Com o seu projeto “O Mel da Deusa”, Tamar, com percurso académico em Sociologia e Gestão de Recursos Humanos, conseguiu chegar a centenas de mulheres, tocando questões prementes da sexualidade no feminino: os ciclos, o prazer, a autodescoberta, mas também situações de abuso, de violência e de afirmação feminina.
Também no livro "O Mel da Deusa" (editado pela Oficina do Livro), Tamar, a trabalhar há vários anos na área do Desenvolvimento Pessoal e Sexualidade Consciente, aborda sem rodeiros questões que interessam a todas as mulheres e que todas enfrentam ao longo das várias fases da sua vida.
“A Deusa, representa a espiritualidade associada a ídolos e a símbolos femininos, retratando o corpo da mulher e elementos da natureza”, sublinha Tamar à conversa com o SAPO Lifestyle. Para a autora, há que recuar milénios para reencontrarmos a liberdade expressa na “cultura da Deusa”, um tempo em que havia a compreensão que o princípio primordial era a vida, logo a fertilidade: da natureza e da mulher.
“Chamar este contexto primitivo não é querer voltar ao passado, é alargar os conceitos e entender as ramificações que a sexualidade tem, desde sempre, na vida na terra e na vida interior”, diz-nos Tamar.
Quanto à sexualidade consciente aborda a energia sexual holisticamente, isto é, contempla as dimensões física, emocional, mental e energético-espiritual.
Tamar convida as mulheres a sentirem de corpo e alma, a integrarem o prazer em todas as esferas da vida, a viver relacionamentos saudáveis e a lidar harmoniosa e criativamente com a fase em que cada mulher está.
Isto por oposição ao predomínio de “pensamentos e emoções negativas e depreciativas quanto ao sexo e ser mulher, reflexo da cultura machista na esfera pessoal”.
A designação “O Mel da Deusa” nasce de um episódio pessoal vivido em 2011 pela Tamar, embora traga todo um contexto histórico associado. Quer partilhar com os leitores?
Esse episódio resume-se à minha perceção do que é realmente a intuição e de a seguir, o que para mim foi um passo importante, já que no passado encarava este tipo de faculdades humanas com algum ceticismo.
Estava com a minha mãe há umas horas a celebrar o Dia da Mãe e uma voz interior começa a dizer a palavra “Deusa” continuamente. Como no ano anterior já havia tido uma experiência semelhante numa consulta ginecológica - e que também partilho no livro -, fiquei motivada a procurar pistas e a internet pareceu-me a melhor porta de entrada, pois não tinha referências adquiridas. Surge-me um curso de Sagrado Feminino e imediatamente inscrevo-me, embora percebendo que já ia entrar a meio. Ora, o tema desse fim de semana do curso era nada mais nada menos que a Sexualidade Sagrada que assenta numa abordagem energética e não apenas fisiológica, de vivência mais do que desempenho à sexualidade, associando a energia sexual ao poder da criação e, assim, à natureza e às nossas origens, exaltando os benefícios do prazer para a cura de bloqueios e inseguranças, assim como a realização íntima e pessoal.
Entrei no curso com a autoavaliação de que, numa escala de um a dez, a minha capacidade de sentir prazer sexual era oito, saí a ver como era dois. Porque o que lá senti rompeu com os limites que conhecia. Isto completamente vestida e sem qualquer estimulação física dos genitais.
A Sexualidade Sagrada parte do pressuposto de que esta energia era celebrada e ritualizada nos primórdios dos tempos, em que se cultivava a natureza, essencialmente feminina, assim como a mulher, dado partilharem as mesmas qualidades: fertilidade e transformação. A Deusa, representa a espiritualidade associada a ídolos e a símbolos femininos, retratando o corpo da mulher e elementos da natureza. Entrei no curso sem qualquer noção deste aspeto antropológico e histórico, saí a querer saber mais.
Ao acompanhar as mulheres na sua redescoberta sexual, percebi que a carga negativa quanto à imagem e processos do corpo feminino estava mais enraizada do que supunha.
É uso dizer-se que o nosso corpo é um templo. Contudo prefere chamar-lhe o nosso lar. Porquê?
