Em entrevista exclusiva ao nosso jornal, Patricia Calado, Head of Clinical Innovation at NTT DATA Portugal, destaca a necessidade de maior reconhecimento dos Centros de Investigação Clínica, enfatizando a importância da literacia em saúde, autonomia institucional, colaboração com Associações de Doentes e transformação digital no setor
Healthnews (HN) – O Barómetro de Inovação Clínica revelou que 63% dos inquiridos considera que o papel estratégico dos Centros de Investigação Clínica (CIC) não é devidamente reconhecido pela sociedade. Na sua opinião, quais são as principais razões para esta falta de reconhecimento e que medidas podem ser tomadas para reverter esta situação?
Patricia Calado (PC) – As razões são certamente várias, mas foco duas em particular. A sociedade em geral não tem uma compreensão clara sobre o impacto da investigação clínica na saúde, na economia e no desenvolvimento científico, o que cria necessariamente distanciamento. Por outro lado, os avanços trazidos pela investigação clínica, como novos medicamentos e terapias, não são diretamente associados ao trabalho dos CIC. Como tal, diria que há um desconhecimento generalizado sobre o papel dos diferentes intervenientes no processo.
Dou exemplos de medidas para reverter esta situação na resposta seguinte, pois as perguntas estão relacionadas (a falta de reconhecimento do papel dos CIC pela sociedade resulta também da baixa literacia em saúde).
HN – O estudo aponta para um reduzido investimento na promoção da literacia em saúde da população. De que forma é que um maior investimento nesta área poderia beneficiar os CIC e a sociedade em geral?
Sem surpresas, o estudo torna evidente a necessidade de investimento em literacia em saúde. Há várias formas de trabalhar este objetivo e o aumento da literacia terá um impacto direto no reconhecimento dos CIC pela sociedade e, mais importante, na melhoria dos indicadores de saúde da população.
É possível criar iniciativas que expliquem de forma simples e acessível o que são os CIC, o seu papel no avanço da medicina e os benefícios tangíveis para os doentes e a sociedade. Exemplos incluem eventos abertos ao público, documentários curtos e campanhas nas redes sociais. Também seria interessante estabelecer parcerias com meios de comunicação para destacar histórias de sucesso, avanços científicos e benefícios diretos resultantes da investigação conduzida nos CIC.
HN – Apesar de os CIC reconhecerem uma elevada autonomia na definição da estratégia e de indicadores de desempenho, o mesmo não se verifica na contratação de recursos humanos e na atribuição de incentivos aos profissionais. Quais são os principais entraves à autonomia dos CIC nestas áreas e que soluções poderiam ser implementadas para ultrapassar estas barreiras?
O maior entrave apontado à autonomia dos CIC no que respeita a recursos humanos é a vinculação às regras institucionais. Quase todos os CIC estão integrados em hospitais públicos, o que os submete às normas de contratação e gestão de recursos humanos dessas instituições. A contratação de profissionais qualificados é dependente de processos burocráticos e morosos e a falta de autonomia financeira dos CIC dificulta a capacidade de resposta rápida às exigências dos estudos clínicos. A dificuldade em contratar, em oferecer incentivos financeiros e em criar condições para progressão na carreira resulta em pouca atratividade e perda de profissionais qualificados.
No início do ano de 2024 foi publicado um despacho (Despacho n.º 1739/2024, de 14 de fevereiro) que determina um conjunto de medidas tendentes à adoção de formas organizativas, que dotam de maior capacidade e autonomia os centros de investigação clínica que funcionam no âmbito das unidades de saúde, do Serviço Nacional de Saúde. Passaram ainda poucos meses para que se consiga avaliar eventuais melhorias na autonomia dos CIC como resultado deste Despacho, mas será essencial manter monitorização para avaliação destas medidas.
HN – O novo enquadramento legal dos CIC (Despacho n.º 1739/2024, de 14 de fevereiro) não parece gerar confiança quanto ao aumento do grau de autonomia das instituições. Na sua perspectiva, que alterações deveriam ser introduzidas neste enquadramento legal para garantir uma maior autonomia dos CIC?
