Alberto Caeiro dizia que "pensar incomoda como andar à chuva", sem fazer ideia de que poderíamos dormir ao relento pela especulação imobiliária que se avizinhava. Hoje em dia, alugar uma casa obriga a ponderar entre ter um tecto, evitando patologias que advêm da exposição ao frio, ou ter dinheiro para alimentação, o que nos permite, pelo menos, viver e ter saúde para nos permitir adoecer.
Viver num T0 ao preço de um T100 é prejudicial à saúde. Viver sentado em cima da cama-sofá-mesa-hall-de-entrada enquanto se cozinha-janta-vê-televisão-dorme, diminui o exercício diário, aumentando o sitting-time e o sedentarismo. Dizer que faz mal ao colesterol é mentira: faz bem, porque aumenta-o e o colesterol é narcisista. Quem criou o conceito de kitchenette deve ponderar um WCnette, por forma a integrar a casa de banho na sala promovendo, assim, uma vista privilegiada da poltrona para o jantar. Desta forma, encurtam mais uns metros quadrados àquele espaço diminuto e inflaccionam mais o preço, refugiando-se no último grito da arquitectura. O problema desta arquitectura gritante é que acorda todos menos a quem de direito, tornando a especulação imobiliária galopante. Diz quem habita num T0 que são as casas com o melhor odor do mercado. Não havendo, concomitantemente, um espaço para o inquilino e para a ventosidade intestinal, um deles será obrigado a sair.
Existindo especulação imobiliária naqueles tempos, percebe-se porque é que o Geppetto e o Pinóquio alugaram o bucho de uma baleia e acabaram expulsos pelo senhorio
Se nos desenhos animados de outrora se vivesse este tempo de inflacção, creio que o enredo seria diferente. Muito provavelmente, quando o Aladino esfregasse a lâmpada, não saía de lá nada. O Génio já teria sido despejado do seu mísero T0 por falta de pagamento da renda. Na melhor das hipóteses saía de lá um estrangeiro a dizer que a lamparina tinha sido comprada para ser reabilitada, com o intuito de fazer um hostel, ou um vigarista que se apropriou da lamparina por usucapião. O Génio seria forçado a deixar de exercer a sua arte, teria de se inscrever no centro de emprego e, enquanto mandava currículos para empresas de bicos de Bunsen, aproveitava para ganhar uns trocos como cartomante na Baixa.
O caso do Pinóquio seria diferente. Começou por ser esculpido do tronco de uma árvore pelo carpinteiro Geppetto, nascendo como um boneco de madeira que sonhava ser um menino de verdade. O que hoje seria um transtorno de identidade de género, antigamente era o mote para um filme infantil. Existindo especulação imobiliária naqueles tempos, percebe-se porque é que o Geppetto e o Pinóquio alugaram o bucho de uma baleia e acabaram expulsos pelo senhorio. Se há o rumor da falta de pagamento de rendas, há também o rumor de que, no contrato, estava explícito que não poderiam ter animais, devido às alergias do proprietário. Consta-se que o Pinóquio terá feito uma birra de um menino de verdade e terá levado o seu gato Fígaro, desencadeando o despejo.
Já o Peter Pan não conseguiria alugar casa por ser um garoto mimado. É conhecido por ser um pequeno rapaz que se recusa a crescer, passando a vida a ter aventuras mágicas. No fundo é mais um jovem que consome cogumelos mágicos, cujas propriedades alucinógenas o fazem crer que está sempre no Boom Festival, apesar de passar o dia aos saltos no café central da sua aldeia. Acredita estar na Terra do Nunca o que não é, de todo, mentira: nunca vai sair de casa antes dos quarenta, nunca vai conseguir arranjar emprego e, por este andar, nunca vai ter reforma. Mas, em boa verdade, nem ele, nem nós.
Quanto à Pequena Sereia, uma bonita princesa que sonhava tornar-se humana (o que, no fundo, é o mesmo que sonhamos para os toureiros), todo o seu enredo resumir-se-ia a estas dificuldades financeiras em arrendar casa. Como é sabido por todos, Ariel é uma sereia de dezasseis anos que está insatisfeita com a vida no mar. À luz da conjuntura actual, é fácil percebermos que se trata de alguém que renega as suas origens. Só não vê quem não quer que isto é uma metáfora da vida de uma rapariga das Caxinas, que está farta do trabalho no porto pesqueiro. Quer estudar fora e ter uma vida académica e vê-se impossibilitada pelos preços exorbitantes de um quarto em Coimbra.
Julgo que, no mínimo, deviam refazer-nos a infância. É que, com o andar da carruagem, pouco falta para pagarmos IMI por sonhar.
Comentários