Comecei por usar esta expressão porque foi assim que me foi passada, no sentido de desenvolver mais respeito, mais atenção, mais reconhecimento da inteligência do corpo. Porém, ao acompanhar as mulheres na sua redescoberta sexual, percebi que a carga negativa quanto à imagem e processos do corpo feminino estava mais enraizada do que supunha e começo a escutar testemunhos do género: “eu basto-me sozinha”, “para me terem, têm de ver o sagrado em mim” e uma dedicação exteriorizada a esse corpo-templo, como o deixar de pintar o cabelo, de usar saltos altos e maquilhagem, como se esse fosse o caminho nobre a seguir, da qual não via correspondência no autoconceito quanto ao corpo e ao autovalor enquanto ser feminino.
Como já basta de modelos impostos para as mulheres, substitui pela expressão “lar”, que pressupõe uma relação íntima e viva: enquanto o templo está sempre imaculado e é suposto irmos mostrar a nossa face devota, o lar suja-se, desorganiza-se e acolhe todas as nossas versões.
Para reencontramos uma sexualidade livre de tabus, preconceitos, estereótipos, temos de recuar a que tempo(s) e lugare(s) do percurso da humanidade?
À Pré-História, imagine-se. Esta pergunta é importante porque, quando a História nos fala sobretudo do modelo patriarcal, interiorizamos o “sempre foi assim”, quase como que um destino. Com as primeira e segunda vaga feministas, surgiram profissionais mulheres, nas áreas da arqueologia, mitologia e história que puseram em causa o que havia sido escrito sobre os tempos em que as religiões começaram e quais os fundamentos.
Assim, do Paleolítico Superior ao início do Neolítico, período compreendido entre 25 000 a.C e 4 000 a.C., nas sociedades do Próximo Oriente (Síria, Líbano, Israel, Palestina, Irão e Iraque), do Leste (Balcãs) e Sudeste europeu, junto do mar Mediterrânico (descobriram várias evidências acerca da cosmovisão animista praticada, segundo a qual entidades não humanas, como animais, plantas, objetos inanimados ou fenómenos possuem uma essência espiritual mas baseada essencialmente no culto à mulher, ao feminino e a associação desta à natureza e ao poder de dar a vida.
Naquilo que várias autoras designaram como “a cultura da Deusa” havia a compreensão que o princípio primordial era a vida, logo a fertilidade: da natureza e da mulher. Constatou-se por escavações que muitas estatuetas femininas eram encontradas numa posição central, em oposição aos símbolos masculinos, localizados em posições periféricas ou ladeando as estatuetas femininas e que o ocre vermelho, por exemplo, era usado para sinalizar a presença de sangue menstrual, desenhando-se búzios e conchas em diversos artefactos, como símbolos vulvares e animais associados a transformação, como a serpente ou a símbolos da água, como elemento gerador da vida.
Na 'cultura da Deusa' havia a compreensão que o princípio primordial era a vida, logo a fertilidade: da natureza e da mulher.
A fertilidade propiciava a sobrevivência e o aumento da espécie, essenciais naquele tempo, mas era vista também como uma fonte de poder única e maior: de criação, de profecia e de sabedoria. De geração de abundância e prosperidade, também, o que influenciou a própria organização social. Vivia-se num estado de não-violência e igualitário, com equidade sexual, focado no desenvolvimento artístico, tecnológico e espiritual, sem estratificação social.
Nesse sentido, era impensável reprimir-se a sexualidade. Chamar este contexto primitivo não é querer voltar ao passado, é alargar os conceitos e entender as ramificações que a sexualidade tem, desde sempre, na vida na terra e na vida interior. É encontrar referências positivas e, assim, contribuir para uma construção social positiva e multidimensional, entendendo que as normas e condutas não são estruturais mas conjunturais e que cada pessoa tem a possibilidade, dentro destes limites, de escrever a sua narrativa.
A Tamar não casa a abordagem que faz da sexualidade feminina nos fundamentos da medicina e sexologia tradicional. Ambas são redutoras?
