Face às dores menstruais que enfrentava continuamente, Catarina Maia procurou ajuda médica, embora sem sucesso e com expressões de desvalorização sobre o padecimento. “Era mulher, estava a menstruar e as dores fazem parte. Era tudo ‘normal’. Não era”, enfatiza a autora na apresentação ao seu livro Dores Menstruais Não São Normais (edição Manuscrito). Nove anos após a sua primeira menstruação, Catarina foi diagnosticada com endometriose, uma patologia desconhecida e de difícil diagnóstico que afeta uma em cada dez pessoas que menstruam. Determinada a divulgar a doença, Catarina criou a página “O Meu Útero”, um espaço de partilha sobre a endometriose e de combate à normalização das dores menstruais.
À conversa com Catarina Maia, debruçamo-nos sobre temas como a prevalência desta condição, a sensibilização da comunidade médica e da sociedade no seu todo perante a endometriose. Procuramos também perceber o que determina o aparecimento da endometriose, como e onde procurar ajuda e quais os tratamentos para enfrentar a doença.
“A endometriose tem sido mais falada no último par de anos, mas continua a ser uma doença desconhecida. Faltam diagnósticos e faltam tratamentos”, sublinha Catarina, lisboeta, formada em Comunicação Social e Cultural, também autora do livro de 2020, Ilustrário do Amor Próprio. “Apesar da endometriose, abraçou um dos seus mais ambiciosos projetos da sua vida, a maternidade”, conta-nos a autora nas notas biográficas que acompanham o seu novo livro.
Catarina, antes de nos determos no seu livro, gostaria que nos apresentasse o seu projeto “O Meu Útero” e o que a levou à sua criação
O “Meu Útero” pretende ser um espaço para a consciencialização sobre a endometriose e para a exploração de temas que lhe são associados, como a menstruação, a sexualidade e a infertilidade. Decidi desenvolver este projecto através de um blogue, inicialmente, depois de me ter sido diagnosticada endometriose. Sempre sofri muito com o período e achei revoltante que não se falasse mais de uma doença tão frequente e tão pouco diagnosticada.
A que questões sobre a endometriose responde o seu livro?
O livro é um compêndio com a principal informação de que alguém que tem endometriose, ou que suspeita que possa ter, precisará. Exploro os sintomas, as formas de diagnóstico, os tratamentos existentes e partilho testemunhos de mulheres que lidam com a doença, bem como de profissionais de saúde que as tratam. O objetivo é que a informação seja clara e útil para quem se sente perdida após receber um diagnóstico e para quem quer perceber em que medida é que as dores menstruais não são normais, de forma a procurar ajuda.
O seu livro intitula-se Dores Menstruais Não São Normais. No entanto, na apresentação que faz à obra, diz-nos que durante anos os médicos desvalorizaram as suas queixas, o que nos leva a entender que as tomavam como normais. Porque desvalorizavam a questão?
Sempre tive dores horrendas durante a menstruação e a minha família achava normal. O meu médico achava normal. Então, eu nunca estranhei. Levei mais de dez anos a procurar proativamente por ajuda.
É importante encararmos a dor como um sinal de alarme. Pode ser o sintoma de uma doença que afeta uma em cada dez mulheres e pessoas transgénero que nasceram com vulva. Existem outros sintomas associados que ajudam os médicos a desconfiar mais ou menos da presença de endometriose – por exemplo, se a intensidade da dor aumenta progressivamente com o passar dos anos, se existem sintomas urinários, intestinais ou sexuais, se existem queixas durante a ovulação. Mas sendo a endometriose uma doença com uma prevalência tão alta, proponho que deixemos de normalizar a dor, para que os diagnósticos cheguem em tempo útil.
A sociedade em geral compreende o padecimento das mulheres com endometriose?
A normalização das dores menstruais é algo que temos muito presente enquanto sociedade. Não é estranho ter-se dor durante o período. Parece, aliás, desejável, uma vez que não ter dor é muitas vezes encarado como uma sorte. A endometriose tem sido mais falada no último par de anos, mas continua a ser uma doença desconhecida. Faltam diagnósticos e faltam tratamentos. O Estado deveria agir para que as mulheres tenham acesso a tratamentos comparticipados e isso não acontece.
Sempre tive dores horrendas durante a menstruação e a minha família achava normal. O meu médico achava normal. Então, eu nunca estranhei.
Quais os principais mitos que prevalecem sobre a endometriose?
Existe muito a ideia de que é uma doença de mulheres mais velhas, perto dos 40 anos, e hoje sabe-se que isso não é verdade. A endometriose também não significa sempre infertilidade; cerca de 30% a 50% das mulheres com endometriose são inférteis, e cerca de metade das mulheres que lidam com infertilidade aparentemente injustificada têm a endometriose como causa. Outro mito muito frequente é que a intensidade da dor corresponde à gravidade da doença. Curiosamente, nem sempre é assim. Há quem tenha um estádio avançado da doença e seja assintomática, por exemplo.
