dos seus cartões de crédito eram recusadas devido a saldo insuficiente. Para manter a ilusão, convencia frequentemente amigos e conhecidos a pagar as despesas prometendo que os reembolsaria mais tarde, coisa que nunca fazia, claro. Quando falo em amigos e conhecidos, mais valia chamar-lhes recursos. Este tipo de pessoa não tem amigos como o leitor e eu temos.
Uma das suas mentiras mais sensacionais está relacionada com uma conta por pagar no luxuoso Hotel 11 Howard. Depois de ali ter estado hospedada durante vários meses sem pagar a conta, conseguiu convencer o pessoal do hotel de que o seu dinheiro estava temporariamente trancado num fundo fiduciário e que assim que fosse libertado pagaria a despesa total. Mais uma vez, escolheram acreditar nela, apesar de todos os sinais de alarme que disparavam à sua volta.
Sorokin deixara um rasto de contas por pagar e credores à sua passagem e pode estar a pensar que nesta altura deveria querer ser mais discreta, para não atrair atenções sobre si.
Oh, não. Em vez disso, Sorokin decidiu organizar uma grandiosa gala artística, prometendo a presença de artistas famosos e celebridades. Alugou um espaço prestigiado e começou a pedir doações e favores a vários indivíduos e empresas. No entanto, à medida que a data se aproximava, tornou-se claro que muitas das suas pretensões eram mentiras descaradas. Os artistas e celebridades que presumivelmente recrutara nunca tinham tido notícias suas e todo o evento se desmoronou como um castelo de cartas.

Em 2017, o seu esquema desabou completamente, como costuma acontecer com este tipo de fraudes. Anna Sorokin foi detida e acusada de múltiplos crimes, desde roubo a outras ofensas relacionadas com atividades fraudulentas. Durante o seu julgamento, a jovem mulher, que manipulara habilmente toda a gente que a rodeava para seu ganho pessoal, foi finalmente desmascarada e considerada uma fraude.
Em 2019, Sorokin foi considerada culpada e condenada a uma pena de prisão entre quatro e 12 anos. Na altura em que escrevo este livro, já foi libertada da prisão, mas encontra-se em prisão domiciliária, onde continuará durante mais algum tempo. Terá aprendido alguma coisa com os seus erros? Não. A minha análise, depois de estudar detalhadamente as suas atividades, é que estamos perante uma psicopata absoluta.
A sua capacidade para enganar tantas pessoas de forma fria, sem escrúpulos e com tamanha persistência, roubando-lhes quantias exorbitantes, indica traços psicopáticos inconfundíveis. Ser capaz de entrar num banco e pedir vinte e dois milhões de dólares sem a menor hesitação ou tremor exige uma dose de calma quase sobre-humana. Ou uma lesão na parte do cérebro que controla o stresse e o nervosismo (a amígdala, que nos psicopatas nunca está completamente desenvolvida).
Agora estará mais velha, mas não mais sensata. Anna Sorokin está destinada a congeminar novos esquemas à primeira oportunidade que lhe surja, porque é o que os psicopatas fazem. Não vão mudar, nem podem curar-se. Serão sempre predadores que se servem do que o resto de nós tem para oferecer.
Estas palavras parecem-lhe um pouco sinistras? Imagino que sim. E são, de facto, sinistras.
P.S.: Para o caso de querer saber um pouco mais sobre Anna Sorokin, a Netflix fez um documentário sobre a sua vida – Inventing Anna.
Caroline Calloway
Gostava de lhe falar agora de uma das tentativas mais descaradas de chamar a atenção das pessoas. Esta história não é sobre uma pessoa imaginária, mas sim de uma bastante real que tentou apresentar-se como sendo consideravelmente mais interessante do que era de verdade. Caroline Calloway é uma personalidade das redes sociais e influenciadora que se tornou famosa pelas suas aclamadas histórias e publicações no Instagram. É uma contadora de histórias cativante que atingiu um alcance e popularidade enormes e as suas publicações retratam uma vida aparentemente idílica.
Repare que estou a usar o presente do indicativo para lhe falar dela. Leia até ao fim e veremos o que pensa sobre tudo isto. Um dos aspetos mais significativos da presença online de Caroline é a sua capacidade para tecer histórias cativantes. Nos idos de 2014, conseguiu alcançar um público enorme, presumivelmente devido aos detalhes extraordinariamente íntimos que partilha sobre a sua vida. Estas publicações foram a base da sua próspera carreira enquanto influenciadora.
Em publicações e legendas cuidadosamente elaboradas, Caroline apresenta-se como uma jovem mulher liberal com paixão pela literatura que se dedica a explorar o mundo. Exibe frequentemente o seu estilo de vida boémio, a bebericar chá matcha ou a apanhar banhos de sol num mar de flores. As suas publicações recolhem uma sensação de deslumbramento e admiração por parte dos seus seguidores. É tudo tão lindo, tão maravilhoso.
No entanto, à medida que o tempo se passa, as publicações de Caroline começam a suscitar dúvidas. Há qualquer coisa nesta história que não parece certo. Uma das coisas que parece desejar mais do que tudo é ter uma carreira enquanto autora e uma das polémicas mais notáveis centra-se em redor da sua Creative Workshop Tour de 2019. Concebida como uma série de workshops criativos em várias cidades dos Estados Unidos, o evento termina submerso em caos e provoca uma onda generalizada de críticas que mais tarde recebe o popular epiteto de Tourgate. (Sim, desde Watergate, todos os grandes escândalos terminam em – gate.)

