Como é que têm sido estes dias em Portugal? Sente-se bem?

Estou bem. Sinto-me fisicamente bem e psicologicamente também me sinto bem. Estando em Portugal sinto-me mais seguro. Agora é aguardar que este período de quarentena passe rápido e que até ao final não surja nenhuma notícia desagradável.

Hospital de Wuhan construído em 10 dias já começou a receber os primeiros doentes
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Neste terceiro dia de quarentena, acusa algum cansaço ou nem por isso?

Sinceramente não, porque sentimos que as pessoas aqui têm feito de tudo para que possamos sentir-nos melhor. Já conseguimos fazer alguma atividade física, como jogos na sala comum. É lógico que devidamente protegidos. Aproveitamos também para ler e, claro, o contacto com a família e amigos é importante.

Queremos regressar bem e deixar as outras pessoas tranquilas. Precisamos de ter essa garantia: que estamos "limpos"

A família pode visitar-vos em alguma sala específica?

Não, as visitas não são permitidas até ao final da quarentena. É essa a indicação que temos. Portanto, falo com a minha mulher, com a minha filha, com a minha mãe e amigos por telefone ou via internet.

Como estão a decorrer as visitas médicas?

As visitas são bidiárias. Temos dois médicos especialistas que nos acompanham de manhã e ao final da tarde. Depois, durante o dia temos a visita dos enfermeiros. Temos as nossas medições de temperatura, que somos nós que as fazemos, 3 a 4 vezes por dia. Fazemo-las e registamo-las. Se tivermos alguma dúvida, pedimos ajuda nesse processo.

Já foram visitados por alguma figura de Estado? Ou receberam alguma chamada da Ministra da Saúde, por exemplo?

Não, mas temos a equipa médica que nos acompanha que é da Direção-geral da Saúde (DGS). A mensagem é passada pelos médicos da DGS. Contacto direto com a ministra da Saúde nunca tivemos.

Miguel MAtos
Miguel MAtos Miguel Matos é treinador de guarda-redes no Hubei Chufeng Heli CF, em Wuhan créditos: Arquivo Pessoal Miguel Matos

Como são as rotinas neste período de quarentena?

De manhã tomamos o pequeno-almoço e, desde hoje, podemos ir ao ginásio. Revezemo-nos para não irmos todos ao mesmo tempo. Vamos devidamente protegidos. Temos uma passadeira, uma bicicleta, uns pesos... De resto conversamos uns com os outros, aproveitamos a sala comum onde temas as revistas, os jornais e alguns jogos. No meu caso estamos quatro pessoas que trabalhamos em conjunto na China, mas temos aproveitado para nos conhecermos todos. Tem sido uma boa dinâmica de grupo, com bom espírito.

Fazemos alguns jogos que já não fazíamos desde o tempo da adolescência. Ontem passámos a tarde a jogar Trivial Pursuit. Já nem me lembrava das regras...

Desde o primeiro dia, quando fizemos as análises e deu negativo, ficámos mais calmos. Mas sabemos que temos de continuar a ter precaução, porque este vírus tem um período de incubação de 14 dias. Também sabemos que viemos num avião com mais 250 pessoas.

Sim, sendo que um dos passageiros deu positivo para o coronavírus, um cidadão belga...

Sim, mas da forma como a viagem foi providenciada não houve contágio entre nós no avião. As pessoas cumpriram as regras.

Sempre que saímos do quarto temos de usar máscara. Essa é uma regra

Que regras foram essas?

Só tirávamos a máscara para comer. Desinfetávamos as mãos regularmente. A equipa de médicos franceses passava por nós e desinfetávamos as mãos com álcool. Trocávamos as máscaras várias vezes. Não colocávamos as mãos na boca, nos olhos... Portanto, esse tipo de instruções todos cumprimos. Em relação aos trabalhadores da companhia aérea, nós não tirávamos a máscara enquanto eles não saíssem da cabine onde estávamos.

No hospital, quando estão juntos, têm contacto físico, certo? Mas sempre de máscara?

Temos contacto físico, mas é lógico que não estamos uns em cima dos outros e sempre que saímos do quarto temos de usar máscara. Essa é uma regra.

O Miguel está num quarto sozinho?

Sim, estou sozinho.

Em relação à viagem, houve mudanças de planos e atrasos? Como é que viveram esses momentos?

Houve um atraso de um dia no embarque. Mas isso foi meramente por questões burocráticas e diplomáticas. A partir do momento em que nos garantiram que o voo aconteceria passadas 20 horas, ficámos descansados. Mas é normal, porque o processo foi delicado. No aeroporto de Wuhan estávamos 250 europeus, mas estavam lá outros 200 de vários outros países a passar pelo mesmo processo. Todos tínhamos que passar pelo controlo médico, por várias etapas, e isso demorou algum tempo. Nós sabíamos que ia ser demorado e tivemos de ser pacientes. Queríamos sair de lá e sabíamos que era uma operação delicada.

Quando é que ouviu falar pela primeira vez no coronavírus?

