António Lopes dos Santos tem 53 anos, fez um transplante de rim e, quando foi entrevistado pela revista, esperava por outra intervenção. Apesar das adversidades, faz desporto, foi a primeira pessoa no mundo com insuficiência renal a praticar mergulho e não baixa os braços face à doença. «A esperança e a gratidão de viver superam tudo», afiança o funcionário de um posto de combustível em declarações emotivas que pretendem ser motivadoras.

«Nasci e fui criado na zona de Campo de Ourique, Lisboa, onde ainda hoje vivo. Passei uma infância feliz, cresci na rua e nunca tive grandes problemas de saúde além das habituais constipações. Até que, por volta dos sete ou oito anos, reparei que a minha urina trazia vestígios de sangue», começa por contar. «Na altura, foi-me diagnosticado uma infeção urinária», prossegue.

«Supunha-se que estava contaminado com a bactéria Escherichia coli, mais conhecida por colibacilo. Fui medicado, os sintomas desapareceram e ninguém desconfiou que poderia ser outro tipo de problema. Estávamos no início da década de 1970 e a vida foi acontecendo normalmente ainda que sofresse muito com problemas de garganta», conta ainda António Lopes dos Santos.

«As minhas amígdalas incomodavam e, um pouco sem grande razão, os meus dentes foram perdendo vitalidade», recorda. Na altura, confessa que nem sempre soube o que pensar. «Hoje, olho para trás e sinto que tudo estaria ligado», desabafou António Lopes dos Santos em entrevista à Prevenir em novembro de 2016.

As más notícias

Era já adulto quando chegaram as más notícias. «Um dia, inesperadamente, tinha eu 25 anos, num normal dia de trabalho, tive uma forte e teimosa hemorragia no nariz. O sangue pingava como se de uma torneira aberta saísse, mas lá ía aguentando. Esperei até ao final do dia e só nessa altura fui ao serviço de urgência», revela.

Quando lhe mediram a tensão arterial, o espanto foi geral. «Tinha 28/18 e estava vivo. Depois de verificado o bom funcionamento do aparelho e dos valores, conduziram-me para o médico de família. Lá marquei a consulta e passaram-me uma bateria de exames», conta ainda António Lopes dos Santos.

«No dia em que fui levantar os resultados, o médico da clínica chamou-me à parte e esteve a auscultar-me imenso tempo. Algo não estava, definitivamente, normal. Passaram-me mais exames com a máxima urgência e fui ao Hospital dos Capuchos. Num ápice, fui transferido para o Curry Cabral. As notícias más surgiram pouco depois», diz.

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Ter de depender de uma máquina para viver

A origem do problema estava finalmente identificada. «No Hospital Curry Cabral, fui informado que os meus rins tinham deixado de funcionar e a minha vida dependia de uma máquina. Ouvi o relatório e estava incrédulo», confidencia hoje António Lopes dos Santos. A hemodiálise era, inevitavelmente, o próximo passo.

«O doutor Paulo Moreira, nefrologista, ainda hoje o meu médico, revelou o que me esperava, os desafios e dificuldades mas também a esperança de poder ser transplantado. Sabia que se fosse transplantado com sucesso poderia ter uma vida normal e com o meu habitual sentido da realidade das situações a servir de âncora agarrei-me a essa esperança com todas as minhas forças», diz.

A (longa) espera por um rim compatível

A partir daí, o tempo foi passando. «O processo, desde que entrei no médico com as hemorragias até saber o dia do transplante, durou cerca de três anos e meio. Vivi esse período com a máxima tranquilidade possível, com a ideia de conseguir um órgão compatível. Nunca deixei de trabalhar enquanto fazia a hemodiálise», relata.

«Mas, para isso, muito contribuiu o meu patrão à época, que sempre me facilitou os horários», agradece. «Habituei-me a fazer o tratamento ao final da tarde, por volta das 17 horas. Assim, conseguia chegar a casa para jantar, descansar e no outro dia acordo como novo», conta António Lopes dos Santos.

«Em tempos, tentei fazer hemodiálise de manhã e passava o resto do dia sem força e isso não é para mim», assegura o funcionário de um posto de combustível, um apaixonado pelo trabalho que desenvolve. «Quem se levanta às seis da manhã para trabalhar, tem de sentir-se sempre em forma», garante.

