Antes de nos determos no seu livro, gostaria de a escutar a propósito do seu projeto Gente de Palmo e Meio. Na apresentação que faz ao mesmo no site escreve que o seu objetivo é simples: educar “crianças saudáveis e felizes. Sem fundamentalismos, sem extremismos”. Vivemos numa sociedade extremista e fundamentalista no que respeita à alimentação das crianças?

Infelizmente, sim. Vivemos numa sociedade onde as opiniões sobre alimentação infantil são polarizadas. Por um lado, há uma pressão para que tudo seja "perfeito" — alimentos 100% naturais, biológicos, sem açúcares, não processados, o que, para muitas famílias, é irrealista e até fonte de ansiedade. Por outro lado, encontramos quem ainda se agarra a práticas e recomendações desatualizadas, muitas vezes transmitidas de geração em geração, que já não refletem o que hoje sabemos sobre nutrição infantil. É comum ouvir frases como "comigo foi assim e estou aqui", o que ignora o impacto a longo prazo de certos hábitos alimentares.

O desafio é encontrar o equilíbrio. Acredito que a alimentação infantil não deve ser motivo de stresse ou culpa, mas sim de educação e prazer. No meu projeto Gente de Palmo e Meio, defendo que é possível criar crianças saudáveis sem cair no extremismo, porque, no fundo, o objetivo é que a relação delas com a comida seja leve, positiva e sustentável a longo prazo. É sobre educar, não sobre impor.

Todo o autor ao escrever um livro traz um propósito. No caso da Ana Rita Sousa, qual é a principal mensagem subjacente ao seu livro? Logo a abrir a obra enuncia três princípios que norteiam a sua visão sobre a alimentação pediátrica.

A principal mensagem que quero passar com o meu livro é que a alimentação infantil pode, e deve, ser simples, prática e descomplicada, mas sem perder de vista a saúde e as novas recomendações validadas pela ciência. O meu propósito com o livro é ajudar famílias a construírem hábitos alimentares positivos e sustentáveis, que respeitem as necessidades da criança e as realidades do dia a dia.

Os três princípios que apresento logo no início refletem esta visão. O primeiro objetivo passa por olhar para a alimentação com tranquilidade. Ou seja, alimentar os nossos filhos não deve ser motivo de stresse. Quando abordamos o tema com calma, transmitimos confiança às crianças. Depois, há que manter uma rotina. A consistência é essencial para criar hábitos alimentares saudáveis. Ter horários e padrões claros dá segurança às crianças e facilita o dia a dia das famílias. Por fim, defendo que a família deve comer toda ao mesmo tempo. Isto fortalece os laços, reduz conflitos e ensina as crianças a explorarem os mesmos sabores e texturas. Estes princípios são simples, mas importantes. Formam a base para uma relação saudável e duradoura com a comida, tanto para as crianças quanto para as suas famílias.

Alimentação infantil
Alimentação infantil créditos: Unsplash/George Dagerotip

Mais informação pode, em certas situações, trazer menos esclarecimento. Hoje, vivemos submersos em informação. Considera que mensagens muitas vezes contraditórias podem estar a criar stresse e ansiedade nos pais face à alimentação dos seus filhos?

Sem dúvida. Vivemos numa era em que a informação está mais acessível do que nunca, mas isso não significa que seja entregue da forma mais correta. Na alimentação infantil, em particular, é comum os pais serem bombardeados por mensagens contraditórias e isso pode gerar confusão, culpa e uma enorme ansiedade. Muitas famílias sentem-se paralisadas entre o medo de errar e a pressão de seguir padrões perfeitos — que muitas vezes são incompatíveis com a realidade do dia a dia. Para mim, o segredo está em simplificar e em oferecer orientações práticas e baseadas em evidências, mas sempre respeitando o contexto e as necessidades de cada família.

Quais são as principais angústias que os pais lhe trazem?

A maior angústia que os pais me trazem é, sem dúvida, a dificuldade de filtrar o que acreditam ser correto em meio a tanta informação disponível e, ao mesmo tempo, saber adaptar essas recomendações à logística e realidade da família. Muitos pais sentem-se pressionados a seguir à risca orientações que nem sempre encaixam no seu dia a dia. Se a família tem horários apertados, crianças com preferências alimentares restritas ou desafios económicos, as sugestões consideradas “ideais” podem acabar por gerar ainda mais stress. O meu papel é ajudar os pais a encontrarem soluções que façam sentido para a sua realidade, respeitando os princípios de uma alimentação saudável, mas sem criar uma carga adicional.

O conceito de alimentação saudável na criança de tenra idade baseia-se em equilíbrio, variedade e saber adequar as necessidades nutricionais específicas.

