Quando, no meio de um turno atribulado, vejo que, fruto de uma condição aguda, o meu cliente ficou com uma alteração no movimento muscular e que, para retomar a deambulação, necessitará de um auxiliar de marcha, tenho de interromper o meu trabalho e aguardar que um médico esteja disponível para poder solicitar a respetiva prescrição. Adicionalmente, tenho de explicar por que motivo considero, por exemplo, que um andarilho, seria a melhor opção para essa pessoa e para a sua condição naquele momento. Nesse intervalo de tempo, por vezes horas ou até dias, o utente permanece sem a prescrição para adquirir o dispositivo essencial à sua mobilidade, com o qual poderia estar a adaptar-se à sua nova condição.
Outro exemplo: veja-se o caso de um doente admitido no meu serviço, proveniente de um internamento prolongado em Cuidados Intensivos, com uma pneumonia associada ao ventilador e atualmente portador de traqueostomia, cuja capacidade de tosse se encontra altamente comprometida (fruto também da sua condição de desuso). A análise de diversos parâmetros leva a concluir que é uma situação cujo uso de um Cough-Assist promoveria a gestão da broncorreia e a recuperação mais célebre do cliente. No entanto, mais uma vez, vejo-me obrigado a requerer a um médico a prescrição deste aparelho.
São situações aparentemente simples, mas que refletem uma dura realidade: milhares de enfermeiros portugueses, altamente qualificados, não têm autonomia para prescrever no âmbito da sua prática clínica. Identifico-me com esta realidade, pois, sendo especialista em enfermagem de reabilitação desde 2017, a cada dia que passa e a cada situação que vivo, como as que descrevi anteriormente, sinto-me impotente para potenciar a melhoria das condições dos utentes.
Num momento em que o Serviço Nacional de Saúde (SNS) enfrenta listas de espera históricas e uma pressão sem precedentes, permitir que os enfermeiros prescrevam constitui uma solução concreta, segura e já validada em vários países. Essa é a minha convicção, baseada em evidências e na experiência diária junto dos utentes.
A seguir, exponho de uma forma detalhada os cinco principais argumentos que, no meu entender, sustentam esta proposta.
- Acesso mais rápido e abrangente
Sempre que identifico que um cliente, após uma doença aguda, necessita de um dispositivo para recuperar funcionalidade – seja um andarilho para retomar a marcha, seja um cough-assist para promover a limpeza das vias aéreas – dependo de um médico para efetuar a prescrição. Enquanto aguardo pela disponibilidade do médico, o utente permanece sem o recurso que lhe permitiria melhorar, prolongando o sofrimento e retardando a recuperação.
Nos países onde os enfermeiros já podem prescrever, a evidência demonstra que esses tempos de espera são drasticamente reduzidos. Permitir que situações de complexidade controlada sejam resolvidas diretamente pelos profissionais mais próximos dos utentes evita, em muitos casos, deslocações desnecessárias e garante resposta imediata a quem precisa.
- Liberdade para os médicos se concentrarem no que exige a sua especialidade
Ao delegar aos enfermeiros a competência para prescrever dentro da sua área de atuação (por exemplo: vacinação, gestão de feridas, dispositivos de reabilitação, terapêuticas para doenças crónicas estáveis, saúde materna e infantil, entre outros), os médicos ficam mais disponíveis para realizar primeiras consultas, agir em intervenções cirúrgicas e efetuar diagnósticos.
Essa reorganização de tarefas evita a duplicação de atos – situação que, infelizmente, ainda persiste quando o enfermeiro solicita prescrição ao médico, que por sua vez reavalia o mesmo utente somente para formalizar o receituário – e aumenta a capacidade de resposta de todo o SNS.
Em última instância, reduz a sobrecarga das equipas clínicas e atenua a exaustão profissional.
- Valorização das competências e da formação avançada
São mais de 24000 enfermeiros portugueses com formação especializada em áreas como a médico cirúrgica, a reabilitação, a saúde comunitária, a saúde materna e obstétrica e a pediatria que lidam diariamente com a desvalorização das suas competências.
Reconhecer, por lei, que estes profissionais podem prescrever dispositivos e medicamentos nos respetivos domínios seria alinhar Portugal com as melhores práticas internacionais.
Além disso, reforçaria a atratividade da carreira de enfermagem no nosso país, contribuindo para reduzir a emigração de profissionais para sistemas de saúde onde essa autonomia já vigora.
Valorizar a formação avançada é também incentivar a especialização contínua, beneficiando os utentes e o SNS.
- Exemplos internacionais de sucesso
Mais de uma dúzia de países da União Europeia legislaram sobre a prescrição por enfermeiros, confirmando uma tendência irreversível com ganhos substanciais para a população, como é o caso do nosso país vizinho.
Na Europa, existem vários exemplos de sucesso, como, por exemplo, os Países Baixos, onde os enfermeiros especialistas gerem a medicação de doentes crónicos, permitindo uma maior adesão terapêutica e reduções significativas nas consultas hospitalares.
Fora da Europa, o Canadá é um exemplo a seguir, onde os enfermeiros habilitados (nurse practitioners) prescrevem e têm demonstrado que seguem padrões de prescrição cautelosos e são fulcrais para melhorar o acesso aos cuidados primários.
Cada um destes exemplos demonstra a viabilidade de um modelo em que os enfermeiros mantêm elevados padrões de segurança e qualidade ao prescrever, colaborando diretamente com os profissionais das equipas multidisciplinares.
- Impacto positivo na saúde pública
Ao poder iniciar ou renovar tratamentos, os enfermeiros podem intervir mais cedo na prevenção de complicações de doenças crónicas, reforçar campanhas de vacinação e otimizar o seguimento pós-alta hospitalar.
Se, perante uma úlcera em fase inicial, um enfermeiro pode prescrever o antibiótico adequado para evitar uma complicação major, por que não fazê-lo imediatamente?
Se, perante um utente que necessita de um andarilho, puder prescrever imediatamente esse dispositivo, reeduco precocemente, evito quedas, melhoro a autonomia e diminuo o tempo de internamento.
Da mesma forma, ao identificar um doente traqueostomizado incapaz de tossir e, de imediato, prescrever um cough-assist, e logo a seguir o programar (algo que é habitual na minha prática clínica), previno a estase de secreções, reduzo o risco complicações e diminuo o tempo de estadia no internamento (e riscos associados).
A intervenção precoce diminui complicações, reduz hospitalizações evitáveis e fortalece a literacia em saúde da comunidade. Em última análise, contribui para conter os custos públicos e melhora os indicadores de saúde populacional.
Em suma, a prescrição por enfermeiros não é uma aventura: é uma prática que já provou ser eficaz, segura e economicamente vantajosa noutros sistemas de saúde. Para o SNS, significa redução de filas de espera, maior proximidade ao utente e melhor utilização dos recursos médicos. Para os próprios enfermeiros, representa valorização profissional e oportunidade de contribuir com toda a sua formação avançada. E, sobretudo, para os utentes, traduz-se em cuidados mais rápidos, mais humanos e mais integrados.
Basta vontade política e coragem para ajustar o quadro legal, implementar protocolos de formação e adoção de sistemas eletrónicos que suportem essa nova realidade.
Aos decisores, deixo o apelo: deem-nos a caneta, para podermos continuar a salvar vidas sem perder mais tempo em burocracias. Confiem nos enfermeiros – confiando em nós, estarão a construir um SNS mais ágil, mais humano e mais sustentável para todos.
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