Tal como acontece por toda a Europa, a composição das famílias portuguesas está a mudar.
Há cada vez mais casais sem filhos e crianças a viver apenas com um progenitor, a família alargada tem menos expressão, enquanto vão surgindo outros modelos.
De acordo com a Pordata, uma base de dados estatísticos europeia, em 2005 havia, em Portugal, 2.224.100 agregados familiares sem filhos, número que em 2008 subiu para 2.357.400, enquanto as famílias monoparentais cresceram 2,5 por cento no mesmo período.
É neste cenário de mudança que nos propusemos, com a ajuda de especialistas, a caracterizar as principais famílias, mostrar os pontos fortes e fracos de umas e outras, bem como sugerir formas de gerir os conflitos. «O tema e o termo família é dos mais difíceis para a ciência. Está a mudar de forma tão intensa e rápida que não existe absolutamente uma definição atual e única», afirma Lidia Weber, especialista em psicologia do desenvolvimento familiar.
No entanto, para a psicóloga, a definição que mais se aproxima da realidade é a do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos da América. «Família é uma rede de pessoas com compromisso mútuo», o que implica, continua, «que a família pode estar relacionada com o casamento, a biologia, a adoção, a obrigação, a dependência, a cooperação, embora o senso comum ainda entenda este termo como um grupo de pessoas ligadas pela genética ou pelo sangue».
As famílias de hoje já não se caracterizam apenas pelo modelo tradicional composto por pai, mãe, filhos e família alargada. Atualmente, incluem também madrastas, padrastos, meios-irmãos, ex-parceiros, ex-noras, ex-genros e/ou ex-sogros, entre outros. «Existe uma multiplicidade de tipos diferentes de família que funcionam efetivamente. Hoje, parece claro que a forma da família é menos importante do que as relações», realça Lidia Weber.
Alterações sociais
A grande diversidade de estruturas e modos familiares está associada, como não poderia deixar de ser, a alterações sociais, culturais e até económicas. «Têm havido mudanças significativas no contorno das vidas familiares e das relações pessoais ao longo dos últimos 30 anos, com um aumento das uniões de facto, separações, divórcios, monoparentalidade, mais famílias reconstituídas e pessoas vivendo sozinhas, e um maior reconhecimento das relações entre pessoas do mesmo sexo», afirma Fiona Williams professora de política social na Universidade de Leeds e diretora do ESRC Research Group Care, Values and the Future of Welfare (CAVA) no livro «Repensar as famílias» (Principia).
Em Portugal, «a emigração nas décadas de 60 e 70, a entrada da mulher no mercado de trabalho e a consequente melhoria das condições de vida, a mudança de valores na revolução de abril condicionaram a formação de jovens casais com novas oportunidades de formarem família», explica a socióloga Sónia Vladimira Correia.
A análise é eita tendo em consideração o inquérito Family and Gender Roles» do International Social Survey Programme.
Essa «autonomização conduziu à diminuição das famílias complexas pelo fechamento sobre a nuclear (casal com filhos)», acrescenta a mesma especialista.
Onde está a perfeição
Seja qual for o seu tipo de família, não há uma fórmula certa nem um livro de instruções para gerir a vida em conjunto. As relações familiares baseiam-se não só nos sentimentos, mas também nos comportamentos.
Não se considera um modelo de família melhor ou pior do que outro, «o importante é como os membros agem entre eles, e devem fazê-lo com respeito, tolerância, altruísmo e afeto», explica a especialista em psicologia do desenvolvimento familiar. «É importante considerar que cada tipo de unidade familiar tem vantagens e desvantagens e isso depende não só do tipo de estrutura mas também das pessoas que encaixam nela», assegura Vítor Rodrigues, psicólogo.
Lidia Weber vai mais longe e afirma que «os vínculos familiares não são iguais a um anúncio de leite magro, no qual todos sorriem com uma música suave de fundo… Família envolve beijos, abraços e também brigas e conflitos», sublinha a especialista.
Gestão de conflitos
A forma como os problemas são tratados e a maneira como se pode estimular o sentido de família não depende da sua estrutura. Este «é apenas um aspeto, que não nos informa sobre a qualidade das relações nem a felicidade das pessoas.
