Súbito, a História parece acelerar o seu movimento contínuo e recorda-nos a já velhinha teoria do caos: uma infíma mudança no início de um evento pode trazer consequências de grande escala, desconhecidas no futuro. Facto que também nos relembra que vivemos num sistema fechado, o planeta Terra.

Em poucos meses, o Mundo, tal como então o conhecíamos, mudou, mais rápido do que a volta completa de 365 dias deste nosso planeta em torno do Sol. O que em dezembro de 2019, não passou de um alerta da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre mais de duas dezenas de casos de pneumonia de origem desconhecida detetados em Wuhan, na China, tornar-se-ia matéria para preencher os quotidianos dos mais de sete mil milhões de habitantes da Terra. Os factos ganharam a velocidade de vertigem. A 1 de janeiro de 2020, é encerrado o mercado em Wuhan onde se suspeitava ter começado a contaminação. Quatro dias mais tarde, dezenas de doentes apresentavam sintomas associados a uma pneumonia de origem desconhecida. A 11 de janeiro, as autoridades chinesas identificavam o agente causador das pneumonias: um novo tipo de coronavírus, o SARS-CoV-2 (COVID-19). A doença era transmissível entre humanos.

O que começou por ser um evento distante que colocava no mapa global a cidade de Wuhan, com 11 milhões de habitantes, tornou-se próximo. Ainda em janeiro, França registava os primeiros dois casos de COVID-19 na Europa. A 2 de março, Portugal confirmava os primeiros dois casos de infeção com o novo coronavírus. Nove dias depois, a OMS declarava a Pandemia.

Com o número de casos a aumentar em Portugal, o país começou a temer e a adicionar ao léxico do dia a dia um novo termo: confinamento. O setor da restauração, com uma natureza convivial e social, percebeu a onda de choque que se anunciava. Isto após um ano de 2019 que fechara com números recorde no que toca ao turismo em Portugal. Em 12 meses, o nosso país recebera, entre nacionais e estrangeiros, perto de 27 milhões de visitantes, nos dados então revelados pelo Governo. A restauração nacional beneficiava com estes números otimistas. Portugal começava a afirmar-se no contexto da cozinha mundial.

Primeiro reduzir, depois encerrar

A 12 de março o primeiro-ministro, António Costa, anunciava publicamente a redução da lotação dos restaurantes. Face aos constrangimentos que a medida acarretava, assim como o número crescente de cancelamentos de reservas e quebra na clientela, centenas de espaços de restauração davam nota do encerramento de portas.

Nem mesmo casas com as tão almejadas estrelas Michelin escapavam à razia que afetava o setor, como aqui dávamos conta. O chefe de cozinha Rui Paula (Casa de Chá da Boa Nova/duas estrelas Michelin) acusava quebras de clientela na ordem dos 60%. Ainda a Norte, o restaurante Largo do Paço (Amarante/uma estrela Michelin), dava nota do encerramento temporário.

Lições do confinamento. E-book gratuito relata experiências de chefes de cozinha

Mais de 120 chefes de cozinha, empresários da restauração e especialistas da indústria alimentar, incluindo nomes como Albert Adria, Massimo Bottura, Elena Arzak e o português Alexandre Silva (restaurante Loco) deram o seu contributo para o e-book gratuito “Lessons from Lockdown: Cooking after Covid” que descreve as suas experiências e lições face ao confinamento. Há relatos tristes e muito pessoais, mas também esperança e resiliência.

Também os chefes de cozinha Alexandre Silva (Loco/Lisboa/uma estrela Michelin) e Ljubomir Stanisic (100 Maneiras/Lisboa/uma estrela Michelin conquistada em 2021), Martin Berasategui (Fifty Seconds/Lisboa/uma estrela Michelin), sublinhavam a agonia do setor, embora reconhecendo o momento muito sensível que o País atravessava. Na mesma altura o Grupo Plateform (grupo de restauração detentor de casas como o Alma - de Henrique Sá Pessoa -, Honest Greens, Sala de Corte, Tavares, ZeroZero), encerrava temporariamente os seus 150 restaurantes. Caminho idêntico trilhado pelo Grupo José Avillez que anunciava o fecho temporário da maioria dos estabelecimentos, entre eles o Belcanto, Café Lisboa, Beco, Mini Bar (Chiado e Porto), Cantinho do Avillez (Chiado, Parque das Nações, Cascais e Porto).

