A Justiça e a Saúde Mental em primeira instância parecem áreas totalmente distintas. Mas será que realmente não têm pontos em comum? Pois bem, existe um ponto em que ambas se encontram.
Em Portugal, talvez exista a ideia na população que apenas pode haver a privação de liberdade em casos de condenação criminal. No entanto, ao abrigo da Lei da Saúde Mental a pessoa pode ver a sua liberdade retirada quando submetida a um internamento involuntário, mediante decisão médica e posteriormente validade por um juiz.
A saúde mental é essencial para o bem-estar geral e tem impacto direto na qualidade de vida. Segundo a Organização Mundial de Saúde, problemas de saúde mental são responsáveis por uma parte significativa da carga global de doenças, sendo a depressão uma das principais causas de incapacidade no mundo. Em Portugal, a prevalência de doenças mentais atinge 23,8% da população, destacando e reforçando a necessidade que existe em políticas e práticas eficazes para lidar com esta realidade.
Um dos maiores desafios que se coloca à pessoa com problemas de saúde mental prende-se com a adesão e a gestão do seu regime terapêutico.
De acordo com a Ordem dos Enfermeiros, a problemática inerente à não adesão ao tratamento, na pessoa com doença mental, conduz a graves consequências ao nível da saúde pública, contribuindo para o aumento da incidência e prevalência de diversas patologias, bem como para o aumento do número de internamentos hospitalares.
A gestão do regime terapêutico envolve a integração do tratamento na rotina diária. No entanto, dificuldades como a falta de informação, estigma social, efeitos adversos dos medicamentos, entre outras, comprometem essa adesão. Assim, pode-se agravar o quadro clínico, aumentar reinternamentos e onerar o sistema de saúde. Profissionais de saúde, especialmente os enfermeiros, desempenham um papel fundamental no apoio aos utentes, capacitando os mesmos para adquirir e desenvolver as competências necessárias à gestão eficaz do tratamento, promovendo a educação em saúde, a autonomia e a adesão ao regime terapêutico.
No contexto da saúde mental, o internamento involuntário é uma medida prevista por lei e ocorre quando existe a perceção do estado grave de compromisso mental da pessoa, que a impede de tomar decisões informadas sobre seu próprio tratamento. Normalmente, essa intervenção acontece quando há risco para a segurança da própria pessoa ou de terceiros, sendo sempre um recurso extremo.
A nova Lei da Saúde Mental (Lei n.º 35/2023) substitui a anterior legislação e introduz avanços, como a figura da “pessoa de confiança”, que representa um apoio para garantir os direitos e preferências da pessoa. Além disso, também reforça a obrigatoriedade de que o tratamento involuntário seja realizado preferencialmente em regime de ambulatório, reservando o internamento apenas para situações estritamente necessárias.
Embora o tratamento involuntário tenha o objetivo de proteger o utente e a sociedade, a sua aplicação levanta questões éticas complexas. A restrição da autonomia individual, ainda que em nome do princípio da beneficência, deve ser avaliada com prudência. O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, defende que esta prática deve ser utilizada apenas como recurso excecional, assegurando ao máximo que a dignidade humana seja preservada. O respeito à singularidade da pessoa e à sua história de vida é essencial.
Outro ponto relevante é o impacto emocional e social do tratamento involuntário, tanto para a pessoa quanto para seus familiares. A transparência no processo, aliada a uma comunicação clara e empática, pode minimizar os efeitos negativos dessas intervenções. Além disso, é crucial que os sistemas de saúde forneçam suporte adequado, como recursos humanos e materiais, para garantir que o tratamento seja eficaz e respeitoso.
O grande desafio ético é equilibrar a necessidade de intervenção com a proteção da autonomia e dos direitos da pessoa. O internamento involuntário não deve ser entendido como punição, mas como medida para garantir um tratamento adequado em situações de grave comprometimento da saúde mental.
Por fim, a saúde mental exige atenção contínua, educação e recursos, assim como investimentos e políticas que assegurem avanços na prestação e na qualidade dos cuidados. A Enfermagem, como ciência e prática, tem o dever de proteger a dignidade e promover a autonomia da pessoa, contribuindo para a melhoria dos cuidados de saúde mental. Somente com um esforço conjunto entre profissionais, pacientes, famílias e legisladores será possível promover uma gestão eficiente do regime terapêutico e enfrentar os desafios impostos pela complexidade das doenças mentais.
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