A Maria era uma menina de 10 anos, cheia de energia e apaixonada por futebol. Num dia como qualquer outro, durante um treino, sentiu uma súbita tontura e desmaiou em campo. O susto foi grande para todos. Levada ao hospital, os médicos descobriram que o coração da Maria não batia no ritmo certo. Este é apenas um exemplo de como as arritmias podem afetar crianças aparentemente saudáveis.
O coração é o motor que mantém o nosso corpo em funcionamento, bombeando sangue para transportar oxigénio e nutrientes a todos os órgãos. Nas crianças, um ritmo cardíaco regular é essencial para um crescimento saudável e para a realização das atividades do dia a dia. Este ritmo é controlado por impulsos elétricos que coordenam as contrações cardíacas. Contudo, por vezes, este sistema pode falhar, originando arritmias.
As arritmias são alterações no ritmo normal do coração, podendo manifestar-se como batimentos demasiado rápidos (taquicardias), demasiado lentos (bradicardias) ou irregulares. Estas perturbações podem ser transitórias ou persistentes e variar em gravidade.
Identificar arritmias em crianças pode ser um desafio, já que os sintomas nem sempre são evidentes. Alguns sinais de alerta incluem palpitações, tonturas, cansaço anormal, desmaios ou dores no peito. Em certos casos, a criança pode não apresentar qualquer sintoma, tornando o diagnóstico ainda mais difícil.
Se não forem detetadas e tratadas atempadamente, algumas arritmias podem comprometer a capacidade do coração bombear sangue de forma eficaz, afetando o desenvolvimento da criança e podendo levar a complicações graves. Entre as arritmias mais comuns na infância destacam-se a taquicardia supraventricular, a síndrome de Wolff-Parkinson-White, as extrassístoles e as canalopatias. Embora geralmente sejam benignas, estas últimas podem provocar arritmias potencialmente fatais e levar a paragens cardíacas súbitas em jovens aparentemente saudáveis.
Estima-se que, a cada ano, milhares de jovens em todo o mundo sofrem paragens cardíacas inesperadas. Muitas vezes, não há sintomas prévios ou histórico médico que indique um problema. Pode ocorrer durante a prática desportiva, em repouso ou até durante o sono. Condições como cardiomiopatias, anomalias nas artérias coronárias, canalopatias e inflamações do músculo cardíaco (miocardites) estão entre as causas possíveis. Também pode acontecer devido a um impacto forte no peito, numa condição conhecida como commotio cordis, mais comum em desportos de contacto.
Então, o que pode ser feito para prevenir estas situações? A vigilância regular é fundamental, especialmente em crianças com sintomas suspeitos ou com histórico familiar de doenças cardíacas. Consultas regulares permitem avaliar a saúde cardíaca, identificar fatores de risco e, se necessário, encaminhar para a realização de exames complementares, nomeadamente eletro e ecocardiograma.
Quando é detetada uma arritmia ou risco de problemas cardíacos, é crucial encaminhar a criança para centros especializados em Cardiologia Pediátrica e Arritmologia de Intervenção. Nestes centros, equipas multidisciplinares avaliam a situação de forma aprofundada. No caso da arritmologia de intervenção, permite não só diagnosticar com precisão, através de estudos eletrofisiológicos, mas também tratar eficazmente muitas arritmias.
Os estudos eletrofisiológicos consistem na introdução de finos cateteres por uma veia até ao coração, permitindo mapear a atividade elétrica cardíaca. Com esta informação, os médicos podem identificar o local exato onde a arritmia se origina. Em muitos casos, é possível realizar uma ablação, um procedimento que elimina o tecido responsável pela arritmia, resolvendo o problema de forma definitiva.
Além disso, existem dispositivos como os pacemakers, que ajudam a regular os batimentos cardíacos lentos, e os desfibrilhadores cardíacos implantáveis, que monitorizam o ritmo cardíaco e corrigem arritmias perigosas automaticamente. Estas tecnologias têm permitido melhorar significativamente a qualidade e salvar a vida de crianças com problemas cardíacos.
A história da Maria teve um final feliz. Após ser encaminhada para um centro especializado, foi submetida a um estudo eletrofisiológico que identificou a causa da sua arritmia. Com uma ablação bem-sucedida, a Maria pode voltar a jogar futebol e a viver a sua infância plenamente.
É essencial que pais, educadores e profissionais de saúde estejam atentos aos sinais que possam indicar problemas cardíacos. Sintomas como dores no peito, desmaios inexplicados, palpitações ou cansaço excessivo não devem ser ignorados. Proteger o coração das nossas crianças é uma responsabilidade de todos. Ao estarmos atentos aos sinais, valorizando os sintomas e procurando ajuda médica especializada, podemos fazer a diferença entre a saúde e o risco.
As arritmias não precisam de ser um obstáculo no caminho das crianças; com diagnóstico precoce e tratamento adequado, elas podem continuar a sonhar, a brincar e a viver plenamente. Não deixe que um ritmo fora do compasso silencie a alegria dos mais pequenos.
Um artigo do médico Sérgio Matoso Laranjo, Cardiologista pediátrico no Hospital CUF Tejo e na Clínica CUF Barreiro.
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