A matemática está em todo o lado e molda quase tudo o que fazemos. “Mas apesar da sua reputação como a ciência do raciocínio lógico, assente em verdades fundamentais, a narrativa que nos foi sendo transmitida sobre ela não só é incompleta como por vezes manifestamente errada, tão distorcida como a visão eurocêntrica e deveras discriminatória que a inspirou”. Estas são palavras que retiramos da apresentação do livro As Vidas Secretas dos Números (edição Ideias de Ler). Na obra, a historiadora Kate Kitagawa e o jornalista Timothy Revell defendem que a história da matemática é infinitamente mais profunda, vasta e rica do que aquilo que pensamos e apresentam-nos os seus pioneiros, em particular os que foram apagados do conhecimento geral devido à sua raça, género ou nacionalidade – como Hipátia, a primeira matemática de renome, cujas ideias revolucionárias levaram a que fosse assassinada, ou Karen Uhlenbeck, a primeira mulher a ganhar o Prémio Abel, “o Nobel da Matemática»” em 2019.
Mas também os brilhantes académicos árabes da Casa da Sabedoria, cuja destruição, no século XIII, foi uma perda para a humanidade comparável à da Biblioteca de Alexandria; Madhava, o génio indiano que descobriu os princípios fundamentais do cálculo trezentos anos antes do nascimento de Isaac Newton; os matemáticos afro-americanos da época dos direitos civis, que ajudaram a derrubar os métodos “científicos” de discriminação racial; e as computadoras da NASA, que revolucionaram o nosso conhecimento do céu noturno.
Do livro, publicamos o excerto abaixo.
A Sereia Matemática
Paris, 1888. Estavam abertas as candidaturas ao ilustre Prix Bordin, um prémio matemático instituído pela Academia Francesa de Ciências. A fim de evitar que as reputações influenciassem os membros do júri, cada candidatura era marcada apenas por uma frase. Quando começaram a analisar as inscrições recebidas, os membros do júri descobriram que uma delas se destacava muito acima das restantes. Descrevia uma solução para um problema matemático que persistia há mais de cem anos e que deixara Euler e Lagrange, dois prolíficos matemáticos, a coçar a cabeça. O autor dessa entrada estava identificado apenas pela frase: “Diz o que sabes, faz o que deves, e o que será, será.” Era o nom de plume matemático de alguém que passara a vida inteira a sofrer discriminação, contratempos e tragédias pessoais, mas que agora enfim conseguira. Talvez tivesse sido essa mentalidade que os levara a este ponto – juntamente com uma determinação inabalável e obstinada.
“Cavalheiros”, disse o astrónomo e presidente da Academia, Jules Janssen, ao iniciar o anúncio do prémio, “entre as coroas que estamos prestes a conceder, existe uma das mais belas e mais difíceis de obter, que será colocada numa fronte feminina”. A vencedora do Prix Bordin desse ano foi Sofia Kowalevski, a primeira mulher professora de matemática do mundo.
Aquele momento já era esperado. Ao longo das décadas e dos séculos anteriores as mulheres tinham vindo lentamente a deixar a sua marca na matemática, desafiando os pontos de vista e as normas. Aos poucos, desde o século XVII os matemáticos da Europa tinham começado a deixar de ser amadores para se tornarem profissionais, em grande parte na docência. Contudo, as cátedras também eram ferramentas políticas, atribuídas aos membros do clube e não aos que estavam fora das instituições. De alguma forma, Kowalevski havia conseguido entrar nesse mundo – mas a sua entrada teria um custo.
Um pouco mais liberal
O melhor local para começarmos esta história é na região que viria a tornar-se a Itália. O registo mais antigo que temos de uma mulher com um doutoramento data de 1678. De ascendência albanesa, Elena Lucrezia Cornaro Piscopia foi uma filósofa poliglota que viveu em Veneza. Nasceu numa família nobre e ainda durante a infância tornou-se fluente em latim, grego, hebraico, espanhol, francês e árabe. De alguma forma, também encontrou tempo para dominar o cravo, o clavicórdio, a harpa e o violino. O seu tutor Carlo Rinaldini, que era professor de filosofia na Universidade de Pádua, também lhe ensinou matemática. Aprendeu-a tão depressa que Rinaldini compilou para ela um manual de geometria personalizado, que foi publicado em 1668 e lhe era dedicado. Na adolescência Cornaro já havia superado os conhecimentos de um curso de licenciatura habitual. O seu pai – um cardeal influente – defendeu os talentos da filha e sugeriu que ela se candidatasse a um doutoramento.
