O mundo divide-se entre as pessoas que se refugiam nas palavras e as que se refugiam nas atitudes. Há sempre aquelas que optam por não se refugiarem em coisa alguma e ficam-se pelo conforto da inércia, responsável pelas rotinas e pelos sintomas depressivos que posteriormente lamentam.

Resolver problemas à mesa é um passaporte que nos dá a liberdade de atravessar fronteiras e dizer, orgulhosamente, que somos portugueses. À mesa matamos a fome, a sede, os problemas irresolúveis até então e a saudade. Ah, a saudade. Esse sentimento que força o pretexto.

"Temos de marcar um jantar" - diz-me, com aquela certeza de quem quer efectivamente pôr a conversa em dia, mantendo a crença na palavra. "Temos mesmo!" - returco, retribuindo a vontade acompanhada de um "quando puderes, diz-me qualquer coisa".

Aqueles com quem protelo jantares são os que me fazem falta – ou não falhássemos nós sempre com os mais próximos. Talvez queiramos que o momento seja tão especial, que receamos a entrega e vamo-lo romanceando

Passamos o ano ocupados a tentar cumprir as promessas do ano anterior, enquanto este vai passando. Não as cumprimos, nem colocamos os jantares em dia. Deixamos tudo passar, excepto este ciclo vicioso de incumprimentos que cumprimos todos os anos.

Convenço-me de que, quem quero perto de mim, são aqueles com quem adio refeições, que prometo e não cumpro. Quero-os tanto por perto, que adio o momento. Sei que lá estão se eu ligar (se eu ligasse, aliás). E, só isso, conforta-me. Iliba-me a responsabilidade que sinto que deveria (mas não preciso) ter. Aqueles com quem protelo jantares são os que me fazem falta – ou não falhássemos nós sempre com os mais próximos. Talvez queiramos que o momento seja tão especial, que receamos a entrega e vamo-lo romanceando. "Não passa deste mês, eu ligo-te", "tenho tanta coisa para te contar" com aquela sensação de que o outro de tudo sabe, sem nada lhe ter ainda contado. As grandes amizades são assim: resistem ao tempo e não competem com ele. Alimentam-se deste gozo que fazemos a essa série ininterrupta e eterna de instantes. Vivem da ausência de noção da finitude da vida e, só por isso, conseguem viver desapegados de medos e fazem o mais difícil: vivem. Nem que seja com promessas no amanhã, mas o futuro também é dia.

Pior são os que sugerem jantar e marcam de imediato uma data, como se vivêssemos nesse dever de nos alimentarmos juntos

Durante a semana, almoçamos e jantamos com pessoas que pouco nos dizem. Aceitamos um "almoças cá?" com a mesma facilidade com que respiramos, esquecendo-nos no momento imediatamente seguinte que o fizemos. Porque não nos interessam. São almoços fisiológicos que cumprem a premissa da alimentação e nutrem-nos o organismo, para nos permitir chegar àqueles jantares que tanto adiamos. Em boa verdade, temos sempre de almoçar - pensamos. É tempo trivial que tem de ser consumido, pelo que aceitar esta obrigação é quase uma função do sistema nervoso autónomo. Faz parte do controlo da vida vegetativa, que não controlamos mas que é vital.

Pior são os que sugerem jantar e marcam de imediato uma data, como se vivêssemos nesse dever de nos alimentarmos juntos. É uma obrigação que sufoca, tal qual uma possessão. Percebemos o erro crasso quando o assunto se esgota em si mesmo. Acabamos a falar do tempo, dando-lhe destaque e importância, ao invés de o satirizarmos com o adiamento de refeições importantes.

Às vezes o tempo troca-nos as voltas e as condições meteorológicas também e esta semana, infelizmente, estes ajudaram-se mutuamente. Quatro profissionais entregaram-se, uma vez mais e sem hesitações, a socorrer e a salvar vidas num último sentido de missão. Deixaram, sem aviso, jantares protelados para um futuro que tardou, por quererem tanto quem gostavam. Em conversa com um grande amigo, disse-lhe que o país lhes falhou e a nós também. Protelar o auxílio com tantas falhas aparentes não é, certamente, de quem nos quer bem, de quem nos quer perto.

É que, não é que tenha medo da morte - nada disso!-, mas vou ligar-lhe. Temos mesmo de marcar um jantar.