É usual escutar-se que a endometriose desaparece após a primeira gravidez. A Catarina é mãe. As dores e desconforto desapareceram?
A endometriose é uma doença crónica sem cura. Recomendar uma gravidez como tratamento para sintomas debilitantes acontece com frequência e é perverso. Em primeiro lugar, porque é falso. A gravidez não trata a endometriose. Depois, porque ter a responsabilidade de cuidar de uma criança com as dores que esta doença traz não é justo para ninguém. Existem casos em que de facto as dores menstruais suavizam depois de uma gravidez, mas nem sempre é assim. No meu caso, por exemplo, não foi.
O que pode ser feito em prol, por exemplo, de mulheres no ativo a padecerem de endometriose de forma a melhorar a sua condição?
Quem sofre de endometriose precisa urgentemente de ter acesso a tratamentos, e são vários os tratamentos que existem: medicação, fisioterapia, nutrição, psicoterapia são só alguns deles. É necessário que haja apoio a quem não pode trabalhar durante determinados dias do mês, como é o caso de uma licença menstrual para quem sofre de uma doença. Mas antes de tudo isto, é preciso que os diagnósticos aconteçam e chegaremos lá através de maior consciencialização social e melhor formação dos profissionais de saúde.
Como estamos em Portugal no que respeita a literacia menstrual?
Noto que existe maior espaço, interesse e vontade para se falar sobre menstruação e isso deve ser celebrado. Ainda estamos longe do ideal, mas o progresso tem sido positivo. É preciso que a informação sobre o que é o período e o que não é chegue a toda a gente, não só a quem menstrua. Pais, tios, amigos, primos, professores (e médicos!) lidam com mulheres, acompanham mulheres, cuidam de mulheres e devem também ter as ferramentas necessárias para poder providenciar-lhes o apoio de que necessitam. Eu defendo que esse trabalho deveria começar na escola.
Noto que existe maior espaço, interesse e vontade para se falar sobre menstruação e isso deve ser celebrado. Ainda estamos longe do ideal, mas o progresso tem sido positivo.
São conhecidas as causas da endometriose, ou não há consenso?
Não existe consenso sobre o que poderá causar endometriose. A maioria dos académicos acredita que possa ter que ver com sangue menstrual que, em vez de ser expulso durante a menstruação, retrocede e implanta-se noutras partes do corpo. Mas esta teoria falha em explicar os raros casos de endometriose em homens ou em mulheres que nascem sem útero. Há quem defenda que nascemos com ela, o que para mim faz mais sentido, se bem que fatores ambientais também terão o seu papel.
Há fatores de base que influam na manifestação da endometriose?
Sabe-se que há um perfil que é mais propício a ter endometriose, mas é uma área ainda em descoberta. Sabe-se que quem tem casos de endometriose na família, por exemplo, mãe, tia, irmã ou prima, tem muito maior probabilidade em ter a doença. Também se sabe que, regra geral, estilo de vida e saúde mental desempenham um papel muito importante na gestão dos sintomas.
Refere a questão do estilo de vida. Este pode influenciar o agravamento da endometriose?
Calcula-se que stress prolongado possa ter impacto na doença. Mas na maioria das situações, a relação que se estabelece é com o os sintomas. A alimentação pode contribuir para reduzir a inflamação do organismo e o exercício físico promove sensação de bem-estar, além de conferir maior mobilidade a quem sofre de dor crónica. Está demonstrado que, por exemplo, o consumo de álcool têm relação direta com um agravamento dos sintomas. Mas isso também pode dever-se ao facto de que quem mais sofre com os sintomas recorrer ao álcool para encontrar alívio momentâneo ou para tentar lidar com o sofrimento.
Encontramos evidências científicas que comprovem o benefício de uma alimentação equilibrada na atenuação das manifestações da endometriose?
Não existe evidência científica sólida mas sabe-se que o intestino de quem tem endometriose não tem um microbioma tão rico como o de uma pessoa saudável e as escolhas alimentares podem alterar isso. Além disso, a alimentação pode regular os níveis hormonais e o nível de inflamação do organismo. Existem sobretudo relatos das próprias mulheres que sofrem com endometriose e de nutricionistas que as acompanham e costumam ser muito positivos. Em 2020, foi publicado um artigo científico* que reviu todos os estudos feitos sobre nutrientes que têm potencial de tratar os sintomas da doença ou travar a sua progressão. Eu peguei nesse estudo e preparei uma secção do livro em que explorei cada nutriente de acordo com as suas propriedades e os que alimentos se encontram. Em teoria, procurar incluir aqueles alimentos na nossa dieta terá um efeito positivo dos sintomas.
Qual o melhor conselho que a Catarina pode dar a uma mulher que padeça de endometriose?
Não consigo deixar um conselho geral, mas desejo muita força, lembro que somos muitas e que estamos juntas.
*Huijs E. & Nap A., The effects of nutrientes on symptoms in women with endometriosis: a systematic review. Reproductive BioMedicine Online, 41(2), 317-328.
Entrevista realizada por escrito em outubro de 2022.
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