“O amor…é complicado”. A frase, não obstante a formulação simples parece encerrar todo o mistério do universo. O amor já foi comparado a tudo, tangível ou não palpável; a um labirinto, ao mar, ao ódio, à alegria, ao luto, à esperança. O amor enche fiadas de livros em bibliotecas e livrarias, inspira as artes, espicaça a ciência. Em quase todas as situações queremos perceber o que é o amor. Talvez, conhecendo-lhe os meandros o possamos domar.

A partir do seu ponto de vista de antropóloga evolucionista, a inglesa Anna Machin desenredou a meada do amor no livro Amamos, porquê? A ciência por trás dos nossos afetos (Bertrand Editora). A obra traz um objetivo: “expandir a nossa compreensão e revigorar o nosso espanto perante as complexidades do coração humano. A autora mergulha nas diferentes formas de afetos a partir de dados da biologia, da química, da neurociência, da psicologia e da sociologia”, tal como lemos na apresentação da edição portuguesa da obra.

Mote para uma conversa com a antropóloga a trabalhar no departamento de Psicologia Experimental da Universidade de Oxford. Anna Machin tem-se dedicado à investigação das ciências por trás das nossas relações mais próximas. Indo muito além do estudo sobre o amor romântico (que tem enformado a visão ocidental do amor), a autora investiga também a amizade, a família, as relações poliamorosas, o amor gay, o amor que sentimos por animais de estimação, por celebridades e divindades.

Anna Machin também analisa as consequências mais sombrias do amor, com a sua natureza viciante que nos pode levar a sermos manipulados e até vítimas de violência.

A expressão “porque amamos?” devolve-nos 35 milhões de resultados numa pesquisa na internet. O amor multiplica-se por inúmeras áreas e manifestações humanas. Isso explica o porquê de no seu livro encontramos, como refere, uma “abordagem expansionista” ao amor?

Não me surpreende o número de resultados apresentado. “Porque amamos?” é uma pergunta difícil de responder, pois existem muitos fatores que afetam a maneira como alguém vive a experiência do amor. É devido a este facto que adoto uma “abordagem expansionista”, como refiro, pois tentar reduzir a causa a um ou dois fatores não é possível e presta um péssimo serviço ao fenómeno do amor. Acho que parte da grandeza do amor está precisamente na sua complexidade. Impregna cada fibra de nosso ser biológico e cada aspeto de nossa vida cultural.

A multiplicidade do amor desafia uma definição precisa?

Sem dúvida. Não existe uma resposta única para a pergunta o que é o amor? É por isso que o meu livro tem dez capítulos, cada um dos quais fornece uma resposta robusta, mas não completa, para a pergunta. Juntos, eles dão uma ideia desta complexidade. E mesmo essas dez respostas não nos trazem a história completa. Continua a existir um aspeto extremamente pessoal ou subjetivo que talvez nunca possamos entender.

“Muito cuidado com a frase, ‘luta pelos teus ideais e sonhos porque vais conseguir’” – Psicóloga Silvia Álava
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No Ocidente estamos muito apegados à imagem do amor romântico. O olhar de uma antropologista evolucionária é importante para dissecar esta visão romantizada do amor?

Sim, porque o que nos distingue como espécie é que podemos encontrar o amor junto de inúmeras pessoas e de outros seres. Reduzi-lo somente ao amor romântico exclui muito do que é a nossa experiência de relacionamento. Por outro lado, sugere uma hierarquia de amor, com o amor romântico a assumir a posição de topo quando, na verdade, não há hierarquia. Todo o amor traz os mesmos benefícios de saúde e bem-estar e contribui igualmente para a nossa sobrevivência. Além disso, o privilégio do amor romântico é um fenómeno muito ocidental. Há muitas pessoas no mundo a não compartilharem dessa visão.