Entretanto, eventos anuais com expressão na restauração como o Peixe em Lisboa, Sangue na Guelra (que se realizaria em formato online) e o Lisbon Bar Show, tornavam público o aviso da sua não realização. Paralelamente, espaços emblemáticos da restauração na capital como o Time Out Market e o Mercado de Campo de Ourique, encerravam por tempo indeterminado.

O país começou a temer e a adicionar ao léxico do dia a dia um novo termo: confinamento. O setor da restauração, com uma natureza convivial e social, percebeu a onda de choque que se anunciava.

A vez ao take away e delivery

Ljubomir Stanisic que, mais tarde, em dezembro de 2020, assumiria a liderança informal do protesto "Sobreviver a Pão e Água", encabeçava na primeira quinzena de março de 2020 o movimento #Tomates, exigindo o encerramento imediato de todos os restaurantes: "temos de fechar portas para não espalhar a doença. Não fechei por falta de clientes, mas sim por questões cívicas”, acrescentando que “só farmácias, supermercados e hospitais” deviam manter as portas abertas, sublinhava Stanisic em entrevista à TVI. O mesmo chefe de cozinha reivindicava, então, “que as ajudas oficiais cheguem, antes que seja demasiado tarde”. Leopoldo Calhau (Taberna do Calhau), Luís Barradas (Okah), Vítor Adão (O Plano), Hugo Nascimento (Naperon), estavam, então, entre os chefes de cozinha que aderiram ao movimento.

Angústia e incerteza que antecipava o cenário que os dias subsequentes trariam: a 18 de março de 2020 era decretado o Estado de Emergência no País. Contexto que deixava à restauração, as suas mais de 120 mil empresas (incluindo similares e alojamento) e quatrocentos mil postos de trabalho diretos, margem para funcionamento em regime de take away (levantamento da refeição no estabelecimento) e delivery (entregas ao domicílio), com meios próprios ou à boleia de plataformas como a Uber Eats, Glovo, Comer em Casa, Eat Tasty, noMenu e a SendEAT.

COVID-19: Restaurantes nacionais aceleram para o take away e entregas ao domicílio. Conheça as ofertas
créditos: Lifestyle

Em poucas semanas, take away e delivery assumiam protagonismo maior nas ementas da restauração nacional.

Como nos recorda Luís Castelo, professor e chefe executivo do restaurante Oficina Oito, em artigo de opinião publicado no SAPO Lifestyle, “há que recordar um facto: por décadas, além das pizzas, pouco mais se pedia através do take away. Cerca de um ano antes, a Uber e outras plataformas semelhantes, começaram a vulgarizar este serviço. Porém muitos restaurantes, aparentemente nunca iriam aderir por questões de marketing, estratégia ou até de preconceito”.

“Hoje, poucos são os que além de terem aberto as suas portas não mantêm o serviço de take away em simultâneo. Este veio para ficar e revelou-se uma nova linha de negócio para a maioria da restauração”, salienta Luís Castelo, acrescentando que “o take away veio democratizar a comida e permite ter acesso a chefes de cozinha e restaurantes mais conhecidos que, no formato tradicional, seriam sempre menos acessíveis no que toca a preços”.

Hoje, poucos são os que além de terem aberto as suas portas não mantêm o serviço de take away em simultâneo. Este veio para ficar e revelou-se uma nova linha de negócio.

Tempo de solidariedade

Também momento para o setor revelar solidariedade em diferentes campos. Três exemplos: ainda em abril do ano transato um grupo de restaurantes uniu-se na iniciativa “Food for Heroes” para distribuir gratuitamente refeições junto dos profissionais de saúde a trabalhar nos hospitais. Por seu turno, Too Good To Go, plataforma que incentiva os restaurantes parceiros a disponibilizarem os excedentes das refeições a preços económicos, adaptou-se para, excecionalmente, funcionar como plataforma de take away. Por seu turno, como forma de apoiar restaurantes, bares e cafés encerrados, o movimento “Juntos Voltamos Já” convidava os interessados a adquirirem vouchers para uso futuro nos estabelecimentos.

