O amor é poluente, dizia ele. Liberta-lhe um sem número de substâncias no organismo que o fazem perder o bom senso e todo aquele mau feitio que carrega faz anos. Inunda-lhe o corpo de tóxicos que o fazem perder a compostura e sucumbir o adulto que demorou anos a construir. O amor troca-lhe o labor pelo infantário. Exalta-lhe a criança que sempre foi e a pureza que esconde diariamente pelas defesas que se forçou a ter, para subsistir. O amor faz com que viva ao invés de que, apenas, sobreviva. E atemoriza-o. Todas aquelas palpitações e descargas de adrenalina são fruto de um organismo assustado por se permitir ser, com uma total ausência de protecção. É um acto de ousadia dar o corpo às balas e enfrentar o sentimento sem paládio. É como se partisse para uma guerra de afectos desnudo e saísse de lá vitorioso, por dar sempre mais do que recebeu.
O amor é poluente, dizia ele. Não se permite reciclar e acumula-se. Flutua às intempéries e uma maré mais revolta traz o que ele, há muito, já tinha atirado para longe. "Como aquela garrafa" - ria-se. Aquela que mandou ao mar com uma mensagem, da qual até hoje não se sabe o conteúdo. Identifica-se com o objecto porque ambos são um depósito de bebidas destiladas e ambos se perderam. O aquecimento global está a matar o romantismo, assim como a internet está a aniquilar a carta.
O amor, ao mesmo tempo que manda em nós, ludibria-nos e faz-nos sentir no controlo
O amor é poluente, dizia ele. E complacente, ou não andasse de mãos dadas com o ódio, oscilando ambos pela permissão. Afirmava que tal sentimento era feito de plástico - por isso é que o ódio nunca se decompôs. Para sermos assertivos e rigorosos, se calhar até se decompunha, mas a um ritmo tão lerdo que sabia não estar cá para o ver extinto. Já ele, sim, desfazia-se pouco a pouco, enquanto o ódio o permitisse. Quem amou, dizia, torna-se num espelho do que já foi, como um antípoda do passado. Procurar o amor desrespeita-o. Como se fôssemos superiores ao sentimento que nos move. Chega a ser infantil pensar que nos conseguimos suplantar, como se alguma vez tivéssemos estado no comando.
O amor, ao mesmo tempo que manda em nós, ludibria-nos e faz-nos sentir no controlo. Essa falsa sensação de poder é que nos esbarra a toda a velocidade nas paredes de um miocárdio cansado de infrutíferas sístoles e diástoles. "Tinha um coração grande"- gabava-se, precedendo todo aquele cansaço. Se correlacionava com a sua alma bondosa, benevolente e compassiva, cedo se apercebeu de que mais depressa se correlacionava com uma cardiomegalia que lhe impedia que o músculo cardíaco ejectasse o sangue com a força necessária para suprir as necessidades daquele corpo, já de si, cansado. Daí aquela falta de ar quando a via, a fraqueza e o cansaço para pequenos esforços como sorrir. O desmaio precedia aquela morte súbita que já teve há anos, pouco depois de se terem conhecido e da vida se ter encarregado de os tornar estranhos. A má perfusão cerebral salvara-o. Obnubilado dizia sentir-se melhor e alheio da realidade, como se fugir dos problemas o salvasse daquilo em que se tornou. O amor não se procura. Ele encontra-nos, por norma desprevenidos, e é nesse descuido que nos ganhamos.
O amor é poluente, dizia ele. Repeliu-lhe a paixão e permutou-lhe a agitação pela estabilidade. Ninguém apaixonado consegue lidar com a acalmia do amor, menos ainda numa era digital em que tudo é descartável. Ninguém o preparou para o amor, para a transição da incontrolada paixão num novo e ponderado sentimento.
E culpa-os, a todos. A começar por ti, que não o alertaste. "Deixou de gostar"- pensou, quando se deparou com uma total ausência de estímulo. Nunca se culpou porque nem sabe o que lhe aconteceu.
O amor não é nada poluente, diz ele. É o seu mais bonito ponto fraco e acha absurdo conspurcar-se sentimentos. O amor é. Pelo menos, enquanto nos permitirmos ser.
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