Ser médico pode ser a melhor coisa do mundo. É técnica e cognitivamente desafiante, estimulando-nos à aprendizagem e desenvolvimento profissional contínuos. Humanamente, é gratificante, porque na prestação de cuidados de saúde – e na sua planificação – todos os dias podemos ajudar alguém e, uma pessoa de cada vez, contribuir para um mundo melhor. O nosso trabalho é infinitamente enriquecedor porque nos faz testemunhas próximas das histórias dos outros, do seu sofrimento, mas também da sua superação e do sentido que encontram nas suas vidas.

Mas tudo isto vem com um preço. Ser médico também traz consigo penosidade e riscos diversos. E pode ser extraordinariamente desgastante.

Como médicos, somos profissionais altamente diferenciados. Somos chamados a tomar decisões que são, frequentemente, de uma grande complexidade. As nossas decisões afetam a vida e a saúde das pessoas, conferindo-nos uma responsabilidade ímpar na sociedade. Não obstante, é comum que exerçamos o nosso raciocínio clínica e tomada de decisão sob o stress inerente à imprevisibilidade e pressão de tempo que são típicas da atividade médica. A imprevisibilidade e pressão de tempo são pervasivas nos Serviços de Urgência hospitalares e na consulta aberta e atendimentos complementares dos Cuidados de Saúde Primários. Contudo, não se esgotam nestes contextos, podendo surgir em virtualmente qualquer enfermaria, consulta programada e mesmo em serviços não assistenciais (como nas emergências de Saúde Pública). Muitas vezes, ainda acumulamos estas atividades, já de si complexas, com a orientação ‘em pleno vôo’ dos colegas médicos mais jovens em formação.

O contacto diário, próximo e prolongado ao longo do tempo, com pessoas em sofrimento, seus familiares e cuidadores, e o contacto regular e também próximo com vidas em risco e com a morte, afeta-nos emocionalmente. Por um lado, cuidamos por vezes de vários membros da mesma família, mesmo quando os problemas de saúde têm origem dentro dessa mesma família, exercendo um equilíbrio difícil entre confidencialidade, proteção dos mais vulneráveis, evicção de julgamento, imparcialidade e advocacia pelos vários pacientes envolvidos. Por outro, há inúmeras situações clínicas em que, não sendo possível eliminar o sofrimento, o nosso papel é apoiar e acompanhar os nossos doentes através desse sofrimento. O efeito emocional desta proximidade ao sofrimento prolonga-se para além do tempo de contacto direto com os nossos pacientes e mesmo para além do nosso tempo de trabalho.

A própria natureza do trabalho médico perturba a conciliação com a nossa vida familiar e social. Por um lado, não raro, o nosso direito a sair a horas do serviço conflitua com a dificuldade moral em dizer que não a pacientes que nos procuram, fora de horas, em dificuldades e em sofrimento. Por outro, somos sujeitos a trabalho por turnos, frequentemente longos, incluindo noites e dias de descanso e festivos. Estamos também sujeitos a trabalho suplementar obrigatório, cujo limite anual máximo é regular e largamente ultrapassado. Sem este trabalho suplementar para além do obrigatório, em muitos contextos não estaria assegurado o funcionamento do Serviço Nacional de Saúde. Alguns de nós estão ainda sujeitos a regime de disponibilidade permanente. Além do conflito com a vida pessoal e familiar, o trabalho suplementar realizado numa base regular e a disponibilidade permanente privam-nos do descanso físico. A carga de trabalho excessiva é um dos fatores determinantes do burnout (1), de maus resultados para a saúde dos nossos pacientes (2) e de intenção de abandonar a profissão médica (3).

Enquanto médicos, estamos também expostos a situações de violência profissional, risco este que as estatísticas têm mostrado estar em crescimento (4). Estas situações de violência incluem agressões verbais, ameaças de vária ordem e ataques físicos, por parte de pacientes ou seus cuidadores. A violência sobre os médicos está especialmente potenciada porque muitos utilizadores dos serviços de saúde, mais que quaisquer outros, se encontram em sofrimento, em situação de fragilidade física e/ou de perturbação mental. Mas os médicos também são particularmente expostos a estas situações devido às disfunções sistémicas dos serviços de atendimento, com escassez de profissionais e, em alguns casos, em instalações físicas precárias.

A saúde mental é especialmente crítica nos médicos. As pessoas com problemas de saúde mental têm por vezes dificuldade em assumir que precisam de ajuda, e em procurar essa ajuda, dificuldade que tem sido apontada como mais problemática entre os médicos. De acordo com a evidência disponível, a nossa profissão está associada a maior risco de burnout/esgotamento profissional (5), de stress pós-traumático e de suicídio (6). São fatores conhecidos como determinantes do burnout, para além da carga de trabalho, o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal e social (1). É uma área a manter sob muita atenção, porque os problemas de saúde mental dos médicos, além de serem um problema per se, podem afetar negativamente a saúde dos pacientes (7).

Por fim, mas não menos importante, o contacto presencial com pessoas doentes expõe-nos – a nós e às nossas famílias – a doenças infectocontagiosas. Este risco foi particularmente patente durante a pandemia de COVID-19, na qual muitos de nós viveram situações de isolamento pessoal e familiar ainda mais críticas que as impostas à restante população. No entanto, outras doenças infectocontagiosas, potencialmente graves, podem ser contraídas no decurso da atividade médica, tais como tuberculose, infeção por VIH ou hepatites víricas.

A penosidade associada ao nosso trabalho é apenas muito parcialmente reconhecida, nomeadamente possibilitando a isenção de trabalho noturno em geral e no SU em particular, a partir de determinadas idades e em certas condições de vida familiar e de doença. Mas falta reconhecer o especial desgaste e os riscos da nossa atividade em relação com a maioria dos restantes fatores e contextos. Por isso fui uma das 10.000 pessoas que assinaram a petição “Pela Qualificação da Profissão Médica como de Alto Risco e de Desgaste Rápido”. Há dois governos atrás, foi constituído um grupo de trabalho sobre o tema das profissões de desgaste rápido (8). Sob a coordenação da Direção-geral do Emprego e das Relações de Trabalho, este grupo foi incumbido de apresentar ao Governo um relatório com vista a futura legislação. Aguardo, impaciente, as conclusões deste grupo de trabalho relativamente à profissão médica. Precisamos de ficar vigilantes e ativos perante o processo legislativo que se seguirá.

Referências bibliográficas

  1. Meredith LS, Bouskill K, Chang J, Larkin J, Motala A, Hempel Predictors of burnout among US healthcare providers: a systematic review. BMJ Open. 2022;12:e054243. Available from: http://dx.doi.org/10.1136/bmjopen-2021-054243
  2. Dewa CS, Loong D, Bonato S, Trojanowski The relationship between physician burnout and quality of healthcare in terms of safety and acceptability: a systematic review. BMJ Open. 2017 Jun 1;7:e015141. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28637730/
  3. Owen K, Hopkins T, Shortland T, Dale GP retention in the UK: a worsening crisis. Findings from a cross-sectional survey. BMJ Open. 2019 Feb 1;9(2). Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/30814114/
  4. António Pedro Santos / Violência e saúde mental. Médicos entre 25 e 35 anos são quem mais pede ajuda. Diário de Notícias [Internet]. 2024 Oct 8 [cited 2025 May 21]; Available from: https://www.dn.pt/sociedade/violencia-e-saude-mental-medicos-entre-25- e-35-anos-sao-quem-mais-pede-ajuda
  5. Somville F, Van Bogaert P, Wellens B, De Cauwer H, Franck Work stress and burnout among emergency physicians: a systematic review of last 10 years of research. Acta Clin Belg. 2024;79(1):52–61. Available from: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/37889050/
  6. Dutheil F, Aubert C, Pereira B, Dambrun M, Moustafa F, Mermillod M, et Suicide among physicians and health-care workers: A systematic review and meta-analysis. PLoS One. 2019 Dec 1;14(12):e0226361. Available from: https://journals.plos.org/plosone/article?id=10.1371/journal.pone.0226361
  1. Nørøxe KB, Pedersen AF, Carlsen AH, Bro F, Vedsted Mental well-being, job satisfaction and self-rated workability in general practitioners and hospitalisations for ambulatory care sensitive conditions among listed patients: a cohort study combining survey data on GPS and register data on patients. BMJ Qual Saf. 2019 Dec 1;28(12):997–1006.
  2. DN / Grupo de trabalho sobre profissões de desgaste rápido sem consenso sobre conceito. Diário de Notícias [Internet]. 2025 Jan 29 [cited 2025 May 22]; Available from: https://www.dn.pt/sociedade/grupo-de- trabalho-sobre-profissões-de-desgaste-rápido-sem-consenso-sobre-conceito