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créditos: Kate Remmer/Unsplash

“Isto foi uma verdadeira bomba que caiu”

No início de maio de 2020, a realização online do simpósio Sangue na Guelra, pôs à conversa três chefes de cozinha: Alexandre Silva (restaurante Loco, Lisboa), Hugo Silva (restaurante Boi-Cavalo, Lisboa) e Vasco Coelho dos Santos (Euskalduna Studio, Porto). Debate que procurou encontrar respostas sobre a amanhã de estabelecimentos pequenos, aqueles que não contam com a máquina da gestão dos grupos de restauração.

“Teoricamente [no restaurante independente] é muito mais fácil colocares as tuas ideias em prática. Consegues chegar mais depressa à ideia que tens. No entanto, na prática, pode não ser assim, porque considerando tudo o que está a acontecer neste momento, poderá não haver dinheiro ou chegarem os apoios que precisas. Porque as empresas em termos jurídicos e contabilísticos podem ser mal-acompanhadas”, adiantava Alexandre Silva.

“O mundo preparou-se para as guerras nucleares, mas não se preparou para isto que nos está a acontecer”, referia na altura o chefe de cozinha, acrescentando, “aquilo que pensávamos ser o futuro estava errado; ou seja, investimento, investimento, investimento. Neste momento, temos de zelar para que a empresa tenha condições. Caso isso aconteça novamente, poderemos aguentar isto alguns meses”.

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Alexandre Silva, o chefe de cozinha com uma estrela Michelin no restaurante Loco, em Lisboa. Na foto, no seu outro restaurante em Lisboa, Fogo. créditos: Paulo Barata

Para Hugo Silva (restaurante Boi-Cavalo) “a grande vantagem em teres uma menor inércia empresarial, é porque tens menos pessoas a quem consultar e a tomar decisões. Contudo, não tens o apoio de um departamento contabilístico e de gestão pré-montado que te tratou de tudo no que respeita aos apoios que, supostamente, estariam a ser disponibilizados”. O chefe de cozinha sublinhou que face ao encerramento, “a nossa experiência com o take away foi muito rápida porque já tínhamos feito um pop-up anteriormente. Era uma espécie de solução que já tínhamos no bolso. Na desorientação total dos primeiros dias eu não estava a vê-la”.

Vasco Coelho dos Santos, que anuncia para breve a abertura da Peixaria by Euskalduna (por agora em regime de take away e delivery), decidiu em maio último não ter entregas ao domicílio ou take away: “fechámos assim que vimos as grandes quebras nas reservas. Tive cem cancelamentos numa semana. Infelizmente este ano também tivemos muito mais estrangeiros. Isto foi uma verdadeira bomba que caiu”.

Desconfinar, nova palavra de ordem

A 18 de maio, a restauração nacional desconfinava após perto de dois meses de portas fechadas. Também o SAPO Lifestyle regressava nessa altura aos restaurantes e sentava-se à mesa com o chefe de cozinha Vítor Sobral (detentor do Grupo Quina).

Para donos, chefes de cozinha e equipas dos restaurantes abria-se um mundo novo à mesa dos estabelecimentos, impensável quatro meses antes. A Direção-Geral da Saúde (DGS) detalhava o rol de novas regras de funcionamento, entre elas a redução da capacidade máxima dos estabelecimentos (situação que se alteraria a 1 de junho, com o fim da lotação máxima de 50% desde que existisse uma barreira física a separar os clientes), a higienização das mãos à entrada dos restaurantes, o uso de máscaras na circulação, privilegiar, sempre que possível, o uso de esplanadas e ementas em suporte digital.

Com o país em situação de calamidade e não obstante o novo protocolo à mesa, o verão de 2020 trouxe uma atmosfera de “quase normalidade” à restauração com inaugurações, reaberturas, novas cartas, algumas em formato reduzido, como a apresentada pelo restaurante Alma de Henrique Sá Pessoa. Em Lisboa, a chefe de cozinha Marlene Vieira abria, frente ao Tejo, o seu Zunzum Gastrobar, com produto 100% português. José Avillez aproveitara o período de confinamento para reestruturar o Grupo e encerrar seis restaurantes. A capital recuperava alguma da animação no que toca à restauração com a abertura de casas com o Oh! Sorte, Terroir, Dom Roger (com assinatura de Vítor Sobral). Em Aveiro, abria portas o primeiro estabelecimento de comida flutuante da região, o Laguna Restaurante. Mais a norte, no Porto e concelhos limítrofes, a restauração também fintava a crise pandémica com dezenas de aberturas. Alguns exemplos: Swallow Decadent Brunch, Taberna Asiática Shiko, Emotivo Restaurante, Sicario Taqueria Mexicana, Maria Limão.

