É um texto para si que cuida, que continua, que sai do ninho para (em parte se) cumprir.
É um texto para si, que responde aos filhos quando perguntam “porque é que tens de ir e não ficas aqui connosco?”. Para si, que os vê a dormir e sai. Para si, que escolhe a roupa mais fácil de lavar para poder sair, ir e voltar. Para si, que organizou casas e contas sem saber quanto tempo ia ficar distante. Para si que não abraça quem o salvou noutros momentos e adormece com a culpa e o medo de não ir a tempo de mais abraços.
Para si, que aprendeu a exercer o cuidado formal. Para si, que vai dar colo aos que vivem todos os dias lá fora. Para si que vai securizar crianças e jovens e sabe que é mais do que monitor ou auxiliar de algum cuidado. Para si que adoça as saudades de um idoso a quem as visitas não chegam como antes. Para si que escuta desabafos e dores através do telefone e ajuda a costurar histórias novas e criar baús de recursos.
Os cuidados não têm auxiliares nem doutores, empregados ou patrões. Os cuidados são todo o gesto de um verbo de entrega humanizada. Os cuidados têm pessoas com colo, palavras, amparo, regras, procedimentos, sabedoria, emoção. Os cuidados não se medem pelo dinheiro ao fim do mês, nem pelo estatuto ou grau académico.
Os cuidados começam na reposição de uma grande prateleira de supermercado e continuam em quem dá colo a quem chora, em quem está no RX, na recolha de análises clínicas, na confiança de diagnósticos, na limpeza de um corpo dorido e sozinho, da cama que segura a vida. Continuam no autocarro que leva quem precisa ter como sobreviver. Continuam no segurança do centro de saúde. Na mulher-a-dias que não deixou ninguém sozinho porque sabe que quando limpa o pó, limpa também algumas dores da solidão.
Estas palavras são para si que acredita e continua. Que sabe que continuará.
Para si que também tem medo e dúvidas. Que (às vezes) só queria ser menos preciso e ficar quieto e escondido, algures num lugar de segurança.
Este verbo, humano, do cuidar pode ser cheio de dilemas. Esses dilemas, na mistura de todas as emoções e pensamentos que aí vêm, são parte de si. De nós.
Permita-se ser tudo isso: pode ser a pessoa que quer ir trabalhar, apoiar os colegas e ajudar e, ao mesmo tempo, ser o marido, a mãe, o pai, o tio que quer proteger a sete chaves os que ama. Pode ser o que não quer falhar à nossa humanidade comum e, ao mesmo tempo, o que não quer ser transporte de vírus e riscos para dentro de casa.
Pode ser o que precisa de continuar a ter dinheiro para sobreviver e é por isso que vai.
Pode ser o que vai, corajosamente cheio de medo pela vida que ainda quer viver. Pode ser aquele que dá colo, chora em silêncio com medo de ficar de quarentena e ao mesmo tempo abre o dia com piadas e abraços à distância.
Deixe-se ser tudo o que é. Isto está tudo a acontecer aí, consigo. Por todo o lado.
Não tem de escolher. Convide o medo, a coragem da sobrevivência e a generosidade a irem sempre consigo. A ficarem com os que ama. Fale com ele… abrace-o: “Medo anda. Preciso de ti para me ajudares a ter atenção. Não exageres. Não mandes demais, tu amparas-me. Não me dominas. Deixa-me voltar ao ninho, é para isso que serves. Deixa-me saber cuidar”.
Na verdade, está a fazer o seu melhor. Em circunstâncias difíceis. Em tempos sem calendários com um fim. É demais, é verdade. Pode mesmo ser demais. Precisava descansar e sossegar o corpo e a mente que se agita com preocupações e anseios.
Pode zangar-se com os factos… talvez não seja justo zangar-se consigo. Guarde na sua memória tudo o que tem sido capaz de fazer. Terá um livro de histórias e descobertas, para contar amanhã.
Está a cuidar o melhor que consegue, com todos os dilemas. A cumprir a sua parte ética e rigorosa e a ansiar o seu colo e segurança.
Não deixe ninguém dizer-lhe o contrário. Se o disserem… abrace-os (como puder). Estão (só) com medo. Um medo amigo.
