Poucos dias antes do Concurso, o Sabores foi conhecer o mundo das cervejas artesanais na Cerveteca, um espaço exclusivamente dedicado à cerveja na Praça das Flores, em Lisboa. É lá que vai decorrer a terceira edição do Concurso Nacional de Cervejas Caseiras & Artesanais. 

Como estão a correr os preparativos o concurso?

Bruno Aquino (BA) - Está a correr um bocadinho acima das expectativas. Já ultrapassámos o número da edição anterior. Para já temos 33 a 35 cervejas, portanto é fantástico.

De onde vem a ideia de fazer este concurso em Portugal?

BA - Esta é a terceira edição, antigamente existiam as festas cervejeiras que eram basicamente as festas monomarca. Não era propriamente um festival cervejeiro.

Atualmente já existem bons festivais cervejeiros com cervejas artesanais, muitas cervejas estrangeiras em competição, em Caminha, em Lisboa, na Sertã, no Algarve. Agora este tipo de festival apesar de estar aberto ao púbico tenta congregar num mesmo espaço pessoas que venham na mesma altura do ano, de todo o país para dar a conhecer as cervejas o objetivo foi esse. Um dia por ano reunir na Cerveteca que é um espaço muito nobre para provar cerveja.

Há assim tantos cervejeiros em Portugal? Crescemos com a rivalidade entre a Sagres e a Super Bock. Há muita gente a produzir a a sua própria cerveja?

Rui Matias (RM): Há. Há um grupo de pessoas que bebe cerveja artesanal que se interessa mais pela cerveja, que não é só cerveja com tremoços e ver a bola. Há um fórum com 10 anos, o Fórum das cervejas do mundo, com reuniões mensais.

BA: Na primeira quarta-feira do mês. É um encontro onde as pessoas podem se reunir para beber cervejas e trocar experiências, nós fazemos um em Lisboa, agora também está a correr um no Porto. O de Lisboa já tem muitos participantes, aqui na Cerveteca, é sempre uma noite de excelente convívio.

RM: Esse grupo de pessoas existe há 10 anos, bebe cerveja de muitos sítios, uma muito boa outra muito má, como é normal. Há um grupo de pessoas que foi crescendo ao longo do tempo e depois há um mercado muito grande de pessoas com curiosidade, que foram educadas noutras bebidas, caso do vinho, mas que podem avançar. Pessoas a fazer cerveja em casa, não sei. Já tentámos mais ou menos quantificar mas aparecem aqui pessoas todos os dias, que compram o malte em Lisboa, outras vezes no Porto, outras vezes mandam vir por internet das mais variadas lojas, portanto é um bocado difícil, ma calculo em algumas centenas.

BA: Sim, com crescimento certamente exponencial, porque lá está, para além do concurso, tem vindo a crescer os eventos que chamam a atenção para cerveja artesanal. Vão aparecendo muitos festivais, talvez existam 50, 60. Tem sido muito forte o interesse das pessoas – porque estamos a falar de um tipo de cerveja que era muito único, uniforme. E quando as pessoas começam a provar cerveja artesanal percebem que há ali muitos aromas, muitos sabores, há muitas texturas, há muitas lembranças de outros tipos de produtos, seja chocolate, seja café. Portanto isso atrai um novo público que muitas vezes fica apenas na degustação, outros querem avançar mais um bocadinho e fazer a sua cerveja, daí o interesse do concurso que é avaliar onde está a produção de cerveja artesanal em Portugal.

O que é curioso é que as próprias marcas como a Superbock também lança de vez em quando uma edição de cervejas artesanais.

BA - Basicamente há aqui um movimento que está em forte crescimento e o conceito que pode ser apropriado ou não pelas grandes marcas, não digo de colagem mas de tentativa de aproveitar um segmento de mercado. Eu não conheço perfeitamente o método de produção de uma Super Bock artesanal mas nós temos a noção do que é um produto artesanal: é um mestre cervejeiro que está muito por dentro do processo produtivo, faz tudo manualmente. Mas cabe ao consumidor avaliar.

RM - A verdade é que não existe um critério para o que é artesanal. Qualquer um é livre de utilizar o termo. Provavelmente aquilo é artesanal para a Super Bock porque há determinados processos industriais que eles retiram. Agora, a cerveja continua a ser filtrada.

BA - E a usar corantes.

RM - À partida, para mim, filtrar uma cerveja como a imperial stout é como tentar fazer queijo com soja.

Cerveja artesanal

O que é que faz uma cerveja artesanal?

