Do tempo ao dinheiro, a arte de administrar os recursos que mais nos faltam, de forma a poupar a mente e minimizar as dificuldades da vida. Ver o fim do mês a aproximar-se e o saldo da conta a diminuir.
Ter um trabalho para terminar e o prazo estar assustadoramente próximo. Fazer dieta e contar as calorias a ingerir até ao final do dia na esperança de emagrecer rapidamente.
Os temas em questão podem ser distintos, mas remetem para uma única questão de fundo. Essa questão prende-se com a escassez, tema do livro «A Tirania da Escassez», publicado pela editora Lua de Papel. Um tema pertinente tendo em conta o clima de austeridade e condicionamento económico a que Portugal se viu sujeito nos primeiros anos da década de 2010.
Investigadores em áreas como a economia comportamental e a ciência cognitiva, os autores defendem que, quer se trate de dinheiro, tempo, calorias ou outros recursos, quando temos pouco, tendemos a concentrar-nos mais nas implicações físicas (menos tempo para lazer, menos dinheiro para gastar) do que nas mentais. Retratá-las é a missão do livro, que deslinda os mecanismos cognitivos acionados pela escassez e demonstra como podem comandar o nosso comportamento.
Dividendo de concentração
Tal como tendemos a desperdiçar menos pasta de dentes quando o tubo está perto do fim ou a esbanjar menos dinheiro no final do mês, vários estudos comprovam que, quando temos um prazo para cumprir, as distrações se tornam menos tentadoras à medida que o limite se aproxima. Este fenómeno demonstra que uma das consequências de termos pouco é a «captação da mente» ou o «dividendo de concentração». Segundo os autores, «quando a escassez se apodera do pensamento, concentra a nossa atenção na utilização do que temos de mais eficaz».
Esta promove a produtividade, levando-nos a aproveitar melhor o tempo ou a valorizar momentos, locais e pessoas (como no caso de estudantes universitários no final do último ano de curso). O termo captar traduz algo «inevitável e para lá do nosso controlo». De facto, várias experiências demonstraram ser «extraordinariamente difícil enganarmo-nos a nós próprios», fingindo escassez, «um prazo imaginário jamais se poderá apoderar do pensamento como uma data limite real».
Visão em túnel
A colisão de veículos motorizados foi, segundo estimativas norte-americanas, responsável por 20 a 25 por cento das mortes de bombeiros entre 1984 e 2000. Em 79 por cento dos casos, os bombeiros não tinham o cinto de segurança colocado, embora isso lhes pudesse ter salvo a vida e tivessem o hábito de usar cinto nos seus carros. Uma das explicações, defendem os autores, é o fenómeno do «tunelamento», a face negativa da capacidade de concentração, que «é igualmente a capacidade de manter coisas afastadas».
A escassez gera um «estreitamento do campo de visão», de tal forma que «o que está no interior fica mais focado, mas estamos cegos para o que é periférico». Como resultado, os temas que ficam fora do túnel passam a exigir mais vigilância (a capacidade de fazer escolhas corretas para obter um resultado desejado) sobretudo se são necessárias várias escolhas consistentes para obter resultados, como para se ser bom pai, poupar, ter uma alimentação correta ou não falhar a medicação.
As consequências
O tunelamento é negativo porque nos leva «a negligenciar questões que podem ser importantes». Os bombeiros devem completar vários preparativos no curto período que demoram a chegar ao local a que são chamados. «São fantásticos a gerir essa escassez, conseguem um grande dividendo de concentração, mas há um custo» (para alguns, a própria vida). De forma análoga, há empresas que cortam em marketing nos períodos de recessão, já que «acarreta um custo abrangido pelo túnel, ao contrário dos seus benefícios, que ficam excluídos».