Na multidimensionalidade que caracteriza os seres humanos, são redutoras. No cumprimento do seu papel, são necessárias, embora seja importante reconhecerem os seus vieses, sobretudo no que diz respeito à saúde íntima feminina. A medicina, praticada maioritariamente por homens, não parece sensibilizada para o estudo da anatomia feminina, já que ainda se conhece pouco acerca do clítoris e da sua função, bem como de outros pontos internos de prazer, nem aborda a masturbação feminina do ponto de vista dos seus diversos benefícios, só para mencionar alguns exemplos.
E quanto à ligação indissociável entre mente-emoções-corpo que hoje a ciência já diz existir e em que a medicina e tradições orientais sempre se fundamentaram? A sexologia não toca - literalmente - no corpo.
As ferramentas de sexological bodywork ou trabalho corporal sexual que uso baseiam-se em respiração, movimento e som para libertar do corpo memórias e crenças limitativas, tensões e desequilíbrios físicos que inibem o despertar da libido. Com o corpo assim liberto, o cérebro pode fazer novas sinapses acerca da noção de sexualidade e rever, construtivamente, a narrativa sexual pessoal.
Oponho-me ao modelo meramente binário da sexologia clássica “função-disfunção”. Não acredito, de todo, apenas na conversa terapêutica. A ligação corpo-mente-emoções essa, sim, potencia a redefinição integral da sexualidade para sempre e a cada fase de vida.
Mais do que rejeitar, defendo que as estruturas e os indivíduos mudam-se entre si. Não há qualquer dúvida que estamos a viver um período de “Iluminismo sexual” e a consciência que o autoconhecimento, em geral e a literacia corporal, em particular, fornecem estão a “forçar” a que se encontre respostas holísticas. Isto não é esoterismo, é a compreensão das várias dimensões humanas e da ligação destas ao cosmos ou ao inconsciente coletivo, na linguagem do psicanalista Jung.
Defendo que as estruturas e os indivíduos mudam-se entre si. Não há qualquer dúvida que estamos a viver um período de 'Iluminismo sexual'.
É crítica em relação à definição da Organização Mundial da Saúde para a sexualidade, não obstante a sua abrangência. O que lhe falta?
A maior estrutura mundial de saúde definiu sexualidade como uma energia que influencia não só a nossa intimidade, como pensamentos, sentimentos, ações e interações em todas as esferas da vida e da saúde; que não é só sexual, mas sensual e que nos motiva a procurar contacto e afeto. Vejo aqui o reconhecimento da riqueza e poder desta energia.
Na prática, não vejo o conceito espelhado na abordagem médica. Quando vamos a uma consulta de planeamento familiar, ginecologia ou obstetrícia perguntam-nos acerca da nossa satisfação sexual, quais as dúvidas que temos e as crenças que carregamos? Há cuidado em esclarecer acerca de relações abusivas como há sobre infeções sexualmente transmissíveis? Há discurso positivo acerca do valor de assumir o erotismo e a sensualidade, bem como experiência sexual (o que geralmente implica ter vários parceiros sexuais ao longo da vida ou na fase da adolescência/adulta jovem?
Na verdade, os restantes agentes também pouco contemplam estes fatores. Vejamos a limitação dos curricula educativos, a desvalorização dos impactes estruturais à saúde integral das vítimas de abuso e violação sexuais por parte da justiça, as políticas do Estado centradas na regulação da fertilidade da mulher pouco incentivadoras da soberania pessoal.
Elenca três componentes limitativos da sexualidade feminina. Quer especificá-los e explicar-nos porque mantêm a mulher afastada do prazer?
Na visão energética do corpo, as emoções, os pensamentos e a energia sexual movimentam-se pelos circuitos do corpo (além de veias, temos sete centros de energia principais e centenas de meridianos). Não é só o sangue que nos dá vitalidade, o ânimo também e a energia sexual é influenciada, no fundo, não só pela informação que circula no corpo, como por aquela que ele armazena, sob a forma de memórias cristalizadas e emoções reprimidas.
A componente emocional precisa ser abordada, quer na perspetiva da revisitação da narrativa íntima de cada mulher, como nos sentimentos e crenças que ela mantém ativos relativos à sexualidade. O que se denota em comum são as emoções do medo, da raiva e da culpa/vergonha.