Há Zunzum em Lisboa e a culpa é da chefe de cozinha Marlene Vieira
A chefe de cozinha Marlene Vieira que no verão de 2020 inaugurou o seu restaurante em Lisboa, o Zunzum Gastrobar. créditos: Chefs Agency

Um afã que, contudo, não afastava a situação débil enfrentada pela restauração nacional. Ainda em junho, a associação nacional de restaurantes, a PRO.VAR, salientava em comunicado que “15 dias após a data de reabertura, os restaurantes estão a viver um verdadeiro pesadelo. A faturação não chega a 40% do valor homólogo, sem contar com os cerca de 30% dos estabelecimentos que ainda se encontram fechados”.

Segundo a PRO.VAR, a solução para inverter o atual cenário passaria pela criação de um “plano de salvação do setor da restauração”, contando para tal com vários parceiros, designadamente o Governo, organismos públicos e privados, bem como com os empresários da restauração.

Oportunidade para as Dark Kitchens

Nestes restaurantes não há mesas, balcão de atendimento, espaço decorado por designers, sequer chefe de sala. As Dark Kitchens ou cozinhas fantasma/virtuais são um conceito que ganhou com o confinamento imposto pela COVID-19. As ementas estão apenas disponíveis online, em apps próprias ou através das plataformas de delivery, fortes impulsionadoras do conceito. Com um investimento mínimo em infraestrutura, estes restaurantes sem presença física beneficiam da capacidade de adaptar as ementas ao momento.

Em Portugal nasceram projetos como a Cookoo – The Kitchen Hub, que agrega diferentes conceitos de restaurante, disponíveis num mesmo pedido, com cozinhas japonesa, portuguesa, mexicana, italiana, entre outras.

Entretanto, os responsáveis pelo lançamento da tecnológica Uber em Portugal, Rui Bento e Nuno Rodrigues, operacionalizaram uma startup com o objetivo de possibilitar que restaurantes lisboetas sirvam a partir de cozinhas especialmente desenhadas para o serviço de entrega de comida. Nascia a Kitch que agrega atualmente espaços como o Go Juu (cozinha japonesa) e Umi’Kai (fusão de sabores havaianos e nipónicos).

As Dark Kitchens ou cozinhas fantasma/virtuais são um conceito que ganhou com o confinamento imposto pela COVID-19.

Aqui chegados, podemos questionar onde está a diferença face a outros serviços de entrega ao domicílio. São os próprios criadores do conceito Kitch que o explicam: “cada vez mais encomendamos comida para casa. É fácil, é conveniente e são cada vez mais os restaurantes disponíveis. Mas nem tudo é perfeito. A maioria dos restaurantes não conceberam a sua comida para viajar pela cidade dentro de uma mochila numa mota”.

Na prática, a Kitch trabalha com os restaurantes para criar conceitos desenhados para serem consumidos em casa das pessoas, desde os ingredientes, passando pelas receitas, até às embalagens”.

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créditos: Redcharlie/Unsplash

À frente do projeto Volup está Álvaro Meyer, jovem empreendedor de 25 anos, que lidera uma equipa que faz a ponte entre restaurantes premium e a necessidade de entregarem o seu produto aos clientes, mantendo a experiência gastronómica vivida naqueles espaços. A Volup conta com restaurantes como Lobo Mau, Pap´Açorda, O Pastus, Pátio Antico, Go Juu, Fiammetta, Arkhe, Gardens.

Campeonato de restaurantes no virtual onde também entrou o Grupo Sea Me (O Preço da Peixaria, Soão, Meat Me), com conceitos como A-Bao-T, Amor y Odio ou Olívia Burgers, com refeições entregues através das plataformas Uber Eats e Glovo.

Dentro do mesmo conceito, chefes de cozinha como Kiko Martins e o seu restaurante virtual, o “Kiko – Fresh & Healthy Food”, disponível na plataforma Uber Eats, com uma ementa que “pretende ser uma experiência com um conjunto de interpretações da cozinha”, como anunciava aquando do lançamento no final de 2020.