Podemos ainda negligenciar a família por estarmos concentrados num projeto por concluir. Em suma, «a escassez altera a forma como encaramos as coisas, leva-nos a fazer escolhas de forma diferente». Os autores sublinham que, perante uma escassez imediata, a negligência face a coisas importantes «não deve ser confundida com falta de interesse». Mas alertam que, «ao olharmos para trás, para a forma como o nosso tempo ou dinheiro foram gastos em momentos de escassez, corremos o risco de ficar desapontados», um cenário mais preocupante quando esses momentos se sucedem e «as omissões podem acumular-se». Largura de banda
O conceito de largura de banda «mede a nossa capacidade computacional, para prestar atenção, para tomar decisões acertadas, para nos mantermos fieis aos nossos planos e resistir às tentações». Segundo os autores, «ao puxar-nos constantemente para o interior do túnel, a escassez sobrecarrega a nossa largura de banda e inibe as nossas capacidades fundamentais». Ao captar a nossa atenção de forma involuntária, impede que nos concentremos noutras coisas.
Pelo que «ao verificar-se escassez num dos aspetos da vida, iremos dispor de menor atenção e raciocínio nas restantes áreas». A diferença face a uma preocupação pontual (gerada, por exemplo, por uma discussão conjugal que dificulta o trabalho) é que a escassez atua como «um aglomerado de várias preocupações importantes», gerando uma carga adicional e «sobrecarregando a largura de banda de forma consistente e previsível», pode ler-se no livro.
O impacto na inteligência
«A mesma pessoa obtém menos classificação nos testes de QI (quociente de inteligência) quando está preocupada com a escassez», revelam os estudos. Por exemplo, em pessoas que estão a fazer dieta, preocupações com a alimentação podem interferir no desempenho cognitivo. Também o controlo executivo, que contribui para o autocontrolo, parece ser afetado, o que poderá explicar por que «aqueles que sentem solidão revelam um consumo substancialmente mais elevado de alimentos ricos em gorduras». Na prática, «a escassez deixa-nos menos inteligentes e mais impulsivos», o que torna «a vida muito mais difícil».
No dia a dia As manifestações podem não ser óbvias. «A dimensão dos efeitos da carga cognitiva sugere uma influência substancial na paciência, tolerância, atenção, dedicação, abrangidos na personalidade e talento. Uma largura de banda sobrecarregada pode assemelhar-se muito a falta de competência, de motivação, a formação insuficiente. Até mesmo sorrir e ser agradável é difícil quando a nossa cabeça está sobrecarregada».
Para lá das implicações imediatas (ter menos tempo, menos dinheiro), o contexto dos pobres leva-os a ter de sobreviver com menos recursos mentais. Não significa que têm menos largura de banda que os outros, mas que «se todas as pessoas fossem pobres, teriam uma largura de banda menos eficaz».
À prova de escassez
Identifique as áreas problemáticas para si e use a mentalidade da escassez a seu favor:
Família
- Coloque uma fotografia das pessoas importantes no seu local de trabalho, num lugar de destaque, para não esquecer essa prioridade quando está a tunelar.
- Inscrever-se numa atividade com os seus filhos obriga-a a passar tempo de qualidade com eles (escolha única), evitando várias escolhas vigilantes.
Finanças
- Pague as contas por débito bancário e agende uma transferência automática mensal da sua conta à ordem para a poupança (para tarefas cíclicas e previsíveis que tende a negligenciar, alterar os resultados da negligência é mais fácil do que combatê-la.
- Dividir pagamentos em parcelas e prazos em períodos mais curtos ajuda a trocar picos de abundância e escassez por «longos períodos de moderação».
Estilo de vida
- Escolher bons alimentos no supermercado facilitará as escolhas quando for à despensa, sobretudo quando comer bem estiver fora do túnel de prioridades.
- Ter um treinador pessoal, que lhe telefona para marcar sessão, força-a a não deixar este objetivo fora do túnel.
Agenda
- Estabeleça o momento mais oportuno para cada tarefa em função não só do tempo, mas também da sua largura de banda disponível.
- Para evitar que as reuniões se prolonguem em demasia no tempo, peça a alguém que entre na sala a uma hora pré-determinada para a avisar do compromisso seguinte.
- Dizer não é mais fácil do que ir a um evento e estar com o pensamento noutro lugar.
Texto: Rita Miguel
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