As palavras cativam-nos, causam-nos desconforto, embirrações, afetos e obsessões. Outras não nos dizem nada. Sobre as palavras, muitas, debruçou-se durante um ano o humorista, ator e autor Eduardo Madeira. O homem que nasceu em Bissau na década de 1970, quis prestar homenagem às palavras. E fê-lo no seu “O Infame Dicionário Cómico de Língua Portuguesa” (edição Contraponto) na senda de autores como José Vilhena, pai do “Dicionário Cómico”, dos anos de 1960.
Em 2020, Eduardo encontrou definição para 1500 palavras do nosso português. Todas com uma dose generosa de humor. Em entrevista ao autor, visitamos algumas destas palavras. Algumas deram lutas na procura da definição: “só os poetas sabem mexer nisso como dever ser”, diz-nos Eduardo, que conta com cinco livros publicados. Uma conversa onde não faltam embirrações e a definição para uma palavra que, pelas piores razões, entrou no nosso léxico diário: COVID-19. Mas também há esperança, com projetos futuros: “estou a escrever um programa especial de fim-de-ano e ainda a desenvolver um grande projeto”, conta-nos o homem que um dia correu nu em plena praça do Marquês de Pombal: “Apostas parvas. Pela boca morre o peixe”.
Eduardo, os dicionários são um lugar aborrecido para as palavras morarem, por isso quis juntar-lhes a sua versão cómica?
Não creio que os dicionários sejam aborrecidos. Eu sempre gostei deles. Antes do advento da ‘shodona’ Internet, quando era garoto, usava-os muito. Para aprender e para o disparate. Procurava palavras parvas, vernáculo, bizarrias. Hoje há a net. Mas os dicionários continuam a fazer sentido. O meu dicionário é uma homenagem de um comediante. Só isso.
Porque é que antes de o dizer cómico, chama “infame” ao seu dicionário? Nos dicionários, a palavra “infame” é algo “desavergonhado”. Nesse sentido, temos boas surpresas neste seu dicionário?
Sim, é verdadeiramente algo de Infame. A falta de vergonha impera. E há surpresas. Um livro, em democracia, não é passível de censuras. O que autor para lá mete é o que depois se lê. Por isso, só lendo o que para ali vai. Um despautério, uma pouca vergonha.
Gostava de entregar um exemplar deste seu dicionário ao José Vilhena, autor do “Dicionário Cómico”?
Muito. É o pai espiritual deste trabalho. Li o Dicionário dele com uns 14 anitos. Que bomba que aquilo foi. Humor telegráfico, assertivo, popular. Do melhor. Se ele lesse seria muito bom. Até porque iria tecer um comentário sobre o meu. E essa consideração, boa ou má, ia valer a pena.
Entre o dicionário do Vilhena e o seu volveram algumas décadas. Muito mudou na sociedade portuguesa. De que forma refletiu estas alterações no seu livro?
Enfim, o meu fala sobre coisas e questões que no tempo do Vilhena ainda não existiam. Mas há terrenos comuns. Tive de estar muito tempo sem ver o do Vilhena e outros - o do Ambrose Bierce [“O Dicionário do Diabo”/1906], o do Flaubert [“Dicionário das Ideias Feitas”/1913] -, para não me deixar influenciar. Creio que consegui.
Eduardo, presumo que numa nova edição do dicionário possa incluir uma nova entrada, COVID-19. Quer antecipar-nos o que poderemos ler?
O vírus que colocou a nu a essência da humanidade do início do século XXI: redes sociais, clivagens e papel higiénico.
Na abertura do seu dicionário parafraseia Einstein: “o único lugar onde o sucesso vem antes do trabalho é no dicionário”. Quer contar-nos como decorreu o trabalho para termos em mãos o presente livro?
Um ano a escrever. Três mil entradas que acabaram em 1500. Olhos raiados de sangue. O cabelo e barba de um Rasputine. Escrever é doloroso. De deixar chagas mesmo. É por isso que há mais jovens no Tik Tok do que nos workshops de escrita. Muito duro para os tempos que correm.
Ainda a propósito de palavras maçadoras. É fácil partir de uma palavra aborrecida e dar-lhe um sentido Cómico?
É o nosso trabalho. Os humoristas fazem isso. Alguns esquecem-se, mas normalmente a ideia da nossa profissão é ter piada. Encontrá-la. Mostrá-la.
Que palavra lhe deu mais luta para lhe encontrar uma definição?
Amor. Mesmo assim acho que ficou péssimo. Só os poetas sabem mexer nisso como deve ser. Um humorista, um médico, um mecânico normalmente só mexem para estragar. Mas é tão importante que não queria deixar de fora.
Há alguma palavra que tenha entrado na nossa rotina com a qual embirre particularmente?
Distanciamento. Que palavra tão calhorda e tão usada ultimamente. O homem é um ser eminentemente social e evoluiu por causa disso. Onde tinha chegado a humanidade com distanciamento? Os barcos Portugueses que chegaram à Índia nem a Cacilhas chegavam.
Qual seria a primeira pessoa em Portugal a quem aconselharia a leitura do seu dicionário?
Malta sisuda e que se leva a sério. Os Sousa Tavares deste Mundo. E ele há tantos.
Imagine que o dicionário venha a ter uma versão em língua inglesa. A quem ofereceria, nesse caso, o seu livro e que palavra lhe dedicava?
Tom Waits. Génio.
Extrapolando o dicionário: Eduardo, os tempos que correm não são fáceis para os atores. Quer deixar uma mensagem aos colegas de classe profissional e também ao público?
Os atores querem trabalhar. E precisam que isso aconteça. Em segurança, mas que aconteça. E ao público que continue a ir aos espetáculos. Há muitas pessoas que vão, respeitando as regras, e gostam muito. Há outros que não vão por receio. Tem de haver condições para que esses percam o medo. A cultura não pode parar.
Eduardo, um homem com obra nos livros, nos palcos, no cinema, na música e, presumo, dos poucos que correu nu no Marquês de Pombal não estará certamente parado profissionalmente. No que está envolvido e em preparação?
Estou a fazer espetáculos que felizmente têm esgotado. O “Eduardo Madeira Convida”. Estou a escrever um programa especial de fim-de-ano e ainda a desenvolver um grande projeto. Uma série. Mas isso depois logo falamos.
Finalmente, em que contexto se corre nu no Marquês de Pombal?
Apostas parvas. Apostei que se Portugal fosse campeão europeu corria nu à volta do Marquês. A probabilidade era pequena. Mas vencemos. Pela boca morre o peixe. E eu fui um autêntico atum.
Entrevista concedida por escrito.
Imagens disponibilizadas por editora Contraponto.
Comentários