Como forma de ilustramos os conceitos quer, por favor, indicar-nos o que se entende como alimentação saudável na criança de tenra idade? Há quem faça a associação entre alimentação saudável e regimes vegetarianos ou veganos.

O conceito de alimentação saudável na criança de tenra idade baseia-se em equilíbrio, variedade e saber adequar as necessidades nutricionais específicas à criança. Em Portugal, temos a Roda dos Alimentos como uma excelente ferramenta para orientar escolhas alimentares. A Roda apresenta sete grupos principais — cereais e tubérculos, hortícolas, frutas, lacticínios, carne/peixe/ovos, leguminosas e gorduras saudáveis — que devem ser consumidos em proporções adequadas. É uma abordagem simples e prática para garantir que as crianças recebam todos os nutrientes necessários para o seu crescimento e desenvolvimento. Outro ponto essencial é a sazonalidade. Oferecer alimentos frescos e próprios da estação não só é mais económico e sustentável, mas também permite às crianças experimentar uma maior diversidade de sabores ao longo do ano, promovendo uma alimentação rica e variada.

Ana Rita Sousa nasceu em Ponta Delgada. É nutricionista, licenciada em Ciências da Nutrição pela Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto (FCNAUP), possui um mestrado em Educação para a Saúde pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP) e formação pós-graduada em Alimentação e Nutrição Pediátrica pela Nova Medical School.
Em 2020, lançou o projeto Gente de Palmo e Meio, onde partilha informação científica de forma acessível através das suas redes sociais e site, ajudando pais e cuidadores a promoverem hábitos alimentares saudáveis entre os mais novos.
Além disso, é cocriadora da marca Com a Comida Não se Brinca, que se dedica à produção de jogos e materiais didáticos focados na alimentação pediátrica. Paralelamente, dá consultas de nutrição e workshops, em que ajuda famílias a terem uma alimentação saudável e feliz.

É importante destacar que uma alimentação saudável, seja em que fase for, não está automaticamente associada a regimes vegetarianos ou veganos, a não ser que esses atendam aos princípios fundamentais de uma dieta equilibrada. Se uma família optar por uma dieta vegetariana ou vegana, deve garantir que está a seguir as orientações da Roda dos Alimentos, incluindo alternativas nutricionais que substituem corretamente alimentos de origem animal, como proteínas vegetais e fontes de ferro, cálcio e vitamina B12. Caso contrário, um regime vegetariano ou vegano pode não ser saudável para uma criança, mesmo que o conceito de “vegetariano” esteja presente, pois pode deixar lacunas nutricionais importantes, comprometendo o crescimento e desenvolvimento adequado.

Portanto, é fundamental que a alimentação, seja ela onívora, vegetariana ou vegana, siga as orientações nutricionais corretas para ser verdadeiramente saudável, especialmente para crianças em fase de crescimento.

Porque é que os primeiros mil dias na alimentação da criança são fundamentais?

Este conceito surgiu há mais de 20 anos na Evidência Científica. Foi a partir dele que se começou a estudar a importância dos primeiros 1000 dias de vida do bebé e o seu impacto na sua saúde presente e futura. Recentemente, e principalmente na última década, os estes 1000 dias ganharam outra dimensão, juntando-se os três meses de preconceção. Os estudos são claros e defendem que estes 1100 dias são uma janela única de oportunidade para o fornecimento de nutrientes importantes para um desenvolvimento saudável, com impacto nas suas capacidades motoras e sociais, prevenindo inúmeras doenças não transmissíveis e contribuindo para uma boa relação com a alimentação, mesmo em fase adulta.

Na área da nutrição materno-infantil há a destacar vários marcos importantes. A Ana Rita Sousa quer sintetizá-los?

Sim. Em síntese temos a alimentação e o estado nutricional dos futuros progenitores durante o período de preconceção, tendo especial impacto os três meses que antecedem a gravidez. Depois temos a alimentação da mulher durante toda a gravidez, tendo em conta as diferentes particularidades de cada trimestre. Acresce a alimentação da mulher no pós-parto e durante a amamentação – valorizando o estado nutricional não só do bebé, mas também da mãe.

Também há a considerar a alimentação durante a Introdução Alimentar até aos 24 meses – é nesta fase que a criança estabelece hábitos saudáveis, diminuindo a probabilidade de seletividade alimentar, excesso de peso e obesidade, ou até de desenvolvimento de doenças associadas a défices nutricionais que podem comprometer o seu desenvolvimento.

Portanto, garantir uma alimentação saudável e equilibrada durante os primeiros mil dias é essencial não apenas para a saúde imediata da criança, mas também para o seu desenvolvimento futuro.