Pode acontecer duas famílias monoparentais terem pontos fracos ou fortes muito diversos, dependendo das pessoas que a constituem, da relação que existe entre os elementos da família nuclear, da família extensa, do emprego e da rede de amigos», realça Célia Sales, professora na área da psicologia. Uma opinião também partilhada por Vítor Rodrigues. «A forma como os vários elementos se relacionam depende das características específicas de cada um, mas de um modo geral, quanto mais solidariedade, comunicação fácil e sincera, e abertura de espírito haja, mais possibilidades haverá de bom convívio e maior felicidade» para todos.
«Em qualquer família, um ponto forte é a flexibilidade face às mudanças que cada um dos seus elementos vai experimentando ao longo da vida, e também face às alterações impostas pelo exterior», declara Célia Sales. À flexibilidade, Catarina Mexia, psicóloga, acrescenta «o respeito mútuo».
Pertencer a um clã
Sofia, 36 anos, casada com duas filhas tem uma família dita tradicional e diz que «era incapaz de viver longe dela». Conta com o apoio dos pais e dos sogros diariamente e, sempre que é preciso, a irmã e até as tias dão uma ajudinha.
Sofia faz parte de uma família alargada sempre presente. Uma situação que lhe agrada particularmente.
«Somos cerca de 30 pessoas, entre avós, tios, primos, e sabemos que podemos contar uns com os outros, juntamo-nos todos várias vezes por ano e o Natal é uma delas», afirma. Quando questionada sobre se nunca se chateiam, a resposta surge pronta. «Claro que sim até porque cada um defende o seu ponto de vista quando não estamos em acordo, mas é tudo discutido de forma saudável», assegura.
Para Vítor Rodrigues, «os clãs familiares em que há muita solidariedade e proximidade » entre os vários membros podem ter a vantagem de proporcionarem redes sociais mais fortes, um menor isolamento, melhores apoios para situações como doença, perdas, desemprego mas também festas, nascimentos, mudanças positivas. «No entanto, isto depende do carácter desses clãs», ressalva.
As regras da partilha
«A família tradicional tem a seu favor isso mesmo, a tradição. O modelo, a rotina dos anos que passam, a herança transgeracional que transmite segurança. Se apreciarmos aquilo que é a nossa própria família, mesmo os momentos de maior crise, quando enquadrados pelo modelo da família tradicional, parecem-nos normais e necessários para o nosso crescimento», afirma Catarina Mexia.
De acordo com a especialista Lidia Weber, os pontos fortes destas famílias alargadas são, para além da «condição sócio-económica mais favorável, a cumplicidade, a partilha, a aprendizagem de habilidades sociais, a empatia, a amizade, a negociação, o nunca estar sozinho, a alegria e as tristezas compartilhadas, o planear a vida em conjunto e o suporte emocional».
Mas todos estes aspetos positivos, podem também esconder algumas desvantagens, entre as quais, «a confusão, invasão de privacidade, brigas e até a rotina que provoca discussões por pequenas coisas», como destaca a especialista em psicologia do desenvolvimento familiar. Lidia Weber acredita que as práticas e os estilos parentais e familiares «devem incluir necessariamente afeto e limites de forma equilibrada».
Família monoparental
Com uma experiência familiar totalmente diferente, mas nem por isso menos gratificante Carla 35 anos, é mãe solteira.
«A minha relação com o pai da minha filha acabou mesmo antes de saber que estava grávida e foi um choque para todos. Apesar de tudo, decidi ter a minha filha, sozinha sentimental e financeiramente falando», conta.
Carla é um exemplo do modelo familiar que está em crescimento, no entanto, «ao contrário do que se pensa, as famílias monoparentais não são uma nova forma de família», sublinha Sónia Vladimira Correia.
Embora essencialmente ligadas a situações relacionadas com a ausência/ emigração masculina, o falecimento de um dos cônjuges ou o celibato feminino associado ao nascimento de filhos fora do casamento, estas famílias sempre fizeram parte do retrato da sociedade portuguesa», esclarece a socióloga. Hoje em dia, têm vindo a tomar proporções e formas diversas e a este facto não é indiferente o aumento do número de divórcios.