“Ninguém é incapaz de amar, mas algumas pessoas precisam de ajuda para encontrar o amor” – Antropóloga evolutiva Anna Machin
“Ninguém é incapaz de amar, mas algumas pessoas precisam de ajuda para encontrar o amor” – Antropóloga evolutiva Anna Machin créditos: Gaelle Marcel/Unsplash

Ainda sobre o amor romântico: ao ser-nos apresentado como o objetivo da vida, não corremos o risco de considerar que ao “falharmos” nesse amor, falhamos em tudo?

Com certeza, é por isso que procuro reescrever a ideia de hierarquia do amor. Isto, para simplificar e garantir que todos entendam que o amor é importante, o tipo não importa. Pode ser o amor expresso junto dos amigos, da família, da comunidade, de Deus, do animal de estimação, onde quer que encontre esse amor. E essa é outra razão que me levou a escrever o livro. Como antropóloga, estaria a falhar no meu trabalho ao não cobrir todo o amor. No passado, a maioria dos livros concentrava-se apenas no amor romântico. Quero que as pessoas se envolvam novamente com todo o amor que encontram nas suas vidas.

O privilégio do amor romântico é um fenómeno muito ocidental. Há muitas pessoas no mundo a não compartilharem dessa visão.

Na introdução do seu livro refere que “somos todos especialistas em amor”. Qual o alcance destas suas palavras?

Achamos que apenas os cientistas são especialistas porque estudam e empreendem experiências, mas há muito a aprender conversando com as pessoas sobre os seus relacionamentos. Todos nós experienciámos o amor num determinado momento, tenha corrido bem ou não, e essa é uma experiência valiosa a adicionar à conversa sobre o amor humano. A experiência vivida é tão crucial quanto as experiências científicas.

Se o amor nos é intrínseco, por que razão há pessoas que se dizem incapazes de amar?

Como algumas pessoas lutam contra o amor, é em parte por essa razão que o estudamos para ajudá-las a ter relacionamentos saudáveis. A que se devem algumas destas lutas e como se desenvolvem as experiências individuais de amor estão entre os meus principais interesses como cientista. Questões que podem ser causadas, em parte, por fatores genéticos e pela experiência de vida. Todos somos capazes de amar, mas algumas pessoas precisam de ajuda e intervenção para ajudá-las a encontrar o amor. E muitos também sentem que falham porque não alcançam o amor romântico, mas, como deixo claro, qualquer amor é bom.

“Ninguém é incapaz de amar, mas algumas pessoas precisam de ajuda para encontrar o amor”
“Ninguém é incapaz de amar, mas algumas pessoas precisam de ajuda para encontrar o amor” créditos: Dan Asaki/Unsplash

O que nos leva a deixar de amar?

Geralmente, podemos deixar de amar alguém porque há algo nessa pessoa que nos incomoda, nos irrita ou porque nos trai. Por essa razão, começamos a afastar-nos do outro. Os neuroquímicos que nos unem, e são gerados pelo contacto regular, começam a decrescer, o que significa que sentimos menos apego. Em última análise, esses neuroquímicos desaparecem completamente. Juntamente com essa perda fisiológica, há uma ‘debandada’ psicológica. Pensamos na nossa identidade sem o nosso/a parceiro/a, embora esse processo possa levar muito mais tempo.

No seu nível mais básico “o amor é um suborno biológico”, diz-nos a Anna Machin. Quer com isto dizer que o amor é uma condição para a nossa sobrevivência enquanto espécie?

Certamente. Não estaríamos aqui sem o amor. Somos uma espécie altamente cooperativa porque temos de assim ser. Cooperamos para criar os nossos filhos, aprender uns com os outros e subsistir. Mas a cooperação é muito difícil, pois pode envolver níveis de coordenação e compromisso que ameaçam a sobrevivência. Algumas pessoas podem prejudicar-nos, mentindo, trapaceando ou roubando. Então, para garantir que cooperamos, o amor evoluiu, no seu nível mais básico, como um conjunto de neuroquímicos motivadores e recompensadores, que nos motivam e nos recompensam por encarar e manter os nossos relacionamentos críticos de sobrevivência.