Não imagina como lhe agradecemos. Tanto. Tanto.
Se não for pedir muito… leve esta gratidão para dar colo ao medo e ao cansaço.
Se não for pedir muito… continue a cuidar bem de si. E não tem de o fazer sozinho.
E pode ser importante pedir ajuda, porque:
. Os profissionais que se mantém no activo podem estar sujeitos a burnout: um estado de exaustão emocional, física e mental causada por stress excessivo e prolongado. Pode sentir-se sobrecarregado, emocionalmente esgotado e incapaz de atender a solicitações e alterações constantes. À medida que o estresse continua, a motivação e envolvimento das tarefas e papeis pode diminuir bem como a “sensação de energia” necessária e a produtividade e eficácia (Melinda Smith, M.A., Jeanne Segal, Ph.D., and Lawrence Robinson, 2019).
. Ou ainda à fadiga de compaixão - o resultado final de uma cascata de eventos onde o cuidar é o foco do sentido e do desagaste em simultâneo, onde o cuidar é permanente fragilizando o cuidador, tornando-o menos ligado e empático com o outro. Pode levar o cuidador à depressão, problemas de saúde e diminuição de qualidade do relacionamento. As consequências da fadiga da compaixão também podem levar a conflitos na relação, desistência, alteração dos cuidados, irritabilidade/reactividade, comportamentos de abuso… (Jennifer R. Day and Ruth A. Anderson, 2011)
. E ao trauma vicariante - consequente da exposição ao sofrimento e trauma de outras pessoas, que pode originar uma traumatização secundária para estes profissionais, resultado do trabalho intenso com sobreviventes de situações traumáticas (Maslach, C., & Jackson, S.E., 1986).
. A exigência diária das tarefas a par da gestão emocional e familiar pode de facto assumir-se como uma bola de neve, trazendo perdas secundárias e cumulativas (desafios que perduram, que se acumular e que são secundários à profissão e ao momento que vivemos, mesmo sem haver perda por morte, ex.: ficar longe dos seus, mudança de habitação, problemas de saúde, alterações financeiras,…) e perdas relacionais (conflitos e dificuldades no trabalho ou em casa, o que perde quando não pode estar em casa, o que perde quando não abraça o filho, o que perde quando não se despediu de alguém, o que perde quando o cansaço e irritação andam de mão dada ao entrar em casa)
Peça apoio profissional, se:
. As imagens dos cuidados, das pessoas em sofrimento, das decisões correm veloz e repetidamente pela sua mente como se fosse difícil organizá-las e elas tivessem “vida e força própria”;
. Frequentemente não encontra sentido no seu trabalho e/ou no seu dia-a-dia, que não é capaz e que o que tem de fazer “afinal não deve fazer grande diferença”;
. Perceber que todos os dias já parecem ser “dias maus”;
. Os padrões de sono e a sua alimentação estiverem muito alteados e com impacto no seu bem-estar diário;
. Os conflitos no trabalho, ou com familiares e amigos, forem cada vez mais frequentes;
. Se a culpa, a vergonha e o medo forem crescendo associados a pensamentos repetidos e intrusivos (parece que martela nas mesmas ideias acabando por se perder no momento, no que está a fazer);
. Não se sentir capaz de cuidar de si mesmo ou dos próprios filhos (brincar quando chega a casa, ajudar no jantar, tomar pequenas decisões…);
. Parece confuso, alheado, desligado e com dificuldade em ser mais do que um robot de tarefas – em alguns momentos este distanciamento (dissociação) pode ser muito útil, se se prolongar e nos fizer perder outros momentos da vida pode trazer mais custos;
. Enfrenta os dias antecipando-os como preocupação, insegurança, dificuldades nas decisões e tarefas, sintomas fisiológicos (dores de barriga, dores de cabeça, tremores, coração acelerado…), vontade de fugir ou esconder-se.
. Os dilemas familiares e pessoais, a dificuldade em responder às inquietações dos seus filhos, a dificuldade em gerir a distância ou o medo da morte forem mais fortes do que os recursos e estratégias que tem usado.
Autoria: Ana R. Santos, Psicóloga Clínica
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