Nasceu na Coreia do Norte, viveu na China e reside, atualmente, na Coreia do Sul. Fugiu da sua terra natal com intenção de voltar, algo que lhe está barrado até à queda do regime vigente que, acredita, estar para breve. Esta é a história de uma refugiada que se diz cidadã do mundo, mas que nunca mais se sentiu, verdadeiramente, em casa. Veio ao mundo em 1980, em Hyesan, no seio de uma família de elevado songbun, o famoso sistema de castas norte-coreano.

Os antecessores de Hyeonseo Lee tinham sido considerados pelos líderes da República Popular Democrática da Coreia pessoas leais ao regime, o que na prática trazia benefícios materiais para toda a família. Tanto que nunca lhe faltou comida, roupa, nem outros bens mundanos. «Nunca sofri na Coreia do Norte. Fomos das poucas famílias que beneficiaram com o regime», conta a autora do livro «A Mulher com Sete Nomes», publicado pela Editorial Planeta.

Essa categoria alta na sociedade foi mantida pela mãe de Hyeonseo Lee, tanto nos seus dois casamentos, como pela sua veia empreendedora. Embora fosse uma mulher que se destacava das restantes pela educação e pelo trato, a mãe tinha jeito para os negócios. Sobretudo, para aqueles que envolviam trocas com contrabandistas chineses. Resultado, Hyeonseo Lee tinha uma perceção diferente dos limites impostos pela ditadura totalitarista estalinista criada por Kim Il-sung.

Contraordenações e ilegalidades eram facilmente compradas com subornos. Não foi a necessidade que impeliu Hyeonseo Lee a arriscar, aos 17 anos, uma fuga perigosa para a China. Foi, pura e simplesmente, uma combinação de ingenuidade e desejo de aventura próprios da adolescência que a conduziu à sua vida nos dias que correm, como revelou na entrevista emotiva que concedeu à Saber Viver.

Como imaginava o mundo fora da Coreia do Norte quando era criança?

O pouco que aprendíamos sobre o mundo fora da Coreia do Norte era negativo. [Ensinavam-nos] que os EUA, a Coreia do Sul e o Japão eram o inimigo, pois faziam as suas populações sofrer. Diziam-nos que os EUA estavam sempre a tentar atacar o nosso país. Os líderes fizeram-nos crer que a Coreia do Norte era o paraíso. Como éramos todos submetidos a uma lavagem cerebral, acreditávamos que tínhamos a melhor vida possível e que o ditador era um deus que sacrificava a sua vida para nos proteger.

Simultaneamente, crescemos com constantes execuções públicas e famílias inteiras a desaparecerem no meio da noite. Por um lado, éramos leais ao regime por amor. Por outro, éramos leais ao regime por medo de sermos executados publicamente ou de sermos enviados para os campos para prisioneiros políticos. Tínhamos de ter muito cuidado com o que dizíamos. Ser-se ignorante na Coreia do Norte é uma forma segura de sobreviver.

Aos sete anos foi a primeira vez que assistiu a uma execução pública. Recorda-se o que pensou nesse momento?

Só me lembro de estar em choque. Foi a primeira vez que vi um ser humano morrer à minha frente. Estava a andar na rua quando vi uma grande multidão. Quis saber o que se passava, então aproximei-me e vi um homem a ser enforcado. Estava pendurado pelo pescoço numa ponte ferroviária. Fiquei surpreendida pela facilidade e rapidez com que um ser humano podia morrer.

Soube de que crime foi acusado?

Não, eu era tão jovem que não compreendi o motivo. Normalmente, antes da execução há um julgamento público, em que dizem de que crimes as pessoas estão acusadas. À medida que fui crescendo, reparei que morriam muitas assim. O governo distribuía panfletos com as que tinham sido executadas publicamente naquele dia. Era tão comum, que fazia parte do nosso quotidiano.

Não sabíamos nada acerca dos direitos humanos. Só depois de ter fugido da Coreia do Norte é que comecei a aprender mais sobre a realidade do meu país e percebi que a grande maioria das pessoas executadas em público eram vítimas. Algumas foram mortas porque roubaram arroz para alimentarem as suas famílias, outras eram desertores apanhados noutros países, homossexuais, videntes, pessoas que matavam vacas…

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Tiravam-lhes a vida por causa de vacas?