Só cheguei a Wuhan no dia 22 de janeiro, um dia antes da cidade ficar em quarentena. Eu estive 40 dias num estágio de pré-época no sudoeste da China, em Kunming, onde o clima é mais ameno e para onde várias equipas se deslocam em formação. Como havia o Ano Novo Chinês, que é quase como o Natal em Portugal, voltámos para Wuhan. Seria apenas por 12 horas, porque no dia seguinte eu viajaria de férias para as Filipinas. Só que no dia 23 já não consegui sair da cidade. Os voos foram cancelados.

Já tinha informações sobre o vírus quando estava em Kunming. Nesse voo para Wuhan, já toda a gente usava máscaras, porque já sabíamos do perigo que corríamos.

Miguel Matos
Miguel Matos Miguel Matos, treinador de futebol em Wuhan créditos: Arquivo Pessoal Miguel Matos

Quando é que tomou noção da proporção do surto?

Foi só no dia seguinte. Precisamente no dia 23, quando declararam a quarentena. Foi aí que percebi que o caso seria mesmo grave. Não se coloca uma cidade em quarentena por qualquer coisa. É uma cidade de 11 milhões. Já não pudemos sair da cidade. Como tínhamos estado 40 dias fora não tínhamos nada em casa. Quando fomos às compras, percebemos o pânico generalizado. Andava toda a gente à procura de comida. Tivemos muito cuidado. Nesse dia receei. Foi aí que receei mais. Tivemos nove dias em Wuhan. Depois desse dia, só saí de casa novamente para ir às compras passados seis dias. Nessa altura, já não se via ninguém sem máscara.

Veja em baixo o mapa interativo com todos os casos de coronavírus confirmados:

Se não conseguir ver o mapa desenvolvido pela Universidade Johns Hopkins, siga para este link.

Sentia-se uma espécie de pânico velado?

Sim, sim, sim... As pessoas olhavam-se com desconfiança... Mesmo as autoridades chinesas mandaram-nos SMS para ficarmos em casa. As próprias autoridades chinesas proibiram o tráfego automóvel. Só podiam circular carros autorizados. Ficou uma cidade-fantasma completamente.

Tem tido contacto com pessoas que estão em Wuhan? O que é que essas pessoas lhe dizem?

Sim, tenho falado com algumas pessoas, mas a cidade mantém-se deserta... Mas já não é só naquela cidade. A China está toda praticamente parada. As pessoas estão todas a evitar sair de casa. As escolas estão encerradas. Dizem-me que a situação se mantém, que acreditam que melhore... Dizem-me que se sentem seguras porque estão a cumprir à risca a quarentena.

Quando eu no dia 23 vi a situação em que a cidade se encontrava, decidi logo que queria voltar para Portugal

Quando chegaram a Portugal, houve a possibilidade de escolher o hospital onde ficariam? O Hospital Militar do Porto não era uma opção, como informou a DGS?

Nós soubemos dessa possibilidade através dos jornalistas. Mas depois à chegada a Lisboa fomos encaminhados para duas unidades em Lisboa. Nem nos foi colocada a hipótese de ir para o Porto. Eu decidi logo que queria ficar em quarentena. Era isso que pretendia. Agora, ser aqui ou no Porto, para mim é igual, embora no Porto pudesse ficar mais próximo da família. No entanto, nós não podemos ter visitas.

O que é que o levou a aceitar esta ajuda do Governo português para regressar a Portugal?

Quando eu no dia 23 vi a situação em que a cidade se encontrava, decidi logo que queria voltar para Portugal. O responsável pelo clube onde trabalho também nos disse que essa seria a melhor opção, porque estaríamos mais seguros aqui. O campeonato chinês foi adiado e eu só tenciono voltar à China quando as condições de segurança estiverem completamente garantidas.

Miguel Matos
Miguel Matos Miguel Matos, treinador de futebol em Wuhan créditos: Arquivo Pessoal Miguel Matos

Sentiu medo?

Não direi medo, mas tive receio. Há certas coisas que nós pensamos que só acontecem aos outros. Nunca me imaginei numa situação destas. Aconteceu-me a mim aquilo que só acontece nos filmes. Uma cidade deserta por causa de um vírus. Claro que tive receio, mas este vírus é muito mais perigoso para idosos e pessoas com problemas de saúde.

Agora é aguardar que tudo corra bem para poder voltar o mais rapidamente possível para o conforto da nossa família. Desejo que a China e o mundo consigam resolver este problema... Tenho amigos e conhecidos meus que fecharam os seus negócios na China e voltaram para os seus países. Europeus e não só. Não valia a pena estar lá, porque está tudo fechado. Sendo a China a segunda economia do mundo, dá que pensar.

Como vê o seu regresso ao "mundo cá fora"?

Não tenho qualquer sintoma. As minhas análises deram negativo para o vírus... Mas estou determinado a cumprir a quarentena. Todos nós temos esse objetivo. Só queremos sair daqui no final destes 14 dias. Queremos regressar bem e deixar as outras pessoas tranquilas. Precisamos de ter essa garantia: que estamos "limpos". Precisamos de ter a garantia que não temos o vírus connosco.  Queremos proteger também as outras pessoas. É uma questão de saúde pública.

Já vos foi data uma data específica para a saída de quarentena?

Se tudo correr bem, no dia 15 de fevereiro, sairemos.

Veja a cronologia da expansão do coronavírus em imagens: