Aos 20 anos, foi-lhe diagnosticado um linfoma não-Hodgkin, não operável. Ultrapassou vários meses de quimioterapia, um transplante de medula e até um coma induzido.

Passados mais de 9 anos sobre o dia C (de cura), recorda um  trunfos para sobreviver.  «Não podemos aceitar, nem imaginar a morte. Temos de nos imaginar vivos e agarrarmo-nos a essa ideia», conta.

Aos 20 anos Raquel Carvalho vivia em Alter do Chão rodeada da família e dos amigos de sempre, no descuido feliz e privilegiado tão próprio da juventude. Nesse tempo, «tudo era fantástico». Fazia muito desporto e, no seu calendário, as festas estavam em lugar de destaque», revela.

«Muito confiante, era (e é) uma força da natureza, para quem acordar já é uma celebração e dormir uma perda de tempo. Subitamente, manifestam-se pequenos sintomas invulgares. Começa a sentir-se excessivamente cansada e sem forças para acompanhar os amigos.

Dorme muito. Para alguém com tanta energia tudo isto era preocupante, mas nem lhe passava pela cabeça que poderia ser alguma coisa grave, até ao momento em que mesmo as tarefas mais simples, como conduzir, se lhe tornaram insuportáveis: «sentia uma dor no peito tão forte que conduzia encolhida. Além disso, doía-me o coração e estava sempre a dormir», revela.

Como nunca se queixara de dores, nem nos desportos exigentes que praticava (pegava touros, andava de mota, fazia ski e caçava), os pais levaram estes sintomas muito a sério. Após uma consulta ao médico de família, que percebe imediatamente do que se trata, Raquel é enviada de urgência para Lisboa onde se submete a uma série de exames exaustivos.

E ali, com muitos médicos à sua volta é-lhe revelada a terrível notícia. Mas é também ali que surge uma nova Raquel com uma força, uma coragem e uma maturidade que até ela própria desconhecia possuir.

«Só me apercebi de que se tratava de alguma coisa muito grave quando entrei numa sala e vi toda a família reunida. Estavam lá todos, mesmo aqueles que só vejo nas festas e no Natal», conta Raquel, que ainda guarda lembranças muito nítidas desses momentos:

Perante as lágrimas e a tristeza de todos, foi ela que ainda se sentiu obrigada a reconfortá-los com a sua alegria e boa disposição de sempre. «O médico foi muito directo e disse-me: Raquel tens um cancro.

A seguir explicou-me detalhadamente os tratamentos, falou na queda de cabelo e avisou-me que eu poderia ficar muito magrinha ou muito gorda».

Respondeu: «Espero ficar gorda para aguentar os tratamentos.» Por isso, ao longo de todo o processo, fez sempre um esforço enorme para não vomitar, pois tinha muito medo de perder peso.

Desta maneira engordou oito quilos, o que para uma jovem vaidosa equivale a ficar uma bola, recordando ainda que foi ela, «com uma força vinda não sei de onde» a perguntar ao médico se podia começar os tratamentos logo nesse mesmo dia.

De resto, e perante a reacção apavorada dos pais, Raquel não deitou uma lágrima e nunca admitiu sequer duvidar de que iria conseguir ultrapassar este obstáculo. O diagnóstico revelara um linfoma não-Hodgkin, não operável.

A quimioterapia começou imediatamente: quatro meses de tratamentos em que «a ressaca da quimio fazia-a em casa», recorda. Raquel cumpre as dolorosas etapas do tratamento com a tenacidade de um atleta.

No primeiro tratamento continua a viver no Alentejo e só permanece em Lisboa quando o médico a quer vigiada.

Como menina do campo que era, detestava a cidade e, assim, para se distrair entre idas e vindas do hospital passou a ir para Monsanto praticar tiro aos pratos.

Como caçava desde pequena, tinha óptimas prestações, de tal modo que acabou por entrar em competição tornando-se campeã Nacional, «mas como só estava ali para me divertir, quando o assunto se tornou demasiado sério abandonei a modalidade».