Também os chefes de cozinha Miguel Castro e Silva e Hugo Herin, afinaram as suas lides culinárias para o virtual, respetivamente com os projetos “deCastro” e “vaicomertudobem”.

Há, ainda, empresas que dão suporte à criação deste negócio de cozinha apostados no online, como a Weat, em Lisboa, com cozinhas industriais para arrendar. Entre os projetos que lhe estão associados, referência para as marcas VegAnas, Casa dos Trevos, Food Flow e Green Burguer. Mais recentemente, a Weat lançou-se numa iniciativa de carácter social e voluntariado. A empresa conta com mais de uma centena de voluntários, entre eles chefes de cozinha, com entrega de refeições em hospitais e a pessoas em situação de sem abrigo.

Volup, o serviço de entrega ao domicílio para restaurantes premium
créditos: Volup

Take away solidário

A crise pandémica também é uma crise social que expôs as fragilidades dos mais carenciados. Oportunidade para levar para o terreno iniciativas que nasceram com o intuito de apoiar quem mais precisa. Em Lisboa, o É um Restaurante, projeto que emprega na restauração pessoas em condição de sem abrigo, o estabelecimento mantém a atividade em regime de take away e entregas ao domicílio através das plataformas Zomato, Glovo e TakeAway.com.

Para além da carta disponível, o É Um Restaurante faz o apelo à solidariedade de todos os que aceitarem contribuir com bens alimentares para distribuição de alimentos a pessoas em situação de sem abrigo.

Cozinha com Alma, a operar em Cascais desde 2011, é um take away social aberto ao público, “onde o lucro gerado é aplicado numa Bolsa Social que permite subsidiar refeições e capacitar famílias em dificuldades financeiras temporárias”.

Mais recentemente, nasceu o movimento “Sopa para Todos”, iniciativa à escala nacional que assenta numa base simples de funcionamento: a partir da lista de estabelecimentos de restauração que se juntaram ao grupo na internet, todos os interessados podem adquirir uma sopa para doação (presencialmente no restaurante ou por MBWAY), oferecendo-a quem se debate com dificuldades.

O grupo aberto criado no Facebook também aceita o contributo de bens alimentares para utilização nas sopas.

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créditos: Dan Burton/Unsplash

Cozinheiros em congresso, tempo para refletir

Momento para sentir o pulso da restauração, o Congresso dos Cozinheiros, encontro que decorreu em Oeiras, em novembro de 2020, juntou protagonistas do setor. Rui Sanches, fundador e presidente-executivo da Plateform, classificou o cenário atual como “um tsunami. A restauração trabalha com margens curtas”. O mesmo responsável considerou que “a tecnologia que já estava a ganhar terreno dentro do negócio, será mais estratégica no quick service, casual dinning e fine dinning”. Uma “crise que revela que só os restaurantes mais fortes sobrevivem”. Não obstante a experiência de refeições à boleia do virtual, Rui Sanches, considerou que “o consumidor continuará a ir a um restaurante para passar um bom momento”.

No mesmo encontro, Ricardo Silva, do ICEL, empresa de consultoria de marcas, defendeu que a pandemia “nos trouxe uma forma de viver à qual têm de se adaptar pessoas e negócios. Das duas uma, ou baixamos os braços, ou fazemos as coisas de outra forma. A pandemia trouxe a visão de que a especialização não é uma boa coisa”. Para o consultor, “não devemos de estar à espera que a pandemia termine para voltarmos a fazer o que fazíamos antes. Todos os negócios passaram a ser negócios de saúde”.

Por seu turno, Duarte Calvão, gastrónomo, fundador do blogue “Mesa Marcada”, põe os olhos no futuro “vendo-o como um regresso ao passado. Quero o antigo normal, não é sustentável a vida que levamos. Aquele que foi durante largos anos organizador do evento Peixe em Lisboa, vê no futuro uma oportunidade: “gostava que quando voltássemos ao antigo normal os cozinheiros serenassem na busca incessante pela celebridade, a necessidade de abrirem 30 projetos ao mesmo tempo. Que a pandemia servisse para quebrar um ciclo”.

chefe de cozinha
créditos: Conor Samuel/Unsplash

De novo confinar

Novembro trouxe novo Estado de Emergência e com ele restrições à circulação, recolher obrigatório noturno e aos fins de semana nos concelhos de maior risco de contágio. A restauração enfrentava novos desafios, com horários reduzidos e encerramento às 13h00 aos fins de semana. Após essa hora, apenas a possibilidade de entrega ao domicílio.

