Para a poeta e pintora Cláudia R. Sampaio, esta oportunidade que o MAAT deu aos artistas do Manicómio é “muito rara e importante e, até, revolucionária”; “é de louvar e admirar”. O que acontece normalmente – observa a autora de “Carro-Céu” – é uma retrospetiva com artistas de outro tempo; mas, no MAAT, até 26 de agosto, podemos encontrar “artistas contemporâneos, muitos no início da sua carreira”.

Naquele espaço em Belém, “podemos encontrar a arte contemporânea pura e dura” dos artistas Anabela Soares, Cláudia R. Sampaio, Filipe Cerqueira, Joana Ramalho, Micaela Fikoff e Pedro Ventura, e “todo o tipo de obras, em vários media”. “É uma exposição para recordar o valor que as pessoas têm, é uma exposição para dizer que a doença mental existe, é uma exposição para dizer que as pessoas não são a sua doença, mas também é um lado ativista nosso e o culminar deste trabalho todo durante estes muitos anos” (vinte anos de trabalho no Júlio de Matos e cinco do Manicómio), explicou o curador, Sandro Resende. “Acima de tudo, é para não esconder que existe e assumir que se pode fazer coisas muito boas mesmo tendo uma doença mental. Portanto, estamos aqui a ‘santificar’ e ‘glorificar’ o valor da pessoa, a dignidade humana, a dignidade social, a dignidade artística.”

Na “Procissão. Louvar e Santificar”, Cláudia apresenta-nos algumas madeiras pintadas num carrossel que está sempre a girar: “uma metáfora de como funcionam pensamentos que por vezes podem ser obsessivos; que não param”. Mas as suas pinturas não falam apenas de doença mental. “Falam mais de um percurso, falam de histórias, falam de leveza em contraste com algo mais sombrio.”

“Eu tenho uma pintura muito do subconsciente. Ou seja, normalmente não sei o que vou pintar, ao contrário de muitos artistas, que fazem um plano. A minha área até é mais a escrita – a poesia –, então o meu interesse na pintura desenvolveu num sentido do subconsciente, de descobrir através da pintura coisas da minha cabeça, e é quase como se eu só decifrasse depois de já estar pintado. E como tenho também esse lado da poesia, muitas vezes há essa mistura na minha pintura. No MAAT acontece isso: há alguns versos espalhados no meio da pintura, que por vezes também são do subconsciente”, revelou Cláudia R. Sampaio.

A pintura “é um gesto muito automático” que traz a Cláudia “alguma leveza”. “Daí as minhas pinturas serem muito coloridas, mesmo que por vezes falem de temas mais sombrios. (…) A escrita torna-se mais difícil. Talvez eu sinta mais responsabilidade quando escrevo. Não que não sinta responsabilidade na pintura, mas há uma certa responsabilidade na escrita talvez pelo meu percurso e porque sinto que é onde aparece um eu mais profundo. Talvez me expresse melhor através da poesia.” “Mas são as duas muito importantes para completarem a minha forma de me expressar ao mundo”, concluiu.

Cláudia não imagina um mundo sem arte, responsável por fazer de nós “mais humanos”, por resgatar o nosso lado “mais espiritual, o lado mais da alma, o nosso lado mais sensível”. “Sempre soube a importância da arte nesse sentido de que a boa arte ou uma arte bem comunicada pode atingir as pessoas e fazê-las parar para olhar para o seu lado mais íntimo. Tirar-nos do lado mais animal e instintivo para nos tornar mais humanos. Então, talvez eu saiba a importância de que, quando faço arte, posso pôr as pessoas num lugar de se procurarem mais nas pequenas coisas do dia a dia, nas pequenas coisas do amor – porque o amor pode estar em muitos sítios, em muitos gestos, em muitas pequenas coisas à nossa volta.” Na sua arte, Cláudia fala “sempre sobre amor”, “nesse sentido de o amor e a poesia poderem estar sempre ao nosso redor, mesmo quando não estamos a ver. E nesse sentido cabe muito coisa. Falo das preocupações da minha cabeça também, que serão certamente parecidas com as de outras pessoas.”

Cláudia é uma das artistas do Manicómio. Com cinco anos de existência, o Manicómio conta com 14 artistas residentes e continua a ser um projeto de arte, mas tem crescido na sua vertente ativista com vários projetos, como as Consultas sem Paredes. “São consultas dadas em espaços museológicos a um preço muito baixo, de psicologia, psiquiatria e terapia. Permite que todas as pessoas possam ter consultas privadas a um valor baixo, o que é fantástico. Começámos há cerca de dois ou três anos com um projeto pioneiro com dois médicos, que neste momento já são cerca de 40. Trabalhamos muito o lobby positivo, dentro do governo, nas boas práticas da saúde mental, que eu acho muito importante. Temos um projeto chamado ‘Nós os Loucos’, em que criamos ateliês de arte em hospitais públicos e privados. Fazemos também um trabalho de agência de design com pessoas que têm problemas de saúde mental, trabalhando com várias empresas. (…) Portanto, o trabalho do Manicómio passa não só pela arte, mas por toda a ativação do valor da pessoa, que é muito importante para mim e para toda a gente dentro do Manicómio”, partilhou o fundador, Sandro Resende.

Em Portugal, na questão da saúde mental, “tem havido bastantes progressos”. “Como eu costumo dizer muitas vezes, estamos no nosso 25 de abril agora, e acho que podemos ir cada vez mais longe se nos juntarmos todos e trabalharmos da mesma forma. (…) Neste momento, acho que estamos num bom caminho. O Manicómio tem uma ótima projeção internacional, também pelo trabalho artístico que fazemos, e acho que isso é muito importante. Vai trazer dignidade às pessoas, e dignidade em todos os sentidos, até financeira, que é muito importante. É um caminho difícil, mas estamos a consegui-lo abrir, e esperamos que toda a gente consiga também, dentro das suas formas de trabalhar, e que consigamos ir mais longe todos juntos para que este estigma finalmente desapareça”, afirmou Sandro Resende.

“Acho que estamos muito atrasados, há muita coisa para fazer, apesar de, obviamente, haver melhorias”, disse Cláudia Sampaio quando questionada sobre o seu país. “Sinto, sem dúvida, que ainda há muito estigma, mas o estigma vem sempre da ignorância, e a ignorância vem da falta de educação no sentido de se dar a conhecer mais às pessoas sobre o assunto. Se muitas delas ainda nem sequer sabem o que é uma doença mental, como é que ela se manifesta, que todos nós podemos ter uma ao longo da nossa vida, automaticamente o estigma continua e os passos dados não são suficientes. Talvez, para melhorar, a minha visão mais utópica fosse de que essa educação estivesse desde cedo na vida de um humano. Desde a escola primária, falar da importância de fazer terapia, dar-se a conhecer através de alguma disciplina escolar o que é saúde mental e doença mental, para que as pessoas pudessem crescer desde sempre com esse conceito mais interiorizado – de que isso existe, de que pode acontecer a qualquer um e de não fugirem quando isso acontece na vida delas ou na vida de alguém próximo. Porque mesmo as pessoas mais conscientes disso, mesmo as pessoas que se esforçam para saber sobre isso, se não vivem elas próprias a doença mental, muitas vezes não sabem lidar com a doença mental dos que lhes são próximos”, contou Cláudia.

“Não é que as pessoas todas tenham que saber, porque não são terapeutas, não são psiquiatras, mas quanto mais falarmos sobre isso, mais elas poderão estar conscientes de que é preciso ajudar ou é preciso ter tanta empatia como com outra doença mais a nível físico. Porque às vezes até é só uma questão de falta de empatia; mas isso vem sempre do desconhecimento, penso eu. Daí a importância de haver mais pessoas como as do Manicómio e de outras instituições e associações parecidas em Portugal que façam esse trabalho de continuar a falar sobre o assunto sem medo. É a única forma, por mais que seja difícil e por mais que isso possa ter um impacto negativo nas nossas vidas”, referiu a poeta.

HN/Rita Antunes