A digressão de Calloway é caracterizada pela falta de planeamento e organização. Os eventos organizados são no mínimo dúbios e os participantes furiosos dão por si em locais desorganizados em que os materiais e/ou experiências prometidas nem sequer aparecem. Alguns dos participantes que nunca receberam aquilo que por pagaram descrevem o evento como uma fraude. Há imensa raiva por entre as pessoas.
Calloway só piora os problemas ao descrever, erroneamente, e de forma consistente, no Instagram como a digressão está a correr bem. Como acontece com todas as suas atividades, exagera tremendamente a popularidade, o entusiasmo e o número de pessoas que aparecem nos seus eventos. Na sua página de Instagram, tudo parece maravilhoso. Todavia, a realidade dos eventos não se assemelha sequer ao que ela descreve.
Por entre as críticas ferozes e as interações inflamadas com os fãs e participantes, a visão do público sobre o que aconteceu durante a digressão torna-se cada vez mais difusa – a linha entre a ficção e a realidade quase se dissolve por completo. Para os que não estiveram pessoalmente nos eventos, é virtualmente impossível determinar o que se passa de verdade.

Mas a história não se fica por aqui. Nos últimos anos, Caroline foi acusada de mentir a respeito das celebridades com quem se dá, das credenciais universitárias que apresentou e até de fabricar todo o seu estilo de vida. Um dos exemplos disto é a sua alegada ligação ao legado do próprio Oscar Wilde (e aqui não podemos deixar de nos questionar por que razão tentou levar a cabo uma fraude desta envergadura…).
A escritora fantasma de Calloway, Beach (não, ela nem sequer escrevia os seus próprios textos!), revelou até onde ela ia para manipular a sua própria história. Calloway explorava descaradamente as experiências privadas de outras pessoas, assim como as suas tragédias pessoais, para criar o seu conteúdo. Claro que o objetivo era elaborar histórias sensacionais que criassem interação com o público online.
Além de toda a controvérsia e flagrante manipulação da verdade, a inclinação de Calloway para partilhar detalhes íntimos da sua vida nas redes sociais também atraiu as atenções. Foi criticada por muitos e acabou por se questionar se o que fazia era o contar genuíno de histórias ou uma manipulação calculada.
Apesar de os simpatizantes de Calloway terem empatia em relação às suas lutas – aqui devo confessar que nunca entendi muito bem que lutas são estas – e gostem dela pela sua vulnerabilidade, os seus críticos salientam os golpes publicitários controversos e a sua falta de disponibilidade em assumir a responsabilidade pelos atos do passado, assim como pela explicação das inconsistências aparentes na sua história.
Uma análise da presença online de Caroline Calloway revela uma imagem complexa de uma influenciadora que enfrentou uma contracorrente feroz e que foi acusada de fraude, fabricação e ética questionável. A sua reputação enquanto mentirosa irrepreensível foi amplamente causada pela falta de clareza sobre onde se situa a linha que separa os factos das mentiras, e, como resultado, aquando dos seus encontros com os seguidores, nunca é vista como sendo autêntica.
Eis a minha própria análise de Caroline Calloway: Se faz realmente todas as coisas que apregoa e se pelo menos 50 por cento de todas as críticas que lhe têm sido dirigidas forem precisas, parece-me claro que estamos a lidar com uma perfeita narcisista. Em que me baseio para fazer esta afirmação?
Bem, para começar no simples facto de que ela continua a fazer o mesmo de sempre. Se for ver o seu perfil de Instagram, por exemplo, verá que na bio se descreve como: Caroline Calloway, autora. Por baixo do nome está: Não, não é essa. A outra. Aquela que vocês adoram. Comprem o meu primeiro livro muito aguardado (e aclamado pela crítica!) AQUI! Depois tem cerca de 25 ou 30 emojis diferentes.
No meu entendimento, o que ela parece estar a fazer é criar uma carreira a partir do seu passado como Burlona. E, sim, Burlona é o título do seu livro.
Comentários