Por que é que a relação médico-doente é tão importante?
Primeiro porque o processo terapêutico implica, na grande maioria das situações, a exposição de aspetos privados do doente, sejam da vida pessoal, sejam aspetos relacionados com a própria fisicalidade.
Em segundo lugar, o doente está sempre numa posição frágil, pelo que precisa de confiar no médico e tem o direito a ser tratado de forma humana e respeitosa.
Pode dar um exemplo?
Se o médico não respeitar o doente como um ser humano fragilizado e com direitos, o próprio doente sente-o claramente e deixa de confiar. A relação deve ser entre parceiros iguais, em que o médico explica a situação ao doente em linguagem que este entenda e encoraja o doente a participar nas decisões terapêuticas, mostrando claramente as escolhas possíveis, se as houver.
O médico é quem pode explicar, com precisão e numa linguagem que o doente entenda, a natureza da doença e a razão da terapêutica, assim como as complicações a que deve estar atento
O médico tem um papel fundamental na adesão terapêutica?
Claro, duas das maiores causas da não adesão à terapêutica são a má comunicação entre o médico e o doente e a falta de confiança do doente na prescrição do médico, o que muitas vezes resulta apenas do facto de o doente não ter sido envolvido no processo.
Por exemplo, um doente a quem foi diagnosticada diabetes pode não entender que é uma doença crónica e que a terapêutica é para o resto da vida. O médico é quem pode explicar, com precisão e numa linguagem que o doente entenda, a natureza da doença e a razão da terapêutica, assim como as complicações a que deve estar atento.
A eficácia de um tratamento pode ser influenciada por essa relação?
Muito. A adesão à terapêutica depende, criticamente, da confiança depositada no médico. Uma boa relação médico-doente inclui uma explicação detalhada do porquê do tratamento e a oportunidade de o doente poder escolher o tipo de tratamento quando possível. Há ainda o efeito "placebo" de todos os tratamentos, especialmente dos medicamentos. Independentemente do efeito real de qualquer medicamento, há sempre um efeito que depende da forma como o doente acredita nos resultados, que é cerca de 20% do efeito.
Os médicos saem das universidades preparados para falar com os doentes?
Os últimos anos têm sido acompanhados pela perceção clara de que é fundamental munir os futuros médicos com competências comunicacionais. Na grande maioria das escolas médicas em quase toda a Europa fala-se muito da comunicação médico-doente, mas pouco se faz concretamente para garantir que os recém-formados saem das escolas munidos dessa capacidade, nem estão instalados processos para aferir a capacidade de comunicação. A ênfase é quase sempre aferir apenas os conhecimentos teóricos.
Muitos aspetos da comunicação, como a empatia, a capacidade de ouvir sem interromper, a capacidade de sintetizar a situação em linguagem sem jargão, etc., são qualidades que muitas pessoas possuem desde tenra idade e simplesmente não são testadas nos candidatos para estudar medicina na grande maioria das faculdades. E é reconhecidamente difícil, ou mesmo impossível, os alunos adquirirem essas capacidades através de aulas convencionais.
Na Universidade do Algarve, os novos estudantes são selecionados por meio de um sistema de minientrevistas múltiplas, com eficácia comprovada, que identifica os candidatos com melhores competências comunicacionais. Depois, em workshops de comunicação, os alunos praticam (e avaliam-se mutuamente), em sistema de role-play, a comunicação com: adolescentes, idosos, colegas, outros profissionais de saúde, etc. A capacidade de comunicação com doentes e com colegas é avaliada durante todo o curso, por meio de testes do tipo Objective Structures Clinical Examination (OSCES).
Acha que os alunos saem formatados para fazer perguntas fechadas que não dêem trabalho a responder/interpretar?
No caso do curso de medicina da Universidade do Algarve, os alunos são formados e treinados para utilizar questões abertas e fechadas, pois ambas as formas são essenciais e complementares para se estabelecer uma comunicação eficaz e eficiente.
Por exemplo, na entrevista clínica ou colheita de história clínica, é fundamental iniciar com uma questão aberta, como por exemplo: “em que é que o posso ajudar?”, seguida de várias questões fechadas para aumentar a assertividade ao estabelecer hipóteses diagnósticas e concluindo de novo com questões abertas como por exemplo: “em que medida é que as queixas que refere interferem na sua vida diária?” ou “ para além do que referiu, há mais alguma coisa que me queira dizer?”. Esta capacidade, de usar bem ambos os tipos de questão requer treino e acompanhamento.
A formação médica deveria incidir mais sobre a importância deste determinante de saúde?
Evidentemente. Mas atenção, porque esta não é uma formação que se possa fazer através de aulas. É preciso primeiro formar os formadores, e em número suficiente, antes de introduzir no currículo um sistema que garanta suficiente proximidade entre tutor e estudante para a comunicação ocupar um lugar central na formação.
A realidade é que custa dinheiro, pois requer muita preparação e trabalho e exige muito do corpo docente
Os alunos de medicina deveriam ser alvo de um processo de seleção diferente na chegada à faculdade?
Sem dúvida. Claro que conhecimentos e capacidade de estudar são fatores importantes, mas não únicos.
Hoje existem métodos bem estabelecidos para selecionar os candidatos com melhores competências, como acima referi, utilizados pela maioria das escolas médicas pelo menos no Reino Unido, no Canadá e na Austrália, tal como na Universidade do Algarve. A grande dificuldade está em organizar esse sistema de seleção dado o enorme número de candidatos. Mas não é impossível, pois ele funciona em muitas escolas no Norte da Europa e em grande escala.
A realidade é que custa dinheiro, pois requer muita preparação e trabalho e exige muito do corpo docente. Contudo, não devemos esquecer que fazendo uma seleção adequada temos mais do que meio caminho andado nesta área da formação dos médicos. Assim, também se reduz substancialmente o desperdício associado a desistências e chumbos, resultantes de fraca motivação.
Que características deve ter um bom médico?
Carácter irrepreensível, bom comunicador, empático, generoso, boa capacidade de priorizar, capacidade de lidar com incerteza, determinado em colocar os interesses do doente acima de tudo, total respeito pelos doentes, respeito pela pontualidade, competente nas tarefas práticas essenciais, possuidor dos conhecimentos essenciais que todos os médicos devem ter e determinado a continuar a estudar e a aperfeiçoar-se ao longo de toda a vida profissional. Assim definiria um profissional exemplar.
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