Dormimos mal, poucas horas e desvalorizamos o facto. Isto, não obstante a evidencia científica de que ao fazê-lo comprometemos o nosso bem-estar quotidiano, a saúde e, em extremo, estaremos a subtrair anos às nossas vidas. Atentas à questão do sono em Portugal, Bruna Reis e Sofia Rebocho, Cardiopneumologistas especializadas em Medicina do Sono, assinam o livro O Teu Mal é Sono (edição Manuscrito). O livro, tal como a conversa que aqui mantemos com as suas autoras, traz-nos evidência sobre os benefícios de nos propiciarmos um bom sono, qualitativo e quantitativo: melhoramos o nosso desempenho no dia a dia, a aparência, a aptidão física, as relações e, importantíssimo, prevenimos doenças.
Tão importante quanto é empreender o caminho rumo a um bom sono é sabermos identificar as causas inerentes a dormirmos mal, afastarmos ideias feitas ou aceitar como fado que sonolência excessiva, acordar cansado ou ressonar são normais. Não o são. Uma conversa que visita temas como o sono nas crianças e adolescentes, a utilização de fármacos para dormir e ao mundo dos distúrbios do sono menos comuns.
Bruna Reis e Sofia Rebocho são autoras do podcast O Teu Mal é Sono.
Seria interessante percebermos como se dá a parceria entre ambas na concretização do livro que agora assinam. Há um percurso anterior, profissional, e também ligado a um podcast…
Iniciei o meu [Bruna Reis] percurso na Medicina do Sono desde que me licenciei há cinco anos. A Sofia, que tem uns ‘modestos’ 17 anos de experiência nesta área, foi minha mentora na clínica do sono em que trabalhamos juntas até à data. Entretanto, quando a nossa clínica fechou temporariamente aquando da fase pandémica, a minha inquietude fez com que desafiasse a Sofia para criarmos um podcast sobre o sono e os seus distúrbios, porque me deparava constantemente em contexto clínico, familiar e social com muitas crenças, mitos, meias-verdades e desconhecimento em relação ao sono.
Nos últimos anos, assistimos à publicação de diferentes livros sobre a temática sono. No presente, o que diferencia o vosso livro de títulos anteriores?
A maioria dos livros que existem sobre sono focam-se no sono pediátrico, porque é sempre um tema que deixa os recém-pais desconfortáveis. E os restantes títulos pareciam-nos datados e/ou insuficientes na eficácia em passar a mensagem da importância do sono para o público em geral. Não encontrámos um livro que se propusesse àquilo que tentámos concretizar com O teu mal é sono. Trata-se de um livro dinâmico, interativo, prático, com curiosidades, esquemas, “sabias que”, testemunhos reais e ilustrações, com uma linguagem próxima, mas científica para redescobrirmos o que é o sono e o que ele significa nas nossas vidas.
A abrir o livro escrevem: “O sono consegue ser um dos fenómenos mais conhecidos e comuns e, simultaneamente, um dos mais ignorados”. Qual o alcance destas vossas palavras?
Apesar de o sono ser um fenómeno universal e de dormirmos desde que nos conhecemos enquanto espécie, poucos são aqueles que param para pensar o que realmente acontece ao nosso cérebro e corpo durante as oito horas em que todos os dias nos deitamos. Ignoramos o fenómeno e desvalorizamo-lo, mantendo-o fora dos currículos escolares, quando é ele que nos dá todas as capacidades e ferramentas para vivermos com longevidade e qualidade.
O que define um mau sono?
Um mau sono é um chapéu que serve a todo o sono que não tem a duração, continuidade, profundidade e regularidade adequada. Temos de acordar revitalizados, despertos e com energia para responder aos desafios do dia a dia. Tudo o que fuja a isto é um mau sono.
Temos de acordar revitalizados, despertos e com energia para responder aos desafios do dia a dia. Tudo o que fuja a isto é um mau sono.
Quando nos apresentam um dos capítulos do vosso livro – “Tenho tanto sono” – recorrem ao termo “indignação” para o caracterizar. Porque vos indigna essa expressão?