BA - Há que haver uma proximidade muito grande entre o produtor e aquilo que está a produzir. Não conseguimos imaginar fazer cerveja sem qualquer tipo de máquina pelo meio. Por exemplo para encaricar é preciso um encaricador. Agora, é a utilização mínima possível de maquinaria. Ele próprio é um interveniente, mete-se dentro da braçagem, supervisiona muito proximamente a fermentação, e também é o conceito de algo que está ligado a uma comunidade. As cervejas começam a ser apreciadas numa terra, depois é que começam a ser distribuído pelos bares daquela terra, depois pode crescer mais um bocadinho. Todo o conceito que se pode aplicar aos produtos regionais, tal como o queijo, o pão, é também aplicável à cerveja.

Não existe proteção dessa palavra, qualquer pessoa pode chamar artesanal ou não. Outra palavra que está muito na moda é de abadia. O que é uma cerveja de abadia? Há cervejas que de facto eram feitas por monges, mas há marcas que apenas poem um monge no rótulo. É uma palavra que não está bem defendida. O artesanal, para nós, é o processo daquilo que conseguimos fazer em casa, apenas com um bocadinho mais de volume, e permite depois pôr rótulos e pôr à venda por exemplo aqui na Cerveteca.

RM - Juntava a isso, talvez, o cuidado com as matérias primas. Não é aceitável pôr corantes numa cerveja artesanal.

Quais são os ingredientes que podem entrar na receita?

RM - Água, malte, lúpulo e água: isso é a base. Há uma série de outros ingredientes que podem ou não entrar, por exemplo aroma de casca de laranja, com mel e gengibre, etc. Agora, tem de ser casca de laranja, não vale ir buscar concentrado de laranja. Há receitas que levam açúcar.

BA - Nas cervejas belgas é muito comum.

RM - Nas imperial stout é possível às vezes adicionar mais malte e então junta-se açúcar. Mas não é aceitável adicionar açúcar refinado para produzir álcool simples e para poupar cereais maltados.

BA - A qualidade de produtos é muito relevante. Por exemplo na Cerveteca temos lúpulo em sacos pequeninos que custa uma loucura porque o mestre cervejeiro foi buscar a uma produção especial à Nova Zelândia. O produto, para além do aroma, tem muitas características importantes, porque pode dar-lhe por exemplo, notas de maracujá, de papaia, de banana, cítricas… ele vai buscar à Nova Zelândia uma produção que é muito cara porque quer transmitir à sua cerveja um determinado perfil.

RM - É como se estiver a fazer um bolo para o aniversário do meu filho. Se for comprar à pastelaria sei que vai ter uma data de coisas, mas se calhar em casa vou ralar as amêndoas, tem outro significado.

BA - A cerveja artesanal tem um mercado, a cerveja industrial tem outro, o vinho tem outro. Não vai tirar o espaço a outras bebidas. O que era estranho anteriormente era não haver mercado para a cerveja artesanal, era chocante. Imagine que só comíamos queijo tipo flamengo, e não havia queijo Rabaçal, queijo de Nisa, queijo de Serpa…

O mercado das cervejas industriais existe, vai continuar a existir e nós podemos beber descontraidamente um cerveja industrial, mas também queremos ver este tipo de cerveja que merece um bocadinho mais de atenção.

Qual a vossa opinião sobre a proibição de consumo de bebidas alcoólicas incluindo a cerveja, a menores de 18 anos?

RM – Acho que durante muitos anos houve uma cultura em Portugal de beber por beber. O mais importante era retirar as bebidas baratas do mercado e as pessoas começarem a beber com 16, 17 anos, mas que fosse acompanhado. Que os miúdos bebessem um bocadinho de vinho ou de cerveja à refeição, com os pais. Não é sozinhos, no Bairro Alto, um litro de cerveja por um euro e meio.

BA – Primeiro, uma coisa é a legislação, outra é a fiscalização. Já existe legislação para menos de 16 anos e não acontece nada, passou-se para os 18… Para mim não acrescenta nada. Outro ponto é que não tem nada a ver com cerveja artesanal. Quem bebe cerveja artesanal está a beber um produto de qualidade, com aroma, com sabor, a acompanhar pratos de gastronomia, a fazer um momento de convívio, de confraternização. Há cervejas aqui à venda com 2 graus e há cervejas com 15 graus. Quem quer beber cerveja, ou vinho, ou gin barato, vai ter sempre acesso a isso.

Ana César Costa