Desafios a solo
Carla encontra muitas vantagens em ser mãe solteira como por exemplo, ter a filha só para ela a maior parte do tempo. Nem sempre foi tudo tão fácil, porque o pai esteve ausente durante alguns anos, mas «felizmente tudo se compôs e, embora esteja em perfeita sintonia com o pai, no que diz respeito à sua educação, sou sempre eu a tomar as primeiras decisões e isso faz-me sentir um pouco mais importante», sublinha.
Mas por outro lado, também sabe que será a primeira responsável, já para não falar das desvantagens financeiras, pois criar um filho sozinha não é tarefa fácil». Vítor Rodrigues concorda. «As famílias monoparentais costumam representar quase sempre um fardo mais pesado, financeira e intelectualmente, para as pessoas que se vêm obrigadas a criar os filhos sozinhas e para estes, por se verem privados de um dos progenitores e do modelo de referência e apoio emocional que este poderia ser».
Laços fortes
Nestas famílias, «o sentimento de sufoco e de cansaço muitas vezes expresso pelos seus elementos, é compensado por uma atenção, partilha e cumplicidade difícil de igualar, já que a responsabilidade não sendo partilhada é transformada e vivida numa relação muitas vezes mais igualitária com a descendência», esclarece Catarina Mexia
«Há uma maior disponibilidade para com os filhos uma vez que o pai ou mãe não precisa se preocupar com o parceiro», acrescenta Lidia Weber.
Nos pontos fracos, esta psicóloga destaca a «relação tumultuosa com o ex, haver alienação parental de uma das partes, dependência dos filhos, mas também responsabilidades excessivas para a criança». «A intensidade dos conflitos é também muito forte pois a presença do outro faz falta para mediar a situação», refere Catarina Mexia.
Famílias reconstruídas
O divórcio está a crescer em Portugal e é um dos fatores que mais tem contribuído para a mudança do panorama familiar. Só em 2009, segundo dados do INE, houve um total de 26.464 divórcios, o que equivale a uma média de 72 casamentos dissolvidos por dia.
«Cada vez mais se observa uma maior aceitação da rutura conjugal», afirma Sónia Vladimira Correia. Isto porque mais do que a realização do casal, procura-se a realização pessoal também nas relações. Assiste-se a «um processo de individualização através do qual as pessoas são aliviadas das convenções e constrangimentos estabelecidos e podem começar a modelar as suas vidas e as suas relações», realça a especialista.
«Isto possibilita a procura de relações mais abertas, mais democráticas e mutuamente gratificantes, mas também significa que à medida que o amor adquire uma importância maior a sua conquista torna-se mais incerta», afirma Fiona Williams na obra já referida. Mas isto não significa que a família seja posta em causa. Muitos dos divorciados voltam a construir uma vida a dois. É neste cenário que surgem as famílias reconstruídas, compostas pelo novo casal, pelos filhos de cada um e pelos que têm em comum.
1+1 = 6!
A formação de um novo núcleo familiar precedida pela existência de uma ou duas famílias, nem sempre é fácil. Os filhos têm receio de ser relegados para um segundo plano, devido à presença de novos elementos. Mas isso pode ser evitado. basta que todos se sintam parte integrante deste novo grupo. Margarida, 36 anos, ganhou uma família quando casou com Manuel, pai de quatro filhos dos dez aos 14 anos, que vivem com o casal.
Ao descrever a sua vida familiar, Margarida garante que «são muito felizes» e têm «uma relação muito sólida e consolidada, baseada no respeito e confiança entre todos». Não gosta de ser chamada de madrasta pela conotação negativa da palavra e não teve dificuldade nenhuma na integração com as crianças. «Porque acima de tudo está o respeito por elas e pelo seu espaço, quer em casa quer na sua relação com o pai. É necessariamente fazê-las sentir que há espaço e tempo, no coração e no dia a dia do pai, para todos nós», realça.