Constrangimentos que levam restaurantes de topo, como o Belcanto, de José Avillez, a apresentar descontos de 50% (mais tarde encerraria por tempo indeterminado) ao almoço e o restaurante Alma, com a cozinha entregue a Henrique Sá Pessoa, a disponibilizar gift cards com descontos.

Isto, numa altura, em que casas como o restaurante Feitoria (de João Rodrigues/uma estrela Michelin), ou o espaço Time Out Market, ambos na capital, encerravam portas, até que o contexto permita a reabertura.

Até final de 2020 mais de 5600 restaurantes, cafés e pastelarias e bares fecharam portas no país, mais 300 do que no mesmo período de 2019 (dados da Autoridade Tributária).

A crise pandémica também é uma crise social que expôs as fragilidades dos mais carenciados. Oportunidade para levar para o terreno iniciativas que nasceram com o intuito de apoiar quem mais precisa.

AHRESP e o fraco consolo do take away

De acordo com o Inquérito da AHRESP referente a janeiro de 2021, efetuado junto das empresas de restauração e similares, 79% destas afirmavam ter registado uma quebra superior a 61% na faturação no primeiro mês do ano de 2021, em comparação com o mês homólogo do ano anterior. Ainda de acordo com a mesma fonte, 36% das empresas ponderavam avançar para insolvência, caso não conseguissem suportar todos os encargos.

No que respeita ao funcionamento, 51% das empresas indicavam estar totalmente encerradas, sublinha a AHRESP. Em funcionamento sustentado nos regimes de take away e delivery, encontravam-se 26% das empresas.

Em linha com o mesmo documento, 75% das empresas já recorrera ao lay-off simplificado. Entre as empresas que não recorreram, 19% optou pelo apoio à retoma progressiva e 14%, sublinhava não recorrer a apoios.

Ainda sobre o take away e entregas ao domicílio, Ana Jacinto, secretária-geral da AHRESP, citada pela Lusa, defendia em janeiro último “que as empresas vão trabalhando, porque precisam de trabalhar”, mas quando chegam ao final do mês percebem que “a rentabilidade das vendas é praticamente nula em relação ao take away e ao delivery”.

“Juntos Voltamos Já”, o movimento que quer ser um dos salva-vidas dos restaurantes nacionais
Para apoiar restaurantes, bares, cafés, o movimento “Juntos Voltamos Já” reuniu, em 2020, apoios para o setor através da aquisição de vouchers para uso futuro.

“No que diz respeito ao delivery e às comissões, que são elevadíssimas e que acabam por não tornar os negócios rentáveis, não é a salvação para nenhuma empresa, mas acabam por ir faturando alguma coisa, para manter os trabalhadores e a rotina de trabalho, para a operação não parar totalmente”, sublinhou a responsável, acrescentando que “à exceção de empresas que já tinham como ramo de atividade básica o take away ou as entregas ao domicílio antes da pandemia, as que aproveitaram estas modalidades para fazer face às restrições impostas para conter a COVID-19 enfrentam várias dificuldades”.

No que diz respeito ao delivery e às comissões, que são elevadíssimas e que acabam por não tornar os negócios rentáveis, não é a salvação para nenhuma empresa, mas acabam por ir faturando alguma coisa.

Recorde-se que como forma de balizar as comissões cobradas pelas plataformas de entrega ao domicílio, o Governo limitou-as a um máximo de 20%. “Muitos destes negócios não têm margem sequer de 20% para pagar 20% a uma plataforma e, portanto, logo à partida isto é um fracasso”, referiu Ana Jacinto.

Mais recentemente, a 19 de fevereiro, a AHRESP, em audiência decorrida com a Secretária de Estado do Turismo e com o Secretário de Estado do Comércio, Serviços e Defesa do Consumidor, apresentou uma proposta de medidas que incluem apoio ao emprego (ex. inclusão dos sócios gerentes no lay off simplificado), apoios à liquidez (ex. reforço das medidas dos programas Apoiar.PT e Apoiar Restauração; disponibilização de apoios para empresas recentes; prorrogação da moratória sobre contratos bancários); apoios fiscais e contributivos; apoios ao Funcionamento (ex. revogação da proibição de venda de bebidas em take away, funcionamento em take away nos centros comerciais).

