Em janeiro de 2020, o país assistiu ao seu repatriamento de Wuhan. Não voltar para a China foi uma decisão fácil?
Diria que foi uma decisão que não foi difícil. Estamos em altura de pandemia e eu aproveitei para ficar. Em termos de carreira, recebi uma proposta interessante e decidi ficar. Mas na altura estava decidido em voltar à China.
Tem saudades do tempo em que viveu em Wuhan?
Recordo que era uma cidade onde gostava de viver e trabalhar. Tinha um trabalho bom. Wuhan deu-me novas oportunidades... Na altura estava em Omã, no Médio Oriente, mas, entretanto, recebi uma proposta vantajosa da China. Quando cheguei a Wuhan fiquei muito surpreendido. É a sexta ou sétima cidade mais importante do país. É uma cidade enorme e com uma qualidade de vida muito boa. Vivi em Wuhan um ano e meio.
Como é que recorda os momentos em que foi repatriado? Havia muita tensão em relação à sua chegada?
O governo português disse que, à chegada a Portugal, seríamos testados e se quiséssemos ficaríamos em quarentena. Não era obrigatório. Mas nós, os 17 cidadãos nacionais que vínhamos no avião, decidimos todos voluntariamente ficar em isolamento para proteger as outras pessoas e nos protegermos a nós perante a sociedade. Naquela altura achei que era o mais acertado. Sentia-me bem, não tinha qualquer sintoma, mas não tinha a consciência completamente limpa. De facto, houve um aparato enorme quando chegámos a Portugal... Mas é normal, nós vínhamos do sítio onde tudo isto começou.
Em Portugal, tem conseguido escapar ao vírus?
Acabei por ser infetado em setembro. Tivemos um surto no clube. Ao todo, entre jogadores e staff, tivemos uns 15 infetados. Os meus amigos até brincaram comigo, porque estive no olho do furacão e vim apanhar o vírus aqui. Estive 10 dias em isolamento e não tive sintoma nenhum. Esse surto levou ao adiamento da primeira jornada com o Sporting Clube de Portugal (SCP).
Um ano depois do início da pandemia, continuamos todos a usar máscara em Portugal. Quando estava na China, achou que isso pudesse alguma vez acontecer?
A máscara na China é bastante comum. Quando cheguei, em outubro de 2018, havia já muita gente a usar. Em sítios com muita poluição usava-se máscara. Eu também cheguei a usar. Na China usa-se muito, porque já tiveram muitos vírus e estão habituados a esta medida de proteção. Mas eles até usam mais pela poluição. Mas eu nunca me imaginei em Portugal a usar máscara. Foi bastante estranho.
Se é para entrar em confinamento, as pessoas cumprem. As pessoas sabem que se não cumprirem, vão pagar
Acho que o conhecimento da China em relação a outros vírus e agentes patogénicos os pode ter favorecido no achatamento da curva epidémica?
Sim, claro. Mas o que eu acho que os ajudou a conter mais rápido a pandemia foi a cultura, o regime... São disciplinadas. Se é para entrar em confinamento, cumprem. As pessoas sabem que se não cumprirem, vão pagar. Eles são muito rigorosos e nesse aspeto é incomparável com Portugal. Em Portugal, a forma de pensar é complemente diferente. Nós aqui somos livres. Na China as pessoas também têm a sua liberdade, mas há muito mais rigor.
Quando regressou da China teve apoio psicológico?
Sim, foi-nos fornecido apoio psicológico durante os 15 dias em que estivemos no Hospital Pulido Valente. Depois ficámos em contacto com os médicos e com os psicólogos, mas nunca foi preciso.
Mantém contacto com o restante grupo de pessoas que foram repatriadas?
Sim, mantemos. Éramos 17. Alguns já regressaram à China. Chegámos a ter um grupo no Whatsapp e de vez em quando vamos trocando mensagens. Fomos família uns dos outros naqueles dias em que estivemos em isolamento.
A oportunidade que lhe surgiu no Gil Vicente podia acontecer mesmo estando na China?
Sim, podia. Porque a pessoa que me convidou já seguia o meu trabalho. Ele entrou em contacto comigo estando em Portugal. Isso facilitou. Mas se eu estivesse na China, julgo que aconteceria na mesma.
O que lhe vem à cabeça quando se recorda do início da pandemia na China?
É um episódio que vou recordar sempre, principalmente aquela semana em que estive fechado em casa em Wuhan. A vontade de regressar era muita. Embora eu estivesse bem na China, estava preocupado com os meus familiares... Tive que regressar porque vimos que as coisas estavam a complicar-se lá. Tivemos oito dias a avaliar a situação, mas realmente o Governo português em colaboração com a União Europeia propôs repatriar-nos.
Achou que regressaria por quanto tempo?
Quando voltei achei que ia ficar em Portugal um ou dois meses, mas as coisas complicaram-se. Eu só conseguiria voltar em agosto, porque havia voos excecionais com alguns trabalhadores essenciais para a China.
Mas se não fosse a proposta do Gil Vicente, iria voltar?
A minha vontade em termos profissionais naquela altura era voltar à China, mas depois recebi o convite para ficar cá. Mas antes disso, eu estava decidido e queria voltar.
Não fecha portas a isso?
Neste momento tenho um trabalho, com objetivos e uma missão. Mas não fecho as portas ao trabalho. A minha preferência é manter-me cá e fazer carreira cá, mas o mundo é pequeno... Neste momento estou muito feliz e agradado com o meu trabalho no Gil Vicente, mas no futuro não fecharia a porta a uma ida para a China por causa do que aconteceu em Wuhan.
Na altura estava sozinho na China. A sua família manteve-se em Portugal?
Sim, a minha família esteve sempre cá. Mas graças às novas tecnologias, todos os dias falava com a minha filha, a minha mulher e a minha mãe... Quando estamos longe é importante sentirmos as pessoas do outro lado e saber que elas estão bem. Quando se está longe, a preocupação é sempre essa. Por outro lado, tinha um trabalho que permitia que os meus familiares me visitassem, o que aconteceu meio ano antes da pandemia. Tínhamos boas condições lá.
Sentiu estigma quando regressou?
Sim. Mas as pessoas sabiam que eu tinha ficado em isolamento, em quarentena, mas notei numa ou noutra pessoa daquelas que não me são próximas que havia algum estigma. Mas felizmente isso rapidamente acabou, até porque passado um mês apareceram casos em Portugal.
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