Na primeira parte do capítulo a que se refere dedicamo-nos a explorar o “distúrbio do sono” mais prevalente no mundo inteiro: a privação de sono. O que nos indigna é o facto de sermos a única espécie que se priva de dormir e que coloca esta função fisiológica no final da sua lista de prioridades. Nenhum outro animal anda a protelar o descanso e a cair de sono pelos cantos. De todos os erros e agressões que podemos cometer contra a nossa saúde nenhuma nos parece pior do que cortar das horas de descanso de forma inconsequente, mas nós fazemo-lo levianamente, todos os dias, e ainda nos gabamos disso.
Muitos leitores desconhecerão o que é uma consulta do sono. Querem explicar-nos do que se trata e em que circunstâncias devemos recorrer a esta consulta?
Uma consulta do sono é um momento em que um médico especializado em medicina do sono tem a oportunidade de ouvir as queixas e sintomas de quem o procura e de fazer um questionário completo sobre o sono, estilo de vida, horários, medicação, questões profissionais, familiares e sociais que interfiram com as noites, entre muitas outras questões. Existem consultas de medicina do sono disponíveis em centros hospitalares públicos, privado e clínicas que são dadas por várias especialidades médicas.
Se as dificuldades com o sono como dificuldade em adormecer ou manter-se a dormir, falta de ar durante a noite, ressonar, ter comportamentos estranhos durante a noite, acordar cansado ou sonolento, ter dificuldades de concentração e de memória, sintomas de irritabilidade ou desequilíbrios de horários de sono, existirem e tiverem repercussões no dia a dia, é necessário recorrer a um especialista.
Uma sociedade hiperativa como aquela em que vivemos parece querer manter-nos ativos e despertos o maior número possível de horas diárias. Que estratégias aconselhariam para contrariarmos esta pressão incessante sobre a nossa atenção?
É verdade que a oferta de experiências, atualmente, é maior do que nunca. Veja-se o que se passa ao nível do trabalho, cursos, dispositivos eletrónicos, espetáculos, a lista é infinita. A pressão social para vivermos todas estas experiências faz-nos sacrificar necessidades tão básicas como o sono. Coletivamente, isto exige-nos uma habilidade excecional de fazer escolhas, de ter foco e capacidade de dizer que não, pelo bem da nossa saúde mental e física. O principal conselho passará por manter uma lista de prioridades em que o sono está em primeiro lugar, para vivermos estas mesmas experiências sob a plenitude das nossas capacidades e não nos afogarmos neste infinito mar de escolhas.
Quais são os principais problemas que advém da abstinência continua do sono?
Se pensarmos que, até à data, não se descobriu nenhum órgão ou sistema do corpo que não beneficie de uma boa noite de sono, é fácil fazermos o raciocínio inverso de que privarmo-nos de sono tem o potencial de afetar todos os nossos órgãos e funções.
Existem uma série de consequência físicas decorrentes da privação de sono como o aumento do risco para doenças cardiovasculares, diabetes, um enfraquecimento do sistema imunitário, um aumento da probabilidade de desenvolver obesidade, infertilidade ou até tumores. A privação de sono traz ainda consequências psicológicas e cognitivas como um aumento de comportamentos de risco, alterações do raciocínio, do controlo do humor, dificuldades no planeamento, resolução de problemas e até da criatividade.
As crianças e jovens em Portugal têm um mau sono?
De acordo com dados da Sociedade Portuguesa de Pediatria (2017), sim. Um estudo de Loureiro demonstrou que as crianças portuguesas, em idade pré-escolar, dormem em média 10h06m, sendo o recomendado entre 10 a 13 horas. Noutros países europeus, o tempo total de sono é significativamente superior. Este problema relaciona-se muitas vezes com a hora de deitar tardia das crianças. Isto, por demasiada flexibilidade dos pais, horários do fim do dia das famílias que nem sempre são fáceis de alterar, mas também pela cessação muito precoce da sesta em idade pré-escolar.