Os funcionários da Igreja Católica Romana recusaram inicialmente o pedido por ela ser mulher, mas o bispo de Pádua acabou por se colocar do lado do pai. Cornaro obteve o grau de doutoramento em 1678, aos 32 anos, após passar no exame oral na Universidade de Pádua em 1678. Em vez de assumir o cargo de professora na universidade, Cornaro decidiu dar prioridade a uma vida dedicada à caridade e não à matemática. Passava o seu tempo a ajudar os pobres. No entanto, padecia de problemas de saúde e faleceu com apenas 38 anos, provavelmente de tuberculose.
O título de primeira professora de matemática quase foi para outra mulher que vivia em Itália – Maria Gaetana Agnesi. Nascida em Milão, em 1718, Agnesi, tal como Cornaro, tinha um talento para as línguas. Falava italiano e francês aos cinco anos de idade e por volta do seu décimo primeiro aniversário já aprendera grego, hebraico, espanhol, alemão e latim. Aos 12 anos começou a sofrer de um misterioso e persistente problema de saúde. Na época, suspeitou-se de que a causa fosse o estudo intenso, mas seria talvez alguma forma de doença mental. Em resultado disso, seguindo o conselho do seu médico, Agnesi passou algum tempo numa moradia rural em Masciago, situada 25 quilómetros a norte de Milão. A vida rural mais descontraída permitiu-lhe desfrutar de passeios a cavalo e dançar, mas continuava a ser atormentada por violentos ataques nervosos e tentou o suicídio por mais de uma vez.
Em 1733 havia recuperado e voltou para casa em Milão, retomando as suas diversas áreas de estudo. Tornou-se proficiente em metafísica, filosofia moral e matemática, dominando o cálculo. Coligiu uma vasta biblioteca com cerca de quatrocentos volumes e escreveu o seu próprio livro, Instituições Analíticas, que era uma introdução à matemática. Foi meticulosa quanto à forma como o livro deveria ser impresso. O editor, Richini, instalou um prelo no piso térreo da casa de Agnesi para que ela pudesse supervisionar todos os pormenores. Foi especialmente cuidadosa com os símbolos do cálculo diferencial e integral, preocupada por os tipógrafos desprovidos de conhecimentos matemáticos poderem cometer erros.
Dois anos após a publicação do livro, a reputação de Agnesi havia crescido e o seu nome chegou ao conhecimento do papa Bento XIV. O papa acreditava que a educação das mulheres estava no cerne da cultura católica esclarecida, tendo escrito: «Desde os tempos antigos, Bolonha alargou os cargos públicos a pessoas do seu sexo [de Agnesi]. Pareceria apropriado prosseguir esta honrosa tradição».
Em 1750, foi atribuída a Agnesi a cátedra honorária de matemática e filosofia natural na Universidade de Bolonha, que era conhecida como o novo “paraíso das mulheres”. Partilhava essa atmosfera liberal e inclusiva com a cidade dela, Milão. Porém, a sua doença regressou uma vez mais, e o médico desaconselhou-a a aceitar o cargo. Em vez disso, iria estudar teologia e dedicar a sua vida à caridade, tal como havia feito Cornaro.
Equações na parede
Sofia Korvin-Krukovskaya era uma criança prodígio. Nascida na Moscovo czarista em 1850, decidiu-se a quebrar as barreiras que impediam as mulheres de prosseguirem uma carreira em matemática. O seu pai, Vasily, era incrivelmente austero e acreditava com firmeza nas normas patriarcais que vigoravam na Rússia naquela época. Achava que as mulheres apenas precisavam de escolaridade suficiente para participarem na boa sociedade, e nada mais. Ter uma mulher instruída na família, acreditava Vasily, traria vergonha a todos os restantes membros. Por isso o primeiro contacto de Sofia com a matemática não veio através do pai, mas do tio, Pyotr, que visitava frequentemente a casa deles, e com mais frequência ainda após a sua esposa ter sido assassinada pelos serviçais.