“Morremos literalmente mais depressa ou mais devagar quando não temos amor na nossa vida” - Neuropsicólogo Alexandre Machado
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Há uma medida para o amor? Ou seja, escolhemos parceiros/parceiras com base em caracteres físicos que inconscientemente são os que consideramos os ideais?

No primeiro momento de atração, sim, e isso é totalmente inconsciente. O que essas características físicas nos revelam é a qualidade da pessoa como um potencial parceiro. Mas, além disso, existem muitos fatores que alimentam a atração além da aparência física, incluindo a inteligência, o sentido de humor, a criatividade, o condicionamento social, a opinião familiar, entre outros.

O amor é um “cocktail inebriante de neuroquímicos”, lemos no seu livro. Quais são estes neuroquímicos e como condicionam o nosso comportamento amoroso?

São a oxitocina, a dopamina, a beta endorfina e a serotonina. A ocitocina e a dopamina funcionam no início de um relacionamento. A oxitocina orienta-nos para possíveis novos relacionamentos e acalma o centro do medo dos nossos cérebros, tornando mais provável que se aproxime das pessoas. A dopamina é a hormona da motivação, bem como da recompensa, que garante que ajamos. A serotonina está envolvida nos elementos obsessivos do amor porque, embora a obsessão extrema não seja saudável, vamos precisar de algum nível de obsessão para investir nos nossos parceiros e coordenar as nossas vidas com eles. A beta endorfina sustenta o amor de longo prazo. É o ópio dos nossos corpos e vicia-nos nos nossos parceiros, amigos, filhos, garantindo que sejamos levados a passar tempo com eles e a cuidarmos deles.

Não estaríamos aqui sem o amor. Somos uma espécie altamente cooperativa porque temos de assim ser. Cooperamos para criar os nossos filhos, aprender uns com os outros e subsistir.

A Anna Machin fala no seu livro da transferência de amor para, por exemplo, telemóveis, vistos quase como parceiros. É uma perspetiva assustadora do amor. Quer explicar-nos?

Essa será a ideia de um psicólogo cibernético e o que este, de facto, descreve é uma forma de apego em que ganhamos segurança e confiança com os nossos telefones, mas o amor é muito mais do que isso. Não acredito que se possa amar um objeto. Isso é rotulado erroneamente como amor, mas não é.

Uma das pessoas que entrevistou para o seu livro diz que o amor “é fazer xixi com a porta aberta” para se referir à cumplicidade e intimidade entre dois amantes. O sexo intensifica a experiência do amor?

Não sou especialista em sexologia, mas com certeza o ato sexual fortalece o vínculo entre amantes, pois contém toque e orgasmo, liberta hormonas de união, ocitocina e beta endorfina. No entanto, o amor não é apenas amor romântico como já vimos, mas também ocorre em contextos não sexuais. Desta forma, o sexo não é necessário para o amor. Acho que o que James [pessoa inquirida por Anna Machin] quer dizer nessa passagem é que, se alguém o ama, então pode ser completamente igual a si mesmo. Você não precisa representar ou ocultar nenhum aspeto de si mesmo.

O cinema oferece-nos o amor há mais de um século. Crendo que a Anna Machin é cinéfila, há algum filme que consiga aproximar-se daquilo que é o amor? E um livro?

Acho que talvez o filme O Segredo de Brokeback Mountain, mas sou péssima a recordar-me de filmes e não consigo pensar em nenhum livro. Dado que costumo ler livros de história, talvez as cartas entre Winston e Clementine Churchill, que eram indivíduos com personalidades fortes, com aspetos complicados, mas que se amaram nos altos e baixos da vida, permitiu-lhes descobrirem quem realmente eram.