Em período de quarentena, há quem argumente que o dia de hoje teve muito do dia de ontem. Há uma repetição da rotina que me força o pleonasmo. O acordar é idêntico, as zonas da casa repetem-se, os programas de televisão viciam-se e o sono, esse, nem sei se vem ou se esteve sempre presente.
Se fosse o governo a mandar dentro da casa de cada um, provavelmente protelava um ou dois banhos. Argumentaria uma coisa qualquer com palavras imperceptíveis, que teríamos de acatar. Misturaria Lay Off com formulário, economia com recessão, crédito com protelar, emergência com ficar em casa e poder sair quase sempre. Diríamos que sim e, muito provavelmente, dois banhos seriam protelados sob a premissa de não ser necessário higienizar o corpo com tanta frequência. António Costa seguiria para as televisões, argumentando que para os banhos dos portugueses, “até agora não faltou nada e não é previsível que venha a faltar”. O Presidente da República diria que ninguém vai mentir a ninguém e nós assistiríamos a isto, todos porcos, no meio da imundice a que fomos sujeitos.
De repente, tomar diariamente banho poderia ser visto como um luxo. Uma prática que, feita de forma preventiva, elimina a sujidade e pode prevenir a doença, essa moléstia que nos pode comprometer a vida (vejam bem!).
É quase tão ridículo como estar na linha da frente a combater uma pandemia, e ter de reutilizar material descartável. Isto quando há o luxo deste existir, claro.
É que chega a ser mimo mudar o material de protecção várias vezes ao dia. Estamos em contenção, caramba. Parece-me mais útil criarmos uma corrente para tricotar máscaras e ajudar um Estado que precisa, uma vez mais, do nosso auxílio. A falsa ideia de protecção vende, quando muito porque pessoas falsamente protegidas são pessoas que não reivindicam protecções adequadas e é dinheiro que se põe ao bolso. Reutilizar material conspurcado propaga aquilo que tentamos combater, mas a contaminação não é contemplada em fotografias e, uma vez mais, é dinheiro que se volta e meter ao bolso.
Dentro das medidas do “até agora não faltou nada e não é previsível que venha a faltar”, julgo que o próximo passo a tomar, ao invés de ser disponibilizado material de protecção, será uma remessa de rolos de fita-cola, remendos de sapateiro, cimento cola, carrinhos de linhas e dedais – porque a protecção está em primeiro lugar. Os profissionais de saúde serão contactados pelos altos quadros do AKI para fazerem equipas e se revezarem na bricolage, para arranjarem alternativas a remendar o pouco material que lhes resta. Serão, posteriormente, contactados pelo IKEA, de onde serão enviadas máscaras e luvas desmontadas para um grupo de médicos e enfermeiros, em amena cavaqueira, as montarem. Mas mantendo as regras básicas de segurança (que estão sempre em primeiro lugar, claro!): nunca usar o berbequim, porque é sabido que estraga o contraplacado.
A sorte é que, até agora, não faltou nada e não é previsível que venha a faltar. Por ora, resta-nos reutilizar e (uma vez mais) improvisar, porque o que temos mais agora é tempo.
Carlos Vidal é médico e humorista e escreve no SAPO Lifestyle às sextas-feiras.
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