PRO.VAR e os despedimentos

Ainda antes do novo confinamento geral, decretado a partir de 15 de janeiro, a PRO.VAR tornava público os resultados de um inquérito efetuada entre 4 e 10 de janeiro, junto de 542 estabelecimentos de restauração: “os empresários da restauração, com especial incidência nos restaurantes, afirmam que terão de despedir entre três a quatro trabalhadores por estabelecimento, o que se prevê que os despedimentos ultrapassem os 100 mil trabalhadores neste primeiro trimestre”.

De acordo com a mesma associação setorial, a maioria das empresas da restauração consideram que a modalidade de take away “não é solução”.

“Nós As Pessoas”, o projeto com foco na saúde mental dos profissionais da restauração
créditos: Kristina Tripkovic/Unsplash

Apoio psicológico

Perante a vida intensa que um profissional ligado ao setor da restauração pode experienciar, a crise sanitária mais recente veio acrescer problemas já existentes e agravar outros anteriores, como a forte pressão psicológica, o excesso de horas de trabalho, a falta de tempo para a vida pessoal e familiar ou o ambiente de trabalho pouco saudável.

Como forma de dar suporte aos profissionais do setor, em fevereiro de 2021 foi apresentado publicamente o compromisso “Nós As Pessoas”. A iniciativa das Edições do Gosto, com a parceria da Oficina de Psicologia, apresenta três pilares de ação: dar a conhecer as pessoas, partilhar ferramentas e experiências, oferecer apoio para o bem-estar psicológico a todos os intervenientes no setor.

E agora chefes de cozinha?

Há meses a lidarem com a incerteza dos dias, chefes de cozinha procuram equilibrar uma mensagem positiva e de resiliência com a frustração de verem as cozinhas dos espaços onde trabalham encerradas ou com operações reduzidas ao take away e delivery. Falta-lhes a vertigem do dia a dia, do trabalho em equipa. Sobra-lhes, contudo, tempo para delinearem novas cartas, conceitos, refletirem os caminhos a seguir pós confinamento e, também, tempo para estarem em família.

Damos a palavra aos chefes de cozinha:

Tiago Bonito, restaurante Largo do Paço, Casa da Calçada, Amarante (uma estrela Michelin)

“Vivemos um período extremamente difícil para a sociedade a nível mundial e de grande penalização e drama para muitos sectores, e principalmente para o turismo e restauração. Apesar das atuais circunstâncias, temos de ser resilientes, otimistas, não baixar os braços e continuar a pensar num futuro melhor, de cabeça fria e racional”.

“Neste período, apesar das dificuldades surgem sempre oportunidades. Usei este período para estudar e pesquisar novas técnicas, novos produtos e produtores, aprofundar a nossa história e tradição, apostar na formação da minha equipa e fazer experiências de novos pratos e ideias que tinha no papel”.

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Chefe de cozinha Tiago Bonito. créditos: Largo do Paço

Diogo Rocha, restaurante Mesa de Lemos, em Passos de Silgueiros, Viseu (uma estrela Michelin)

"Dias difíceis, longos, irresolutos, incertos e de hesitação são aqueles que já passaram e ainda faltam passar neste período inesperado e necessário para a segurança de todos, que coloca sobre a nossa mente um gigante ponto de interrogação sobre o futuro de todos os restaurantes, cozinheiros e as vastas equipas que deles dependem deste setor”.

“No nosso restaurante Mesa de Lemos, temos a figura de Celso de Lemos, visionário, que nos lidera e faz-nos crer no impossível, fazendo-nos acreditar naquilo que nem nós por vezes acreditamos. E se em tempos parecia mais fácil, hoje, a sua motivação, trabalho e generosidade não nos deixa cair na pasmaceira e ajuda-nos a querer continuar a fazer mais e sempre muito melhor que ontem”.

“Sei que nem todos terão um Celso de Lemos, e será previsível um período de enorme dificuldade no setor do turismo e em todas as suas áreas, sobretudo porque quando ‘regressarmos’, estaremos a competir com o Mundo inteiro, e teremos de ser criativos para voltarmos a ser atrativos. Isto, para regressar aos níveis de sedução e número de visitantes e turistas que tínhamos antes”.

