Com a crise do coronavírus, o número de pessoas que vivem em extrema pobreza no mundo deve aumentar para 150 milhões até 2021, observou recentemente o Banco Mundial. Oito em cada dez novos pobres estarão em países de rendimento médio. São os novos pobres "mais urbanos, com melhor educação", detalha o banco.

Na primavera, de Paris à Cidade do México, de Kiev a Madrid, os jornalistas da AFP foram ao encontro de trabalhadores dos setores mais afetados (turismo, transporte aéreo, restauração, distribuição e digital) que contaram casos de perda repentina de salário, stress, demissão e sacrifícios.

Cinco meses depois, a maioria estabeleceu-se no "modo de sobrevivência", perdeu a independência, ou caiu na pobreza extrema. Alguns evitaram o pior. Todos eles continuam a viver angustiados. Leia os seus depoimentos.

Neuilly-sur-Marne (França) - Dívidas e "modo de sobrevivência" para o extra da restauração

"Estou em modo de sobrevivência, uma refeição por dia para a família e pronto". Antes, Xavier Chergui, um francês de 44 anos, trabalhava como "extra" na restauração. Podia ganhar até 4.000 euros. Com o fim dos seus contratos, o primeiro confinamento fê-lo mergulhar na precariedade.

Xavier Chergui apostava no retorno da atividade após o fim do primeiro confinamento, mas, para além de "alguns dias de trabalho", o reconfinamento de outono em França tirou-lhe qualquer "perspetiva para o futuro próximo".

Este pai de dois filhos, cuja esposa não trabalha, acumula dívidas. "Estou atrasado no aluguer, na luz. (...) Também tenho que pagar o empréstimo do carro". Subsiste graças ao auxílio estatal, Revenu de Solidarité Active (RSA), que garante, em França, uma renda mínima para pessoas sem recursos, abonos para famílias, assistência à habitação, e que chega a 1.400 euros por mês.

A maior parte dos recursos destina-se a "encher o frigorífico".

O seu filho, que queria estudar design gráfico, ou multimédia, teve de interromper o sonho por enquanto.

Madrid - Economias a zero para empregada doméstica

Sonia Herrera, uma empregada doméstica hondurenha de 52 anos, perdeu todos os planos: "Durante o confinamento, podíamos aguentar com pequenas economias, mas agora estamos a zero, tudo evaporou".

Na primavera, esta mãe solteira que mora apenas com os seus dois filhos e neto foi demitida do trabalho como doméstica não declarada. E teve de se voltar a pedir ajudar no banco alimentar.

Desde então, recuperou algumas horas de limpeza, assim como a sua filha Alejandra, de 33 anos, que perdeu o emprego de cozinheira. São algumas centenas de euros que, para além do seguro-desemprego, permitem-lhes não depender desta ajuda que lhes dava "um pouco de vergonha".

No total, em casa, agora entram pouco mais de 1.000 euros por mês para os quatro e precisam de economizar cada cêntimo.

Todas as sextas-feiras de manhã, Herrera vai a um bairro nobre de Madrid fazer duas horas de limpeza por 20 euros, menos três euros pelo autocarro. Em vez de ir para casa ao meio-dia antes do horário da tarde, espera na cidade para não dobrar o custo do transporte.

Com a reabertura das escolas em setembro, o seu neto Izan come na cantina, o que lhe traz alguma economia. Os pequenos prazeres da vida quotidiana, como os "doces", ou ir ao "cabeleireiro", são coisas do passado.

A sua situação irregular impede que a família reivindique o apoio ao rendimento mínimo lançado em maio pelo governo espanhol para amortecer o impacto das medidas anticovid-19."Tenho muito medo de que eles nos reconfinem novamente, porque recuperar um pouco (de dinheiro) e perdê-lo novamente é assustador", disse ela.

Bogotá - Retorno à casa dos pais para o comissário de bordo

"Não tinha mais trabalho para continuar a pagar a renda". Aos 26 anos, o colombiano Roger Ordonez teve de voltar para a casa dos seus pais, em Bucaramanga, no nordeste da Colômbia.