O medo vem muito da educação: o sexo é perigoso (pode engravidar, pode apanhar doença), assustador e sujo (não é adequado à boa mulher; os homens usam, perseguem e abusam das mulheres (abandono e violência). Já adulta, há o efeito comparação com outras mulheres mais soltas e sensuais e desencadeia-se o medo de não ser “boa na cama” o suficiente.
A raiva está associada ao cansaço e a mágoas. Há um paradoxo tremendo nos papéis sociais: querem-nos frias e ambiciosas profissionalmente, cuidadoras e altruístas na família, desdobrando-nos em atenção a todos e, no fim de um dia/semana/mês exaustivo, há a expetativa de sermos ativas sexualmente, quer na sensualidade, no desejo, quer na iniciativa. Isto pode bem gerar um azedume persistente na intimidade e despoletar dinâmicas de castigo e vingança: “aí, lembraste-te finalmente de me fazer uma carícia? Pois, agora não há nada para ninguém”.
Por seu turno, a culpa e a vergonha reprimem o livre fluir da libido de maneiras aparentemente parecidas - vêm do desempenho do papel da “boa menina” e da “mulher que se dá ao respeito”. Porém, são distintas na origem: a culpa diz “fiz algo errado” e a vergonha diz “há algo fundamentalmente errado comigo”. É muito comum ouvir da mulher: “sou frígida” (quando não é), “dou-lhe menos satisfação sexual do que a ex”, “já tive vários parceiros e ele não pode saber” e o que costumo chamar o “desculpe por existir” que é pedir desculpa por nada mais que a descrição das vivências sexuais (nos quais o papel da mulher é até bem condicionado ou dentro da norma).
Ao invés da exaltação do prazer e da ligação humana, predominam pensamentos e emoções negativas e depreciativas quanto ao sexo e ser mulher, reflexo da cultura machista na esfera pessoal. Assim, não só afasta a mulher do prazer, como esta informação é a causa emocional de IST’s, da dissociação do corpo e da dessensibilização genital, da ausência de libido, da repulsa pelo ato sexual a solo ou a dois, assim como dos genitais, da falta de iniciativa sexual, do querer agradar excessivo, entre outros comportamentos.
No seu livro afirma que ainda prepondera uma memória coletiva entre as mulheres que associa a atividade sexual a um ato violento. Pode pormenorizar?
A história sexual feminina é triste e profundamente desigual. Houve um silenciamento ou normalização quanto às violações sexuais, a submissão do corpo às necessidades maritais, as traições e infidelidades, os abortos não desejados, a proibição de amores, a desvalorização dos tempos naturais de resposta sexual feminina, a recusa em ter relações protegidas e, assim, propagar IST´s. Escutámos das nossas avós, vimos em filmes e a verdade é que são fenómenos que persistem em números elevados.
Daí ser recorrente a mulher ser assolada, esporádica ou frequentemente, pelas tais emoções limitativas mesmo quando a sua narrativa pessoal até foi razoavelmente positiva.
O que é uma Sexualidade Consciente?
A sexualidade consciente aborda a energia sexual holisticamente, isto é, contempla as dimensões física, emocional, mental e energético-espiritual. Fundamenta-se na reeducação sexual positiva e no potencial de cura e de expansão da energia sexual, seja para uma questão pessoal (íntima ou não), de relacionamento ou de expressão no mundo.
Costumam perguntar-me como eu vejo o sexo casual, a infidelidade, o sexo anal, as fantasias sexuais com pessoas do mesmo género e outros temas mais tabu dentro da sexualidade, como se a Sexualidade Consciente apenas valorizasse um modelo de conduta correto e eficaz e, assim, pudéssemos todos praticar a impecabilidade.
Isso está fora de questão. Consciência na sexualidade é não partir de pressupostos binários, como certo-errado, bom-mau, nem de desempenho, isto é, não é o que se faz mas como e para que se faz, o significado que se atribui. Algo que só cada pessoa pode definir. É praticar a atenção ao que se sente, seja sensações ou sentimentos, e como isso impacta os nossos pensamentos; é aprender a usar criativamente a energia sexual, além da relação sexual a dois; é transformar aspetos sombrios e condicionados do nosso ser em aspetos generativos e, aí, desenvolver a auto-cura; é desenvolver a inteligência erótica: não fazemos sexo a toda a hora mas podemos e devemos estar ligados ao que nos anima, preenche, faz imaginar, traz leveza, inspiração, atração e vontade de relacionar.
Apresenta-nos essa Sexualidade Consciente como um poder que é dado à mulher. Pode esmiuçar-nos a que poder se refere?
Desenvolver a consciência na sexualidade feminina rompe com o tal paradigma negativo, repressivo e depreciativo em que as mulheres foram educadas. Se eu não sou tudo isto que me disseram, se eu posso fazer o que os meus valores ditarem, se é natural eu atravessar mudanças e não ser linear, quem sou eu? Esta é uma pergunta importantíssima, não apenas para a consciência do eu e o desenvolvimento da espiritualidade, mas devido ao potencial criador que tem.
Numa primeira fase, parece uma libertação (da carga pesada dos condicionalismos). Mas isso é o processo de desconstrução e, sem dúvida, o mais doloroso e o que exige mais coragem no caminho do desenvolvimento pessoal. O que se segue é o acesso direto às qualidades do hemisfério direito do cérebro (o feminino), como gerir emoções, ser criativa, ligar-se ao subconsciente (onde reside a maioria das causas das nossas perceções e comportamentos) e à vitalidade do corpo, através da capacidade multi-orgásmica, da perceção da maior força natural da cintura para baixo (comparada com a dos homens).
Acumulo já tantos testemunhos do quanto a ligação ao corpo e a reeducação sexual melhoraram a autoestima e a autoconfiança, ajudaram a ultrapassar a inibição de expressar a própria voz (na intimidade ou na vida), a acreditar na capacidade de parir naturalmente, a defender os direitos quanto às escolhas para o próprio corpo, a denunciar e pacificar-se com situações de abuso. Mais do que libertação, é um mundo de mulheres empoderadas que está a ser criado, não só pelas habilidades intelectuais que adquirem, mas sobretudo pela apreciação do prazer e pelas habilidades emocionais que usam.
A primeira parte do seu livro prende-se com a literacia corporal feminina. A mulher desconhece o seu território, o corpo?
Desconhece e o que conhece está aquém. “Foi preciso chegar aos 45 para começar a masturbar-me” “Acreditas que só aos 37 percebi como era importante olhar para a minha vulva com um espelho”? “Só aos 30 comprei um artigo sexual” são alguns dos testemunhos que escuto frequentemente.
O mais bonito é que o dizem com um tom de incredulidade e um brilho no olhar, como se um “click” se tivesse dado. E na verdade, dá-se: de algo tão intangível, escondido ou deturpado, a algo natural, benéfico e forte.
Assim vamos construindo uma cultura assente na autodescoberta, soberania do corpo e prazer. Porque na maioria dos meios, fala-se de vagina quando se está a referir a vulva, porque se passa a mensagem de que a sexualidade feminina só tem valor para questões de fertilidade e, logo, não tem problema fazer histerectomias a mulheres a partir dos 40, já com filhos, que é mais seguro fazer cesariana (uma intervenção cirúrgica) do que um parto natural, que por se ser mulher tem-se naturalmente uma hipossexualidade, que a contraceção hormonal é a única que existe ou a mais segura e não aprofundar as suas contraindicações tão estudados já para a falta de libido. Atenção: não estou a dizer que são sempre prejudiciais, porque o que quero é destacar que cada situação clínica merece informação esclarecida e sem viés de género.
Na maioria dos meios, fala-se de vagina quando se está a referir a vulva, porque se passa a mensagem de que a sexualidade feminina só tem valor para questões de fertilidade.
Compreender o seu corpo é o caminho para o estabelecimento de uma verdadeira relação íntima?
Se olhar para a vulva com um espelho pode ser mais desafiante do que subir o Evereste, a verdade é que muitas mulheres também sentem um grande incómodo a olhar para o seu corpo nu e a aceitar as suas formas e proporções. Obviamente que vão evitar os olhares da outra pessoa na intimidade.