Remeto para a resposta acima. Passaram ainda poucos meses para que se consiga avaliar eventuais melhorias na autonomia dos CIC como resultado deste Despacho, mas será essencial manter monitorização para avaliação destas medidas.
HN – O Barómetro evidencia uma elevada cooperação dos CIC com a Indústria Farmacêutica, mas uma reduzida colaboração com as Associações de Doentes. Que fatores contribuem para esta discrepância e de que forma é que uma maior colaboração com as Associações de Doentes poderia beneficiar a investigação clínica?
A elevada cooperação dos CIC com a Indústria Farmacêutica é um resultado expectável. As empresas farmacêuticas são as principais promotoras de ensaios clínicos, a base da atividade dos CIC, o que resulta necessariamente numa relevância operacional e económica destas colaborações. Infelizmente, muitas Associações de Doentes têm recursos humanos e financeiros reduzidos, dificultando uma interação mais estruturada com os CIC e limitando a capacidade de contribuição prática em projetos complexos. Por isso mesmo, seria muito relevante desenvolver iniciativas ou plataformas a nível nacional para promover interações regulares entre os CIC e Associações de Doentes.
Há inúmeros benefícios resultantes da proximidade dos CIC às Associações de Doentes, nomeadamente porque podem ajudar os CIC a desenhar ensaios que considerem as necessidades reais dos pacientes, melhorando a relevância clínica e a adesão aos estudos. Também na questão do recrutamento, uma das grandes dificuldades sentidas pelos CIC, as Associações de Doentes podem atuar como aliados estratégicos no recrutamento e retenção de participantes, pois têm acesso direto a comunidades de doentes, especialmente para doenças raras ou difíceis de identificar.
HN – Apesar de 42% dos CIC avaliarem o seu nível de digitalização como elevado ou muito elevado, 29% ainda consideram o seu nível de digitalização como baixo ou muito baixo. Quais são os principais desafios enfrentados pelos CIC no processo de transformação digital e que medidas podem ser tomadas para acelerar esta transição?
A encabeçar a lista de desafios à transformação digital nos CIC encontra-se uma lacuna significativa em termos de formação e capacitação de recursos humanos para operar e otimizar o uso de tecnologias avançadas. A isto se alia geralmente alguma resistência à mudança – a transição digital pode enfrentar barreiras culturais, com profissionais habituados a métodos tradicionais que hesitam em adotar novas ferramentas e processos. Por outro lado, temos o desafio da falta de financiamento dedicado; a implementação de tecnologias digitais, como sistemas de gestão de ensaios clínicos (CTMS) e ferramentas de captura eletrónica de dados (EDC), exige investimentos significativos, muitas vezes indisponíveis nos orçamentos dos CIC. A fragmentação de sistemas informáticos é outro desafio, porque muitos CIC utilizam plataformas e processos desconectados, o que resulta em duplicação de esforços, maior risco de erros e dificuldades na integração de dados.
Para acelerar a transformação digital dos CIC é de grande utilidade a criação de um roadmap estratégico, ou seja, um plano claro e de longo prazo para a transformação digital, alinhado com as características e objetivos dos CIC. Em paralelo, é essencial assegurar financiamento específico para a aquisição e implementação de sistemas digitais, com foco em ferramentas essenciais como CTMS, EDC e plataformas de telemedicina para ensaios descentralizados. Todo o processo deve ser alavancado em formação contínua, com programas regulares de capacitação para os profissionais dos CIC, garantindo que estão preparados para operar sistemas digitais e para se adaptarem a novas tecnologias. Julgo que seria muito interessante para os CIC equacionarem trilhar este caminho apoiados em parcerias estratégicas, nomeadamente através da colaboração com empresas de consultoria e tecnologia, startups de saúde digital e organizações governamentais para desenvolver soluções customizadas e acelerar a implementação de ferramentas digitais.
Entrevista MMM
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