O cenário para os adolescentes não é melhor, dado que continuamos a ignorar as suas especificidades biológicas: com a maturação sexual, a produção da hormona da noite, produz-se mais tarde nesta fase da vida, o que faz com que os adolescentes tenham sonolência mais tarde e precisem de prolongar o sono pela manhã. No entanto, os pais e professores continuam a não estar informados sobre esta particularidade e os horários escolares que os obrigam a levantar-se excessivamente cedo, continuam a prejudicar a sua saúde, desenvolvimento e rendimento escolar.
Se pensarmos que, até à data, não se descobriu nenhum órgão ou sistema do corpo que não beneficie de uma boa noite de sono, é fácil fazermos o raciocínio inverso de que privarmo-nos de sono.
Há riscos associados à utilização de fármacos como forma de disciplinar o mau sono? Quais?
O sono não precisa de ser disciplinado: todos nascemos com a capacidade de dormir, podemos é adotar comportamentos facilitadores ou prejudiciais para este processo. Os fármacos são fundamentais para o tratamento de vários distúrbios do sono, mas também é certo que a polimedicação e a publicidade medicamentosa são realidades presentes em Portugal e no mundo. Recorrer a fármacos sem orientação médica ou como forma de mitigar sintomas sem uma pesquisa adequada do problema de sono é tentar tapar uma fratura exposta com um penso rápido e tem consequências como: a tolerância, a dependência (no caso de um mau uso de benzodiazepinas), os acidentes de viação, a confusão e descoordenação motora, a interação com outros medicamentos, entre muitas outras.
Dedicam um dos capítulos do vosso livro às Parassónias. O que são?
Parassónias é um palavrão que só quer dizer “comportamentos ou experiências estranhas durante o sono” e que abrange um conjunto de distúrbios do sono em que as pessoas, tendo partes do cérebro a dormir e outras acordadas se encontram num limbo entre diferentes estados de consciência que lhes permite caminhar durante o sono (como no sonambulismo), comer enquanto dormem (como no distúrbio do comer relacionado com o sono), ou até fazer sexo durante o sono (como na sexossónia). Frequentemente, são doenças com consequências para a saúde, relacionais e físicas, por isso, devem ser tratadas numa consulta do sono.
No capítulo que dedicam aos sonhos referem que sem eles não teríamos a Google, o livro Frankenstein ou a Tabela Periódica. É caso para dizermos que termos plena consciência dos nossos sonhos é positivo…ou será que não?
Esses são alguns exemplos de que não devemos desvalorizar totalmente o conteúdo dos sonhos e de que dormir nos apura a criatividade e a capacidade de resolução de problemas. Por isso, pode ser útil estarmos atentos e termos um diário de sonhos para os escrever ao acordar, por exemplo. No entanto, é importante dizer que uma das principais características dos sonhos é a amnésia (esquecermos tudo ou quase tudo aquilo que aconteceu quando acordamos). Se tivermos um sono contínuo, sem despertares excessivos, não somos capazes de nos recordar do que sonhámos e isso é positivo. Por outro lado, há quem tenha a capacidade de ter essa tal consciência enquanto sonha (sonhos lúcidos), mas isso pode não ser tão positivo por obscurecer as linhas entre o sonho e a realidade, com potenciais implicações negativas para a saúde mental a longo prazo.
O livro desconstrói inúmeros mitos sobre o sono. Não resisto em trazer um desses mitos para esta entrevista: “Não se pode acordar um sonâmbulo”. Querem, por favor, desmistificar ou corroborar?
Esse é um dos nossos mitos preferidos e um dos que mais se tem difundido de geração em geração. Quem nunca ouviu que acordar um sonâmbulo pode provocar gaguez ou até a morte? Na realidade, o mais incrível é que durante o sonambulismo estamos em sono profundo, e por isso, se o acordarmos ele ficará confuso e desorientado (até porque adormeceu num sítio e está a acordar noutro), mas não é perigoso fazê-lo. Podemos é poupá-lo a essa desorientação e, sem acordá-lo, encaminhá-lo para a cama, em segurança.
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