Mas é mais do que isto. Quando se diz “ficar nua” não se está somente a falar do corpo físico, está-se a falar da vulnerabilidade emocional, da comunicação íntima a dois, de mostrar a sua verdade. Só é possível sermos amadas pelo que somos, não pelas máscaras que pomos. E é aceitarmo-nos nas várias fases: mensais e de vida. O padrão hormonal feminino é ondular e cíclico. No livro, refiro uma expressão usada nos meios do Sagrado Feminino e do ciclo menstrual consciente: “não somos loucas, somos cíclicas”. A partir da perceção das influências predominantes diversas, mas complementares no corpo, emoções e mente fica mais fácil aceitar a nossa riqueza interior e, logo, valorizar-nos e sermos valorizadas.
No contexto da perguntas anterio é importante associar o autoconhecimento à ciclicidade feminina?
É uma mais-valia, senão uma necessidade. É que os modelos externos de desenvolvimento pessoal e de espiritualidade foram concebidos sobretudo por homens. Estão incompletos na medida em que se focam em qualidades como o raciocínio e cognição, os objetivos e metas, a disciplina e foco numa perspetiva linear: ir da letra a à letra z, direitinhas se seguirmos os passos indicados.
É a maneira masculina de agir (em homens e mulheres) e é natural que haja frustração por não se alcançar os resultados supostos porque os modelos não contemplam outras competências e técnicas, ditas femininas, como lidar com a sombra/subconsciente, a intuição, a criatividade e a imaginação, usar as emoções e a complexidade.
De resto, a própria sociedade opera na visão masculina, o que reforça o senso de inadequação ou inferioridade das mulheres. Fisiologicamente e culturalmente, a mulher é levada a operar nas duas vertentes e é duplamente penalizada: por não ser exímia nas competências masculinas e por ser instável nas suas competências femininas.
A ciclicidade feminina é um mundo novo em si: vem educar a mulher para a sua perceção de ciclo menstrual e, por esta via, capacitar à tomada de decisão esclarecida quanto ao método contracetivo a usar. Ainda se fala pouco do método natural de fertilidade e, logo, há medo associado. Porém, com o gradual registo dos padrões mensais de ciclo, a mulher adquire a confiança e a prova de fiabilidade deste método, idêntico ou superior à da pílula, se usados corretamente.
A própria sociedade opera na visão masculina, o que reforça o senso de inadequação ou inferioridade das mulheres.
Por outro lado, desperta para as variações de desempenho nas tais competências masculinas e femininas que já referi e normaliza essa transformação. A partir daí, aceitamo-nos melhor quando parece que não estamos a ser nós, defendemo-nos da sobreposição excessiva de compromissos quando o corpo “pede” mais recolhimento e percebemos os inúmeros benefícios que traz agirmos em fluidez com a nossa energia interna.
Claro que nem sempre se pode seguir e nem é esse o propósito. Pretende-se perceber e registar as nossas respostas para, quando possível, compensar, para aprofundarmos o conhecimento de comportamentos-padrão e, assim, desenvolver a autoaceitação ou a capacidade de predizer os impactes no futuro e fazer correções a priori.
A prática de atenção consiste em observar e registar os indicadores de ciclo mensais, no que respeita ao corpo físico (apetite e cravings, libido, muco cervical, vitalidade); corpo emocional (confiança, vontade de socializar e estar intimamente, variedade de emoções e sentimentos); corpo intelectual (concentração, memória, cálculos, ideias criativas) e corpo energético/espiritual (intuição, sincronicidades, sonhos).
Existem quatro fases distintas no sistema hormonal feminino ao longo do mês, as quais desencadeiam padrões específicos que não são permanentes, mas são regulares, a cada mês, na relação connosco mesmas e nas interações no mundo. Na visão da medicina energética, essas fases espelham-se ou são correspondentes com as fases da lua e as estações do ano, o que faz com que o alinhamento que se alcança não seja apenas interior, mas com os ciclos da natureza e da vida - a linguagem do feminino.
Ao fim de três a seis meses de registo diário ou semanal, evidenciam-se padrões típicos de cada fase, uns transversais a muitas mulheres, outros característicos de cada uma. Seja como for, este conhecimento potencia a autorregulação e a capacidade de lidar com as relações pessoais e a nossa ação no mundo, de forma autêntica e alinhada. E isso só traz benefícios para a satisfação pessoal e bem-estar.