O transplante e a recuperação

Ainda não tinha 30 anos quando teve de se despedir de um dos órgãos internos. «No dia em que fui fazer o transplante, estava consciente daquilo que me esperava», desabafa. «Tinha 28 anos, era um jovem. Enquanto aguardava que me chamassem, fumei um cigarro», confessa António Lopes dos Santos.

Nessa altura, passou por ele o médico Marques da Costa, um dos responsáveis pelo transplante. «António, vens fazer um transplante e estás a fumar?», perguntou-lhe em tom de brincadeira. Sorriu e, malandro, devolveu-lhe a pergunta. «Mas, senhor doutor, venho transplantar um rim ou um pulmão?», retorquiu. «Rimos os dois e dessa cumplicidade nasceu uma decisão irreversível», diz.

Nunca mais tocaria no tabaco! «A operação correu bem e fui o 12.º doente a ser transplantado no Curry Cabral. Um dos membros da equipa era o doutor Eduardo Barroso.  A recuperação correu bem e, depois de um mês de baixa, pedi à médica para ir trabalhar. Sentia-me bem. A minha única preocupação era cumprir os exames periódicos recomendados e viver», conta.

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Um novo percalço na vida de António Lopes dos Santos

O passar dos dias (de)corria tranquilo. «Nunca tive problemas com o transplante e sentia-me saudável. Corria e ia à piscina diariamente. Os médicos diziam que a esperança média de vida de um rim transplantado é de 10 a 12 anos. Eu já contava 28 e estava tudo controlado, apesar de o rim estar já um pouco debilitado. Sentia-me um privilegiado», assume.

Mas um novo percalço veio de novo afetar a vida de António Lopes dos Santos. «Fui traído por salmonelas de uns ovos que comi. De um dia para o outro, emagreci cinco quilos. A minha vida ficou por um fio. Nem sei como cheguei ao hospital. Parecia um cadáver. Fiquei uma semana internado, a soro», relata.

«Depois, os níveis de creatinina do rim dispararam, as pernas começaram a inchar... Como consequência, o rim transplantado desidratou, deixou de funcionar devidamente e de fazer a filtragem. De repente, voltei a fazer hemodiálise e estou à espera de um novo transplante. Mas a vida não acaba aqui e nunca me vou entregar à doença», assegura.

«Sinto-me melhor e quero desfrutar ao máximo a companhia da minha mulher, do meu filho e dos netos e fazer o que gosto. Entretanto, já tenho autorização médica para voltar a fazer desporto e estou com muitas saudades de voltar a correr e a nadar e, claro, mergulhar», afirma António Lopes dos Santos.

O primeiro do mundo a fazer mergulho após um transplante de rim

O oceano inebria-o. «Sempre senti uma ligação forte ao mar», confidencia o funcionário de um posto de combustível. «Essa paixão foi ficando e, em 2004, decidi fazer o curso de mergulho. O meu batismo foi no Cabo Raso e desde aí cresceu dentro de mim um apelo e paz únicos. Respirar debaixo de água e ver e sentir a fauna e flora marinhas é uma sensação indescritível», diz.

Depois de ter sido esmaltador de ourives, motorista e operador de armazém, António Lopes dos Santos ficou desempregado. Hoje, graças à Operação de Emprego para Pessoas com Deficiência (OED), tem um novo emprego. «A vida tem altos e baixos. Achava que tinha uma saúde de ferro e tornei-me um insuficiente renal. Mantinha uma situação laboral tranquila e fiquei desempregado», lamenta-se.

«São autênticos murros no estômago que nos deitam abaixo mas que aos quais temos de saber reagir. Felizmente, pelo caminho encontrei sempre pessoas boas, que me ajudaram. Se na saúde sempre fui bem auxiliado, nas instituições que frequentei, consegui voltar a ter um emprego», afirma o homem de 53 anos.

«Graças à OED, um serviço que tem como missão inserir pessoas com deficiência no mercado de trabalho, que sempre acreditou e lutou por mim», prossegue, agradecido. «Devido a esse empenho, hoje tenho um trabalho que gosto, numa empresa que respeita e compreende os meus problemas e limitações», acrescenta ainda António Lopes dos Santos.

Texto: Carlos Eugénio Augusto com Artur (fotografia)