As vacas valiam dez vezes um ser humano. Eram consideradas bens do governo, não eram permitidas para consumo privado.  Durante a fome nos anos da década de 1990, algumas pessoas passaram a cortar-lhes as caudas. Sabia que uma vaca sem cauda tem dificuldade em levantar-se e andar? É muito triste…

Questionava os seus pais sobre isto?

Não. Achávamos tudo aquilo normal. Não tinha questões, porque não havia comparação. Desde que nascíamos, crescíamos a ver cenas daquelas. Achava que todos os criminosos deviam ser mortos em praça pública. Achava que a Coreia do Norte era o melhor país…

Então, se achava que vivia no melhor país do mundo, porque decidiu fugir?

Via televisão chinesa às escondidas. Antes de descobrir os canais da televisão chinesa, achava que tinha a melhor vida possível. Mas a televisão fazia a China parecer o paraíso. Não se comparava connosco. Na Coreia do Norte, só tínhamos um canal de televisão, que apenas passava propaganda. Não havia programas onde mostrassem emoções.

Os canais chineses eram exatamente como a televisão que vê hoje em dia. Estava encantada! Desde aí, comecei a questionar se a Coreia do Norte seria o melhor país do mundo. Mas eu não sabia que tínhamos levado uma lavagem cerebral e que vivíamos numa ditadura.

Aprendeu a falar mandarim através da televisão?

Não. Na Coreia do Norte, tínhamos uma aula que ensinava a escrever em cantonês, não em mandarim. Lá, ainda hoje, usam o cantonês misturado com o coreano nos jornais para que apenas algumas pessoas consigam perceber o significado. O cantonês é difícil de aprender, mas sempre tive curiosidade e interesse em aprender línguas e o meu pai encorajava-me. Na altura não valorizava, mas, anos mais tarde, ajudou-me muito.

Descreve no livro um episódio que marcou a transição na sua forma de pensar. Quando, em 1995, a sua mãe lhe leu uma nota de uma colega cuja família estava a morrer à fome…

Sim. Pessoas a morrerem em execuções públicas e pessoas a morrerem à fome são situações completamente diferentes. Na primeira, há um motivo, uma razão para aquelas pessoas serem mortas. Pessoas a morrerem à fome não fazia sentido. Estava chocada. Por que é que tinham de morrer à fome? Não estávamos em guerra. De dia, via pessoas a morrerem de fome na rua. De noite, via o oposto na televisão chinesa.

De onde surgiu o plano de fuga?

Cresci em Hyesan, uma cidade que faz fronteira com a China. Era muito perto da minha casa, a passagem para a China. E todos os dias eu parava na margem do rio que separa os dois países, e olhava para o lado chinês. Via cada vez mais pessoas a morrerem de fome nas ruas da minha cidade, o que contrastava com aquilo que via na televisão chinesa. Só queria saber como seria a vida na outra margem do rio, que mundo se abriria para mim. Seria o céu ou o inferno?

Então, fui reunindo coragem para atravessar. Mas não era minha intenção fugir do país para sempre. Achava que podia voltar, como algumas pessoas faziam para contrabandearem bens e outros produtos. Era muito ingénua. Quando atravessei a fronteira, não sabia que seria a última vez que iria ver o meu país e que ficaria separada da minha família durante tanto tempo.

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Despediu-se da sua família?

Não. Não podia dizer à minha mãe. Sabia que se dissesse, a minha mãe não me deixaria ir. Mas eu tinha de saber a resposta para a minha pergunta e saber se seria a vida melhor do outro lado?. Tive de acreditar em mim própria. O que mais me comoveu foram os últimos minutos antes de atravessar a fronteira, depois do jantar com a minha família, em que disse à minha mãe que ia ter a casa de uma amiga.

Ela acompanhou-me até ao portão e disse-me para não ficar fora até muito tarde porque é perigoso para uma rapariga jovem. Tal como qualquer mãe se preocuparia com uma filha, noutro país. Gostava de poder ter dito à minha mãe «Vou-me embora, vou para a China. Podes esperar por mim?». Mas não podia. Tinha medo que o meu plano corresse mal. Por isso, menti-lhe. Disse-lhe «Volto rapidamente»…

Em que zona da China se estabeleceu?