A intimidade entre duas pessoas baseia-se na partilha de facetas privadas, de forma verbal ou não verbal, que gera aceitação.
No seu livro leva-nos a “uma aula expresso” sobre sexo e inspira-a nas questões que as mulheres lhe levam em contexto terapêutico. Pode indicar-nos algumas dessas questões e como temos uma visão distorcida sobre elas?
É frequente a mulher chegar a mim já com o pressuposto que é anorgásmica, por exemplo. Quando pergunto o que a levou a esse diagnóstico, a resposta comum é porque não atingem o orgasmo no sexo penetrativo genital, com o parceiro.
Pergunto-lhes se têm orgasmo com os estímulos orais e manuais do parceiro, na masturbação manual e/ou com recurso a artigos sexuais e, na maioria destes casos, têm (numa vertente ou em todas).
A “aula expresso” que aqui se aplica é a de que “sexo não é só penetração”. A mulher estender a falta de orgasmo a toda a sua sexualidade quando, de facto, apenas na penetração genital isso acontece, sendo ela ativa nas outras variantes sexuais e experimentando o clímax, revela o excesso de foco a essa variante e o quanto a cultura patriarcal fomentou essa visão.
Outra aula, numa versão dois em um: “intimidade não é só física e a intimidade física não é só sexo.”
Ainda se usa a expressão “ficámos íntimos” quando se quer dizer que houve sexo em parceria. Num primeiro olhar, pode parecer preciosismo linguístico querer distinguir o que realmente é ser íntimo mas, quando se percebe, como eu, nas partilhas de casais, o quanto a componente da intimidade, que faz parte da sexualidade, está empobrecida e as consequências que essa limitação provoca, não se pode deixar passar.
A intimidade entre duas pessoas baseia-se na partilha de facetas privadas, de forma verbal ou não verbal, que gera aceitação, entendimento e reforço da ligação criada.
Uma conversa sobre a infância, medos e sonhos dá-nos a conhecer ao outro, tal como carícias na perna permite-nos conhecer o outro e comunicar interesse e atenção. Quando um casal está a atravessar dificuldades sexuais - o tal sexo penetrativo - não percebe como também tem dificuldades na restante intimidade física, como o toque físico e a proximidade corporal, estarem juntos no mesmo espaço físico a darem atenção um ao outro, a conversarem acerca do que sentem e não só do que fazem no dia-a-dia, a apreciarem-se e a ajudarem-se mutuamente. darem prioridade a programas a dois e a dar presentes baseados em gostos pessoais.
A intimidade e o erotismo são as bases para o desejo sexual feminino e, por isso, merecem atenção e prática diárias.
Sobre os homens também pendem estereótipos associados e um modelo de imagem e competências sexuais. Não serão também eles limitativas da plenitude sexual no masculino?
Absolutamente. As deturpações na sexualidade masculina centram-se no desempenho. A sociedade diz ao homem que, para ser másculo, tem de evidenciar uma hipersexualidade, controlo mental, agressividade, competição e força física, contrária à livre expressão emocional, à dúvida, à necessidade de estar consigo mesmo, a reconhecer o quanto precisa de amor. Uma máquina, portanto.
A ansiedade de desempenho, que muitas vezes resulta na ejaculação precoce ou tardia, vem do medo de ser rejeitado pela parceira enquanto homem válido. Ou simplesmente de ter de corresponder a este papel social que ele mesmo está a perceber que não é benéfico. Tenho participado em algumas formações de preconceção com o tema da intimidade porque estão a aumentar (ou simplesmente a ser revelados pelos casais) os casos em que, na janela fértil (os dias/horas ideais para conceber) o homem não tem ou não consegue manter a ereção. Da parte deles, afloram sentimentos como “mal-estar por estar a ser usado”, “necessidade de afeto, além da mecânica no ato sexual”, “expetativas e responsabilidades todas sobre si”.
Costumo dizer que, embora me centre na sexualidade feminina, não deixo a masculina de fora porque uma mulher consciente das dinâmicas autênticas da intimidade vai levar isto para a sua relação, pode ser a inspiração e o voto de confiança que o homem precisa para ir ao seu lado humano mais soft, o feminino e, deste modo, completar-se.
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