A ligação entre ambos reforçou-se durante essas visitas. Pyotr costumava conversar com ela e, sendo um homem educado que viu uma faísca na sua jovem sobrinha, discutia conceitos matemáticos, falando-lhe, por exemplo, da assíntota, uma linha reta que fica infinitamente próxima de uma curva. Como Sofia recordaria mais tarde no seu livro de memórias, ao princípio ela não entendeu essas ideias, mas deixaram-na fascinada. “Naturalmente ainda não conseguia compreender o significado de tais conceitos, mas eles atuaram na minha imaginação, incutindo em mim uma reverência pela matemática enquanto ciência exaltada e misteriosa, que abre aos que nela forem iniciados um novo mundo de maravilhas”, escreveu ela. O tio havia-lhe despertado o interesse, e ela não tardaria a ficar frente a frente com mais matemática.
Quando ela tinha oito anos, o pai aposentou-se do seu cargo militar como chefe da Artilharia de Moscovo e a família mudou-se para uma nova casa no campo. A casa situada em Palibino tinha acabado de ser renovada e ainda precisava de papel de parede. Após terem decorado vários quartos, a família encomendou mais papel de parede em São Petersburgo, mas este nunca lá chegou, devido ao “rústico laxismo e à característica inércia russa”, como diria Sofia mais tarde. Após cuidadosa reconsideração, a família decidiu que o quarto das crianças não ficaria tão bem decorado como o resto da casa. Adotando um espírito de reutilização criativa, resolveram a situação usando as antigas anotações matemáticas de Vasily. Para se preparar para a sua função como oficial do exército, ele havia estudado cálculo diferencial e integral. Aos 11 anos, Sofia sentiu uma estranha atração por aquelas equações misteriosas na parede. Não fazia ideia do que elas significavam, mas tinha uma forte sensação de que deviam significar algo “muito sagaz e interessante”. Parecia que aqueles símbolos estavam a saltar da parede para falarem com ela.
Embora de início não houvesse oportunidade de ela ter aulas de matemática, um tutor, Yosif Malevich, ensinou-lhe alguma aritmética, geometria e álgebra básicas. Tornou-se evidente, mesmo então, que era dotada para o assunto. Malevich ofereceu-lhe um exemplar de um manual de álgebra, que ela leu avidamente de fio a pavio. No entanto, o pai continuava a opor-se à educação das mulheres e por isso interrompeu a tutoria. A filha não se deixou intimidar, estudando o seu livro de álgebra a coberto da escuridão, até que um golpe de sorte trouxe uma vez mais para a sua vida a matemática.
Um académico chamado Nikolai Tyrtov era vizinho e amigo da família, e quando publicou um novo manual sobre física levou para casa deles um exemplar. Ela ficou hipnotizada pela obra. A secção de ótica, que analisava a física da luz, despertou-lhe particularmente a atenção. Senos, cossenos e tangentes – as funções da trigonometria – pontuavam aquelas páginas. As fórmulas não se pareciam com nada que ela já tivesse encontrado antes. Lenta mas seguramente, foi avançando no livro. Quando relatou o seu progresso a Tyrtov, este ficou impressionado e achou-a um prodígio. Foi falar com o pai dela, persuadindo-o a dar à filha uma educação matemática adequada. Na avaliação de Tyrtov, ela era o “novo Pascal”.
Vasily cedeu por fim e em 1867 contratou um novo professor. Sofia recebeu uma ampla educação em matemática por Aleksandr Strannolyubsky, autor do primeiro manual para ensino e aprendizagem da álgebra na Rússia. À medida que a sua aptidão matemática amadureceu, ela tornou-se cada vez mais obcecada pelo tema. Passou a desesperar por se libertar do pai, que continuava a ter fortes preconceitos contra as mulheres instruídas e não concordava em que ela seguisse uma carreira como matemática.
Sofia tinha 18 anos quando finalmente surgiu a oportunidade de escapar ao pai.