O ambiente familiar tem um impacto significativo nos hábitos alimentares da criança, e os pais desempenham um papel fundamental na criação de uma base saudável desde o início.

É lícito afirmarmos que a boa alimentação do bebé começa nos bons hábitos alimentares dos pais?

Sim, é perfeitamente lícito afirmar que a boa alimentação do bebé começa nos bons hábitos alimentares dos pais. O ambiente familiar tem um impacto significativo nos hábitos alimentares da criança, e os pais desempenham um papel fundamental na criação de uma base saudável desde o início. As crianças aprendem por imitação, e o comportamento alimentar dos pais serve como modelo. Quando os pais adotam uma alimentação equilibrada e saudável, é mais provável que a criança siga esse exemplo à medida que cresce.

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Os pais também têm a responsabilidade de criar uma cultura alimentar positiva, o que significa estabelecer uma relação saudável com a comida. Isso inclui a forma como se abordam as refeições, sem pressões, sem forçar a criança a comer ou usar a comida como recompensa. Uma abordagem tranquila e positiva ajuda a criança a desenvolver uma relação saudável com a alimentação desde cedo. À medida que a criança cresce e se torna mais independente, os hábitos alimentares estabelecidos pelos pais continuam a influenciar as suas escolhas alimentares. O modo como os pais estruturam as refeições, os horários e os alimentos disponíveis em casa molda a relação da criança com a alimentação a longo prazo.

Para o seu livro leva diferentes abordagens da introdução alimentar. Em seu entender, há alguma abordagem que deve preponderar sobre as restantes?

No meu livro, abordo a introdução alimentar de forma flexível e prática, pois acredito que não há uma única abordagem que seja a melhor para todas as famílias. Cada bebé e cada família têm uma dinâmica única, e as escolhas feitas ao longo desse processo devem respeitar essa individualidade.

A introdução alimentar deve ser uma experiência positiva, sem pressões, e que encoraje a criança a explorar novos sabores e texturas de forma gradual. Acredito que uma das abordagens mais eficazes é a combinação de alimentação complementar tradicional [papas e purés] com baby-led weaning [alimentação conduzida pelo bebé], porque permite que os pais se sintam mais seguros nas etapas iniciais, enquanto, ao mesmo tempo, dá espaço para a criança explorar a comida por iniciativa própria, favorecendo o desenvolvimento da autonomia.

Além disso, é essencial que os pais adotem uma postura tranquila e flexível, sem se prenderem a regras rígidas ou a comparações com outras crianças. O foco deve ser em garantir uma alimentação equilibrada e nutritiva, sem ansiedade, respeitando os sinais da criança e ajustando as refeições conforme as necessidades e preferências dela, sem forçar ou fazer com que a comida seja associada a uma experiência negativa.

alimentação infantil
alimentação infantil créditos: Unsplash/Stephen Andrews

São muitos os factos que abonam a favor da amamentação e do leite materno. Contudo, vivemos num tempo em que os lineares se encontram pejados de leites de fórmula para bebés. A Ana Rita Sousa considera que existe pressão por parte da indústria para afastar as mães da amamentação em abono destes leites?

Sim, infelizmente a pressão da indústria de leites de fórmula é uma realidade que muitas mães enfrentam, embora não seja sempre explícita. A forma como os produtos alimentares dirigidos a bebés são promovidos, especialmente através da publicidade e da disponibilidade constante nas prateleiras, pode criar uma perceção de que o leite materno é uma opção "opcional" ou até insuficiente. Isso é um contraste direto com as evidências científicas que demonstram os inúmeros benefícios do leite materno para o desenvolvimento e a saúde do bebé.

A amamentação tem benefícios claros para a saúde do bebé e da mãe, incluindo a proteção contra doenças, o fortalecimento do vínculo mãe-bebé e o desenvolvimento de um sistema imunológico mais forte. No entanto, a indústria de leites de fórmula tem uma presença muito forte nos media e nas consultas de pediatria, frequentemente posicionando-se como uma alternativa viável, mesmo quando não é estritamente necessária.

Embora existam situações em que a amamentação não seja possível ou recomendada, o que me preocupa é a pressão velada que muitas mães sentem para recorrer à fórmula quando poderiam continuar a amamentar com mais apoio. O marketing de leites de fórmula, ao promover a ideia de que o leite materno é difícil, inadequado ou "não o suficiente", pode ser um fator de insegurança para muitas mães, fazendo com que se sintam desmotivadas a amamentar, mesmo quando desejam fazê-lo.

