Quando falamos de abuso sexual de crianças, ou quando ouvimos falar do tema na televisão, nas redes sociais ou noutras formas de media, é quase automático que o nosso pensamento nos leve até um agressor adulto, próximo (ou não) do menor e uma vítima. Como tal, deixamos, muitas vezes, de falar de uma tipologia de abuso sexual de crianças igualmente relevante e preocupante: o abuso sexual cometido por menores e, em particular, por irmãos. 

Com efeito, este tipo de abuso sexual é, frequentemente, encoberto e minimizado por pais, professores, profissionais de saúde mental e os próprios pais, não só porque atribuem determinados comportamentos mais sexualizados entre os menores a uma normal trajetória de desenvolvimento sexual, como porque têm medo e vergonha de reportar a existência desta problemática no seio familiar às entidades competentes. 

No entanto, esta realidade não deixa de ser altamente prevalente e alguns estudos mostram que o abuso sexual entre irmãos ocorre mais frequentemente do que qualquer outra forma de abuso sexual em contexto familiar. Em Portugal, uma investigação realizada, no âmbito de um projeto de doutoramento, sobre a violência entre irmãos, demonstrou que, em 590 estudantes universitários, 11% dos rapazes e 5% das raparigas já tinha coagido sexualmente um irmão. 

Estes números deixam claro que é importante conseguir reconhecer os fatores de risco associados a este tipo de abuso, saber diferenciar entre comportamentos normais de exploração sexual e comportamentos de abuso sexual entre irmãos, assim como compreender as possíveis consequências deste tipo de abuso nas vítimas e suas famílias.

Entre os fatores associados a um risco acrescido de abuso sexual entre irmãos, encontramos:

  1. Ausência parental, práticas parentais desadequadas e tratamento diferenciado entre irmãos (ou seja, um irmão mais beneficiado pelos pais do que o outro). Estas características tendem a intensificar a dependência, curiosidade sexual e hostilidade entre os irmãos, aumentando o risco de abuso.
  2. Limites mal definidos na família (por exemplo, irmãos dormirem na mesma cama, ou darem beijos na boca um do outro), na medida em que este fator proporciona um maior acesso ao irmão vitimizado e um maior desequilíbrio no poder entre irmãos, promovendo o risco do abuso.
  3. Erros de pensamento, associados a uma minimização da importância do comportamento abusivo.
  4. Historial de vitimação no passado, tanto no caso dos irmãos abusadores, como no das vítimas.
  5. Défices empáticos, no caso dos irmãos abusadores.
  6. Pobre controlo de impulsos ou imaturidade emocional, no caso dos irmãos abusadores
  7. Abuso de substâncias, no caso do irmão abusador.
  8. Dependência da vítima para com o irmão abusador.

Para conseguir diferenciar o abuso sexual entre irmãos de comportamentos sexuais normais do estádio de desenvolvimento onde as crianças se encontram, é importante colocarmos três questões: Quais são os motivos para estes comportamentos? Qual é o nível de coerção associado a estes comportamentos? Qual é a natureza destes comportamentos?

Em primeiro lugar, o desenvolvimento sexual normal das crianças envolve curiosidade e exploração. Não vale a pena negá-lo. A motivação para os comportamentos não é, contudo, a procura de estimulação sexual (como acontece nos casos de abuso), mas antes curiosidade. Esta exploração envolve, não raras vezes, os irmãos: dos 0 aos 5 anos, as crianças tocam nos seus genitais e olham para os genitais dos irmãos; dos 6 aos 10 anos, começam a brincar e a explorar a sua sexualidade através de jogos de “médicos ou enfermeiros” ou jogos com bonecas; dos 11 aos 12, o foco passa a ser os colegas e a exploração sexual passa a ser feita com estes.

O nível de coerção, ou seja, de força ou persuasão envolvidos nestes comportamentos, também é um indicador de situações abusivas em detrimento de comportamentos de exploração sexual normais. Por fim, a existência de comportamentos como toques desadequados, exposição indecente, tentativas de penetração, sexo oral, sexo anal, masturbação e exposição da criança a pornografia são indicadores de abuso sexual entre irmãos e, como tal, não são indicadores de um normal comportamento de exploração sexual entre eles. A diferença de idades entre as crianças (sobretudo se falarmos de diferenças de idades superiores a 4 anos) e o uso do segredo são também indicadores deste tipo de relações abusivas. Por outro lado, o abuso pode acontecer, independentemente do género das crianças.

No que remete para as consequências do abuso sexual entre irmãos, é importante sublinhar que este fenómeno afeta, não só a vítima, como todo o núcleo familiar. A experiência de abuso sexual perpetrado por um irmão está associada a problemas a longo prazo nas vítimas, tais como autoestima reduzida, sentimentos de culpa, tristeza, ansiedade e desenvolvimento de psicopatologia (como, por exemplo, depressão, stress pós-traumático e perturbações alimentares), sendo importante que, quando revelado o(s) abuso(s), seja prestado apoio à vítima e se procure apoio especializado para aquele que desempenhava o papel de agressor.

Por outro lado, a notícia de que existe uma situação de abuso no seio familiar é altamente perturbante para a família, não só pela natureza do crime, como pelas implicações legais e societais que este traz. Assim, a intervenção com crianças e famílias em contexto de abuso sexual entre irmãos deve ser baseada numa abordagem relacional, sistémica, focada nas relações vinculativas na família e na experiência traumática em si.

Não alimente a vergonha que possa sentir com o silêncio. Procure ajuda.

Um artigo dos psicólogos clínicos Mariana Moniz e Mauro Paulino, da MIND | Instituto de Psicologia Clínica e Forense.