Em Viseu, nova ementa do restaurante Mesa de Lemos aposta na frescura do campo
Chefe de cozinha Diogo Rocha. créditos: RAWSTUDIO

Gil Fernandes, Restaurante Fortaleza do Guincho (uma estrela Michelin) 

"Neste último ano enfrentámos uma gigante queda na faturação. Neste momento, o hotel/restaurante está fechado e estamos todos em casa. Não há procura, o que torna o nosso planeamento mais difícil”.

“Há um ano, adaptámo-nos e abrimos um novo espaço dentro do hotel, o Spot by Fortaleza do Guincho. Correu muito bem face à situação. O feedback foi muito positivo e motivador, apelou à nossa resiliência para continuarmos com ganas de encarar um futuro incerto”.

“A alma humana foi feita para ter ocupação, neste momento encontramo-nos sem esta arma preciosa onde reside o equilíbrio do nosso quotidiano. Cabisbaixos, impotentes, desocupadamente stressados. Colocámos em stand-by os nossos sonhos, vontades e algumas alegrias como a de ver o nosso cliente com um sorriso na cara depois de uma refeição elaborada por nós. Privados de toque, de olhar nos olhos, de uma conversa simples que nos faça sentir”.

“O reverso da moeda é o desejo de voltarmos ao ativo o quanto antes, de abraçar, de cozinhar para o nosso cliente, de rir enquanto desfrutamos da nossa paixão. Não nos resta outra hipótese se não a de lutar com todas as nossas forças para voltarmos a ranger os dentes de mão dada fazendo frente a esta situação. Tudo faremos, adaptar-nos-emos aos novos tempos, por nós, pela Fortaleza do Guincho, por Portugal e por respeito aos nossos antepassados que passaram pela mesma situação e a ultrapassaram. Encarar o futuro com uma certeza: a de manter a arte da gastronomia viva enaltecendo a nossa cultura”.

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Gil Fernandes. créditos: @Pedro Sampaio

Carlos Afonso e Sérgio Frade, restaurante O Frade, em Lisboa

“No restaurante O Frade, quase há um ano, desde que a pandemia se apoderou da nossa sociedade e do nosso dia a dia, retivemos duas coisas importantes: é preciso ter resiliência e capacidade de adaptação e é necessária esperança, não perder o sonho. Para nós, enquanto empresários é saber sê-lo e saber viver no incerto, mas com esperança e atitude positiva”.

“No primeiro lockdown fechamos como todos, fomos para casa pensar. Tivemos tempo de sobra para refletir, traçar metas e descobrir novos horizontes, e voltamos, com algumas metas. Manter e assegurar o maior capital de todos, o capital humano e a partir daí trabalhar”.

“Criámos vários serviços, nomeadamente o take away, ‘Frade em casa’, ‘Frade Família’ e ‘Amigos’, e voltámos, ao ativo.  Vimos o número de lugares reduzido, os horários de faturação também, mas não desistimos e fomos em frente com take away e abertos ao público, criámos uma esplanada, e conseguimos equilibrar as contas”.

“No novo lockdown, mantivemos o take away e reforçámos as parcerias com as empresas de distribuição, Ubereats, Glovo, Volup_pt”.

“Continuamos a planear, desenvolvemos estratégias de recuperação e crescimento para o futuro.  A pandemia trouxe também um cenário de reinvenção, deu-nos tempo para organizar e estruturar o futuro”.

Carlos Afonso e Sérgio Frade
Sérgio Frade e Carlos Afonso. créditos: Francisco Angelino

Fábio Alves, restaurante SUBA, Palácio Verride Santa Catarina, Lisboa.

"Este novo confinamento, além de estar a ser mais difícil que o primeiro, veio também atirar por terra a esperança, e trazer a certeza de que 2021 vai ser um ano muito duro. Vai ser um ano em que temos de estar firmes e resilientes para chegar ao final da maratona, para que quando o novo normal começar, estarmos preparados, estruturalmente e animicamente, para voltar a bem receber os nossos clientes”.

“Devemos aproveitar este tempo de paragem para passar tempo com a família - algo que no nosso dia a dia normal acaba sempre por ter a menor parcela do nosso tempo -, para nos reinventarmos, criarmos novos menus, novos pratos, e estruturar ideias para tentar surpreender e trazer sorrisos a quem nos visita”.

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Chefe de cozinha Fábio Alves. créditos: Suba