O meu ponto de vista é que as mães devem ser apoiadas e bem informadas sobre os benefícios da amamentação e sobre como superar os desafios que podem surgir. A pressão social e comercial precisa ser reduzida, para que as escolhas das mães possam ser feitas com base nas suas necessidades e na saúde do bebé, e não em estratégias de marketing de grandes indústrias.

alimentação palmo e meio
alimentação palmo e meio créditos: Ideias de Ler

No seu livro também desconstrói mitos em torno da alimentação dos mais pequenos. Quer partilhar com os leitores alguns destes mitos e desconstruí-los?

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Gostaria de partilhar dois exemplos de mitos comuns sobre a alimentação infantil. O primeiro diz respeito aos hortícolas congelados. Muitos pais têm receio de que esses alimentos não sejam tão nutritivos ou seguros quanto os frescos. No entanto, os hortícolas congelados, como a cenoura, o brócolo, o feijão-verde ou o pimento, são uma opção saudável e prática, desde que sejam manipulados e armazenados corretamente. Embora algumas vitaminas hidrossolúveis possam sofrer pequenas alterações no processo de congelação, as perdas não são significativas e não afetam o valor nutricional dos alimentos. Além disso, os riscos microbiológicos são os mesmos para os hortícolas frescos e congelados, e podem ser minimizados com os cuidados adequados ao escolher, armazenar e preparar esses alimentos.

Outro mito comum que gostaria de abordar é o relacionado com o descongelamento de alimentos. Muitas famílias recorrem ao congelamento de alimentos como uma forma prática e eficaz de armazenar refeições, mas a grande questão surge na hora de descongelar. Um erro comum, infelizmente, é descongelar os alimentos à temperatura ambiente, o que pode aumentar o risco de intoxicação alimentar. Para garantir a segurança alimentar, a descongelação deve ser feita de maneira adequada. A forma mais segura é descongelar no frigorífico, de preferência durante a noite antes da refeição, ou sob água fria corrente, mantendo o alimento na sua embalagem original. Estas práticas ajudam a evitar o crescimento de bactérias e a garantir a segurança da refeição.

Um erro comum, infelizmente, é descongelar os alimentos à temperatura ambiente, o que pode aumentar o risco de intoxicação alimentar.

Face à recusa de uma criança em comer, qual é o melhor conselho que a Ana Rita Sousa pode dar aos pais?

O conselho mais importante que posso dar aos pais quando enfrentam a recusa alimentar de uma criança é, acima de tudo, aceitar a sua individualidade. Cada criança é única, e o que pode funcionar para uma, pode não funcionar para outra. A recusa alimentar muitas vezes não tem nada a ver com a qualidade da refeição ou com o amor que é colocado na preparação da comida, mas sim com os processos naturais de desenvolvimento da criança.

Em vez de estarmos focados na frustração, convido os pais a olhar para a situação com compreensão. Não vale a pena entrar em conflito ou criar um ambiente de tensão em torno da alimentação. Forçar uma criança a comer ou pressioná-la pode gerar aversão ainda maior. É essencial respeitar o tempo e o ritmo dela, criando um ambiente tranquilo e positivo em torno das refeições.

Também é importante lembrar que a alimentação é um processo contínuo e que as crianças têm fases em que podem estar mais seletivas, enquanto em outras podem estar mais abertas a novos alimentos. A chave está em continuar a apresentar opções variadas, sem pressa, e mantendo a rotina alimentar sem grandes expectativas de resultados imediatos. Cada passo, por mais pequeno que seja, é um avanço no processo de aprendizagem alimentar da criança.

Caso a recusa alimentar persista ou haja preocupação com o desenvolvimento da criança, é sempre válido procurar o apoio de profissionais de saúde competentes na área, como pediatras e nutricionistas especializados. Eles podem ajudar a identificar questões subjacentes e orientar os pais de forma adequada, sem julgamentos, com o objetivo de garantir a saúde e o bem-estar da criança

Num mundo dominado pela tecnologia, como vê a Ana Rita Sousa que as refeições das crianças desde tenra idade se façam frente a ecrãs?

Num mundo dominado pela tecnologia, é essencial que as refeições das crianças sejam momentos de conexão com a família. Comer em frente a ecrãs pode até parecer funcionar a curto prazo, ao distrair a criança e facilitar a alimentação, mas a longo prazo pode prejudicar o seu desenvolvimento e trazer mais desvantagens do que vantagens. Os ecrãs são responsáveis por retirar o foco da interação e do contato com os pais e com os alimentos, o que é fundamental para o desenvolvimento social e emocional. As refeições devem ser um momento de aprendizagem e prazer compartilhado, sem distrações, para que a criança desenvolva uma relação saudável com a comida.