Desde de perder, em julho, o emprego de comissário de bordo na companhia aérea Avianca, passou a procurar um novo emprego.

Tentou no seu setor, um dos mais afetados pela crise, mas sem sucesso. Os voos comerciais foram retomados na Colômbia, mas ele não encontrou emprego nas companhias aéreas locais. Também foi impossível responder a duas ofertas no Peru e no Chile, por não residir nesses países.

Não há mais vagas nos call centers de Bogotá, para os quais ele multiplicou as candidaturas. "Não sei se o meu currículo está superestimado. Por causa do salário que eu tinha, as pessoas acham que vou sair assim que conseguir outro emprego", desabafa.

Na Avianca, Roger Ordonez ganhava 1.000 euros por mês. Agora, "eu até me contentaria com um salário mínimo" (menos de 250 euros), diz ele. "Mas não há nada". É o fim das viagens e dos estudos para se tornar piloto. "A qualidade de vida piorou muito", afirma.

Paris - Ajuda social para a vendedora de sapatos

A francesa Marie Cédile, de 54 anos, incluindo 30 como vendedora da sapatos na rede André, poderia ter perdido o emprego como metade dos empregados da marca, que estava em liquidação judicial, mas suspirou de alívio quando o comprador da marca tornou pública a lista de 55 lojas e 220 funcionários que seriam mantidos.

"Sou de uma das lojas mantidas. Até agora está tudo bem", respira. O seu marido, que na primavera estava desempregado, encontrou um emprego numa locadora de automóveis. "Espero que tudo corra bem. Ainda estamos com medo", admite.

Com o reconfinamento em França, as lojas André fecharam (até a última sexta-feira), e Cédile viu-se em situação de redução salarial, dispositivo adotado pelo governo para enfrentar a crise e que fornece 84% do seu salário líquido. Ela ganha um salário mínimo, cerca de 1.000 euros por mês.

"Mas é sempre melhor do que nada. Há países, como Portugal, onde não há nada", disse Marie Cédile, de origem portuguesa. "Temos essa hipótese de morar em França e ter ajuda do Estado", completou.

México - "O inferno da miséria" para o velho guia turístico

Perdeu tudo: os turistas que guiava nas ruínas da pirâmide asteca do Templo Mayor, a sua casa, s sua saúde, as suas esperanças: Jesús Yépez, um guia turístico mexicano de 60 anos, diz que já não tem nada.

Quando os sítios fecharam na primavera, ele foi despejado do apartamento que arrendava no bairro histórico da Cidade do México, e viu-se a viver num centro para moradores de rua.

Hoje, é uma sombra de si mesmo, magro e insone. Os médicos fizeram-lhe o diagnóstico: depressão e neuropatia.

Todas as noites pede por uma morte iminente. "Meu Deus, venha e leve-me, eu não aguento mais esta vida. A minha alma está fraca. É uma provação diária que se repete", lamenta.

As suas parcas economias já se foram há muito tempo.

Kiev - Feliz retorno para a técnica de informática

Hoje, a ucraniana Natalia Mourachko, técnica de informática de 40 anos, está a ganhar mais do que antes. "A minha jornada de trabalho é muito mais curta e posso trabalhar a partir de qualquer lugar", celebra.

Em abril, quando esperava ser preservada, foi brutalmente demitida do grupo de viagens americano que a empregou nos quatro anos anteriores.

Mourachko, que tem dois filhos adolescentes e uma mãe de 73 anos para sustentar, descobriu assim a perda de status e a busca infrutífera por emprego.

Mas o emprego de meio período para um site americano de desenvolvimento de aplicativos móveis, o qual lhe permitiu manter-se nos primeiros meses, rende-lhe agora 10% a mais do que o seu emprego anterior. A carga de trabalho aumentou, mas "negociei uma taxa mais lucrativa", diz.

Finalmente, este ano, conseguiu passar férias na Bulgária. E começa a economizar dinheiro para ter um "colchão de segurança mais consistente". Nem tudo foi resolvido. O stress dos meses de desemprego exacerbou os seus problemas de sono e reanimou as suas dores nas costas. "Isso fez-me cambalear, muitas coisas pioraram", comenta.