No final da década de 1860 estava a ganhar destaque o niilismo, uma nova filosofia de socialismo radical. O movimento defendia a rejeição de toda a autoridade existente, e em vez disso encorajava o estudo da ciência e a crença nela. A geração mais jovem ficou enfeitiçada pelo niilismo, vendo nele um meio de desafiar a ortodoxia. A irmã mais velha de Sofia, Anna, foi seduzida por essa nova filosofia e decidiu deixar a Rússia. Andava a procurar uma oportunidade de se mudar, mas, sendo uma mulher solteira, precisava da assinatura do pai no passaporte para poder viajar para o estrangeiro, e este recusara-se a dar-lha. Ela procurou portanto outra opção. A solução mais rápida era contrair um casamento “fictício”, conhecido entre os niilistas como um «casamento branco». Se casasse com alguém que simpatizasse com a sua causa, ela poderia mudar-se para o estrangeiro e frequentar uma faculdade que aceitasse mulheres.
Começou a angariar pretendentes, um dos quais lhe pareceu particularmente adequado – um jovem de 26 anos, radical e muito viajado, que se chamava Vladimir Kovalevsky. Estivera em Londres e quando regressara ocupara-se a traduzir para a língua russa o mais recente livro de Charles Darwin, The Variation of Animals and Plants under Domestication. Ficara muito impressionado com as ideias de Darwin e trabalhara com tanta rapidez que a sua tradução saíra antes da publicação em inglês. Embora Vladimir acreditasse que ambas as irmãs deviam ser libertadas da sua família opressiva, foi por Sofia que se apaixonou, e não por Anna, e foi portanto a ela que propôs um “casamento branco”.
Mas o pai não concordava. Sofia tinha apenas 18 anos e Vladimir era oito anos mais velho do que ela. Inspirada pelos romances de Dostoiévski, ela fez uma cena, trancando-se no apartamento de Vladimir e declarando aos pais que não sairia de lá até que o pai concordasse com o casamento. Por fim, ele cedeu. Sofia Korvin-Krukovskaya passou a ser Sofia Kowalevski e, depois do seu casamento, o mundo abriu-se diante dela. Estudou em São Petersburgo e em Heidelberga antes de se mudar para Berlim. Foi aí que conheceu Karl Weierstrass, o matemático alemão que seria fundamental para a sua ascensão à fama.
Produtivos enquanto par
Quando Kowalevski e Weierstrass se encontraram pela primeira vez, já se conheciam um ao outro pela reputação. Weierstrass era um matemático mundialmente famoso, e os professores dela em Heidelberga haviam-lhe feito chegar elogios aos talentos de Kowalevski. Para testar se tais rumores seriam verdadeiros, Weierstrass enviou a Kowalevski uma série de problemas matemáticos normalmente reservados aos estudantes (homens) mais experientes. Ela resolveu-os com aprumo. Weierstrass ficou impressionado. Kowalevski tivera de facto apenas uma formação matemática mínima em comparação com os seus outros alunos, mas a aptidão dela era tão evidente que a colocou sob a sua proteção. Nas palavras de Kowalevski, essa decisão teve “a influência mais profunda possível em toda a minha carreira na matemática”.
Sob a tutela de Weierstrass, a primeira grande descoberta matemática de Kowalevski teve a ver com a forma dos anéis de Saturno. Quase um século antes, o polímato francês Pierre de Laplace sugerira que Saturno tinha um grande número de anéis sólidos, mas ninguém conseguia descrever uma forma exata para eles que se ajustasse às observações astronómicas. Kowalevski sugeriu uma nova abordagem: os anéis poderiam ser feitos de fluido e não de material sólido. Usando séries infinitas – semelhantes às que foram estudadas separadamente por Mādhava, Leibniz e Newton –, ela mostrou que se os anéis fossem de fluido teriam forma de ovo e não de ovais perfeitamente simétricas, como se julgara anteriormente. Embora os astrónomos tenham descoberto mais tarde que na verdade os anéis de Saturno eram quase inteiramente compostos por pequenos pedaços de gelo, os métodos matemáticos que ela desenvolveu encontrariam muitas outras aplicações no campo da geometria.
Comentários