Foi outra das suas pequenas distracções que a conduziu à sua actividade actual, o restauro, que começou a desenvolver através de pequenos cursos livres de pintura decorativa. Tirava tanto prazer disso que depressa percebeu que seria esse o seu caminho profissional, lembrando-se que essa paixão já vinha da infância, quando passava horas a fio a observar os tectos trabalhados e os objectos antigos com uma atenção invulgar.

A primeira boa notícia e a recaída

Finalmente, no dia 23 de Dezembro 1998, o médico deu-lhe os parabéns. «Estava limpinha», relembra. A bolsa alojada entre o coração e os pulmões havia desaparecido.

«Foi o melhor presente de Natal!», recorda. Sem esperar mais, Raquel voltou a correr para Alter do Chão, extasiada por poder recuperar a sua vida. «Então fiz tudo! Queria voltar a sentir a adrenalina, festejei, saí muito, voltei ao desporto».

Em Março, foi para a neve esquiar mas, antes da viagem, foi a uma consulta de rotina. Continuava tudo bem. Na neve partiu um dedo, mas divertiu-se muito, «foi uma semana óptima». Quando voltou, voltaram também os sintomas: sono e muitas dores.

Mais uma vez, os pais levaram-na de imediato ao médico e a noticia era terrível. Numa semana, o linfoma não só tinha voltado com estava maior ainda. «Era agora uma bolsa com um palmo de comprimento. Não percebo muito dos detalhes, porque tinha 20 anos e foi a explicação que me deram.

Tanto quanto me parece, a célula mãe não tinha morrido, a actividade excessiva do coração activou-a e o linfoma cresceu desmesuradamente». A situação era gravíssima.

Desta vez, Raquel ficou internada no IPO durante todo o tratamento, chegando mesmo a ficar isolada no Aquário durante alguns meses. «No Aquário só se entra esterilizado e totalmente equipado com batas, sapatos e luvas verdes. É surreal, um cenário de ficção científica, onde eu só via os olhos das pessoas», refere.

O tratamento implicou quimioterapia e um transplante de medula óssea. «Como não era compatível com ninguém fiz um transplante da minha própria medula.». Para isso, teve de passar por um coma induzido.

Essa foi talvez a parte mais dolorosa de todo o processo, porque podia não voltar. «Essa foi uma das raras vezes em que tive um ataque de choro mas nunca me visualizei a morrer», relembra, reforçando «não podemos aceitar, nem imaginar a morte. Temos de nos imaginar vivos e agarrarmo-nos a essa ideia.»

Agarrada à vida como sempre esteve, Raquel fez amigos na enfermaria que se mantiveram junto dela depois de entrar para o Aquário. Ali, num profundo isolamento, contou sempre com o conforto da presença desses companheiros de dor e alegrias, com quem comunicava por carta.

Escreviam-se todos muito e para os tranquilizar, quando se aproximou o momento do coma induzido, avisou-os de que durante uns dias iria estar ausente, adormecida, mas que não se preocupassem pois voltaria. Ainda hoje e para sempre Raquel se refere a esses amigos como os seus «anjinhos da guarda».

Finalmente, e quando o linfoma já estava reduzido ao mínimo graças aos tratamento de quimioterapia, estava na altura de fazer o transplante e de partir para a mais temível das etapas, o coma induzido. Dali, ou acordava e teria à sua espera a melhor de todas as notícias, ou não regressaria mais.

Mas tal como era esperado, correu tudo muito bem e, ao acordar, Raquel não conseguiu conter uma explosão de alegria. Sem pensar, levantou-se da cama a gritar e a dançar «estou viva, estou viva e um e dois e um e dois», simulando uns passos de aeróbica.

Esta brincadeira durou três ou quatro minutos, até um médico a obrigar a deitar-se de novo. A breve manifestação de entusiasmo valeu-lhe três dias sem se conseguir mexer.
Seguiram-se dois meses de tratamentos diários com radioterapia «muito cansativos», ao longo dos quais fez novos amigos, nunca deixando, sempre que podia, de ir visitar os seus «anjinhos», na enfermaria do IPO.