Diversidade em casa
Um dos aspetos positivos nas famílias ditas compostas está, como confirma Lidia Weber, na possibilidade de aprender «a conviver com a diversidade e a lidar com os diferentes sentimentos».
«O grande desafio é encontrar o nosso lugar, sejamos marido, mulher, filhos, ou mesmo avós», salienta Catarina Mexia.
Os conflitos podem estar associados «ao convívio com pessoas pelas quais nem sempre se tem afeto, à divisão de datas comemorativas, férias e fins de semana, repartição das coisas em casas diferentes, lidar com sentimentos negativos de parceiros». Carla garante que isso não acontece no seu caso.
«Confio piamente no pai sempre que lhe entrego a nossa filha e, ainda para mais, ele tem uma companheira excecional, que sempre a aceitou e sempre a tratou bem, ao ponto de a minha filha dizer que tem duas mães», sublinha. Uma situação que contrasta, contudo, com a de muitos casais em que o pai, ao divorciar-se da mãe, se divorcia, também, dos filhos.
Estar sozinho
Na sociedade atual, há também cada vez mais pessoas a viverem sozinhas, umas porque a vida as obrigou a isso, outras por opção. Francisco, 34 anos, é um destes casos. Está há cinco anos a trabalhar em Berlim, longe da família. Vem a Portugal uma a duas vezes por ano, mas nunca no Natal. «Como estou na área de hotelaria, trabalho sempre na altura das festas e realmente não sinto falta disso. Quando não estou a trabalhar, junto-me com alguns amigos também estrangeiros e vivemos o Natal à nossa maneira», diz. E é a estes que recorre sempre que precisa de algo.
Fiona Williams também caracteriza este modelo familiar no seu livro. «São as pessoas para quem os amigos desempenham um papel importante, mesmo central nos seus compromissos e sentido de pertença. (…) Este critério atribuiu primazia aos amigos na prestação de cuidados e apoio do dia a dia», escreve. «Estar longe da família, ajuda-nos a dar ainda mais valor aos amigos», confirma Francisco.
Mais autonomia
Independência e autonomia completas são as grandes vantagens que Francisco vê na sua vida a solo. Lídia Weber acrescenta mais algumas. «As decisões são tomadas facilmente, não há conflitos, nem tem de haver paciência para a desarrumação das outras pessoas e as condições económicas também podem ser favoráveis dado que há menos gastos», sublinha.
Os pontos fracos, segundo a mesma especialista, são a ausência de suporte emocional, a possível tristeza de comemorar algumas datas importantes sozinho, a tendência para acentuar idiossincrasias e falta de tolerância com os outros. Francisco ainda não notou, mas diz estar preparado para eles. Formar uma família não está completamente posto de parte, mas «ainda não aconteceu». Apesar de sentir alguma pressão para o fazer, por enquanto está bem sozinho.
Valorizar a festa do Natal
Para além da personalidade, afetos e afinidades de cada um, existe um fator que afeta qualquer tipo de família, a distância. Uma realidade que não deve, no entanto, servir de desculpa.
«Hoje, há recursos maravilhosos como a Internet, mas o mais importante é o desejo de manter os vínculos», sublinha Lidia Weber.
«É preciso fazer uma espécie de programação, como enviar uma mensagem ou ligar de vez em quando», afirma ainda. Contudo, nada substitui o contacto físico, por isso, a especialista em psicologia do desenvolvimento familiar, aconselha «a valorizar ao máximo certas datas em que seja possível reunir os membros, e o Natal é umas delas».
Vítor Rodrigues aconselha todos a retomarem o sentido tradicional do Natal como festa de família, de convívio e interesse mútuo. «Muito mais do que uma corrida às prendas, esta é a ocasião para se reunirem» e isto tanto é válido para grupos grandes como pequenos. «Mesmo numa família monoparental é possível fazer coisas especiais, comunicar com particular carinho ou ir ao encontro de outros familiares ou amigos», remata.
Texto: Rita Caetano com Catarina Mexia (psicóloga), Célia Sales (professora de psicologia), Lídia Weber (especialista em psicologia do desenvolvimento familiar), Sónia Vladimira Correia (socióloga) e Vítor Rodrigues (psicólogo)
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