No norte, na cidade de Shenyang, na província Liaoning, que ficava a cerca de 10 horas de carro da fronteira com a Coreia do Norte. Tinha parentes a viver lá. Normalmente, é muito difícil para os norte-coreanos encontrarem as suas famílias na China, mas como a minha família fazia negócios com contrabandistas chineses, fui direita à casa de um deles do outro lado da margem do rio e pedi que me levasse àquela morada.

Como correram as primeiras semanas?

Estava fascinada. Era exatamente como tinha visto na televisão chinesa! Não havia propaganda, não havia medo… Era um brilhante mundo novo. E eu achava que era todo só para mim. A parte que eu mais gostava era de poder ver televisão quando queria, no volume que queria, sem ter de fechar as cortinas.

Também podia ouvir música sulcoreana aos altos berros. Pensava que aquilo era a verdadeira liberdade. Na altura, queria ficar na China. A primeira semana passou muito rápido, como se tivesse sido um dia só. Mas depressa percebi que aquele mundo novo não era assim tão brilhante…

Porquê? O que é que aconteceu?

A vida dos desertores da Coreia do Norte na China passou a ser muito difícil, porque o governo chinês repatriava todos os que apanhava. Era horrível. Os chineses recebiam dinheiro do governo se identificassem desertores da Coreia do Norte, que eram interrogados pelas autoridades chinesas e depois deportados. Passados três anos da minha chegada à China, fui apanhada pela polícia e interrogaram-me.

Só pensava no que me ia acontecer se me devolvessem à Coreia do Norte. Mas acabei por ser libertada, porque os polícias não acreditaram que eu fosse uma desertora da Coreia do Norte. Estavam espantados por eu conseguir falar e escrever mandarim. Ainda hoje há muitos chineses analfabetos. Um dos guardas sussurrou ao outro que tinha sido uma falsa denúncia. Esse foi o momento mais misterioso da minha vida. Foi um verdadeiro milagre!

Veja na página seguinte: O momento em que decidiu mudar de nome

Nessa altura, mudou de nome?

Sim, foi quando me apercebi que não podia voltar para a Coreia do Norte. E mudei de nome mais vezes para proteger a minha identidade das autoridades. Quando pedi asilo na Coreia do Sul, achava que poderia usar o meu verdadeiro nome. Mas descobri que era perigoso viver na Coreia do Sul enquanto desertora da Coreia do Norte.

Há espiões norte-coreanos na Coreia do Sul que se fazem passar por desertores norte-coreanos para saberem dados sobre as nossas famílias. Então, tive de mudar de nome, novamente, para proteger a identidade da minha família na Coreia do Norte. Adotei o nome Hyeonseo Lee. Espero que seja o último! Não quero ter outro…

Sentiu algum tipo de choque cultural quando chegou à Coreia do Sul?

Sim. Por fora, parecemos iguais. Temos os mesmos traços, partilhamos a cultura gastronómica… Mas a verdade é que mudámos muito nos 70 anos de separação. Até a língua mudou, a pronúncia é diferente. O vocabulário que usam na Coreia do Sul tem muitas influências do inglês. A barreira linguística não ajudou, mas pior que isso foi sentir que os desertores da Coreia do Norte eram vistos e tratados como alienígenas.

Durante a longa separação entre os dois países, o povo sul-coreano esqueceu-se de nós. Eliminou-nos da sua memória coletiva. Senti ódio por parte dos sul-coreanos. É por isso que, quando os desertores norte-coreanos vão à procura de trabalho, têm de esconder a sua verdadeira identidade.

Onde é que se sente em casa?

O mundo inteiro é a minha casa. Mas eu sonho com a unificação. Serei a primeira a voltar para a Coreia do Norte. Tenho saudades…

A emocionante vida da mulher que já teve sete nomes

Nas suas memórias, publicadas em Portugal pela Editorial Planeta, Hyeonseo Lee traça um quadro trágico da realidade norte-coreana. E, ao longo de quase 400 páginas, explica como fugiu da Coreia do Norte, descrevendo as muitas desventuras que teve até conseguir o estatuto de exilada política na Coreia do Sul. Narrada na primeira pessoa, a obra é, no entanto, coassinada pelo marido de Lee, David John, um norte-americano que conheceu, por acaso, num jantar de amigos.

Texto: Filipa Basílio da Silva