«No dia 27 de Julho 1999, o médico disse-me finalmente que estava tratada. Essa data passou a ser mais importante que o meu próprio aniversário, que é três dias antes.» De tal forma que, actualmente Raquel festeja com a família e os amigos o dia dos seus anos e o dia da confirmação da sua cura, que inclui missa.

«Agradeço a Deus todos os dias, por estar viva, por mais um dia, mais uma lágrima, mais um amigo.» Sempre foi muito religiosa mas tudo por que passou reforçou a sua fé, tornando-a ainda mais crente.

«Saber que tanta gente rezava por mim dava-me muito conforto e a partilha diminuía a minha dor», confessa. Para trás ficaram alguns amigos de infância e juventude.

«Ninguém me abandonou, mas não souberam encarar. Não os culpo, tive de me afastar deles por uma questão de autodefesa», admite. Desde o início que Raquel encarou tudo de frente, não se escondeu e manteve a sua dignidade e vaidade.

Cortou o seu próprio cabelo, combinou jantares para que os amigos a vissem, fotografou-se e filmou-se várias vezes durante o processo, para não esquecer e, simultaneamente, para se lembrar que continuava linda. «É tudo uma questão de mentalização», assegura.

Tem fotografias suas de cabelo comprido, curto e rapado. Instantâneos onde enfrenta a câmara com alegria e coragem, magrinha e depois mais gordinha, mas sempre maravilhosa. Alguns amigos achavam que ela tinha de se esconder, ficar em casa.

Esses tratavam-na com pena. Raquel reagiu. «Eu não era uma coitadinha! Tudo o que eu não queria era que me vissem assim. Se eu acreditasse que era uma coitadinha morria!»

Mas outros, improváveis e que mal conhecia, revelaram-se pessoas extraordinárias, «tratavam-me como igual, como uma do grupo. Esses acompanharam-me e deram-me força, sem paternalismos.»

Em 2008, fez 30 anos, mas mais importante ainda, cumpriu nove desde que está tratada e que nasceu uma nova pessoa. «Eu era muito dura e achava que chorar era uma vergonha, não gostava de demonstrar sentimentos.»

Desde então mudou muito: «Deixei de esconder sentimentos. E não perco tempo com pessoas com quem não me sinto bem». Descobriu também a força e a beleza de um abraço.

Curiosamente agora também adora Lisboa, que é onde vive e onde fez, literalmente, o seu ateliê de restauro.

«Acordo de manhã e sou feliz, sou sempre feliz, mesmo quando estou em baixo. Os depoimentos que tenho dado, têm-me feito confrontar outra vez com a doença e com as perdas e isso já me tem feito chorar», desabafa.

«Mas e se a minha doença tivesse sido uma dádiva? Se não fosse esta lição, quem sabe se eu não eu iria desperdiçar a minha vida e não lhe dar o devido valor?», interroga.

Os conselhos de Raquel Carvalho

Esperança
«Apesar de tudo e de todos os males, aceitem o que está a acontecer. Agarrem-se à ideia de que é passageiro.»

Acreditar
«Agarrem-se à vida com todas as forças, mesmo as que desconhecem. Visualizem que ainda têm muito para viver. Arranjem um motivo muito forte para suportar a doença, pode ser uma pessoa ou uma causa.»


«O truque do anjinho – peçam muito ao vosso anjo, ou a algo em que acreditam, que vos ajude a suportar as dores; eu pedia ao meu anjinho para me tirar as dores e sofrer um bocadinho por mim. Esta mentalização ajudou-me muito.»

Aos Amigos

«Tratem as pessoas que estão doentes da mesma forma de sempre. Não os deixem desistir e transmitam força, não piedade!»

Texto: Marta Gonzaga
Foto: Estúdios António J. Homem Cardoso