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A Quinta da Moscadinha, situada na pitoresca vila da Camacha na Madeira, é mais do que um simples regresso à tradição da sidra madeirense. É um projeto que, enquanto recupera um património quase esquecido, está a traçar um caminho inédito na produção de sidra em Portugal. Para Márcio Nóbrega, o fundador deste projeto, a jornada é ao mesmo tempo uma redescoberta assim como uma reinvenção.
“A sidra tem tanta importância para o vinho, como o vinho tem para o país”, afirma Márcio Nobrega numa prova de sidras em Lisboa, sublinhando a relevância histórica desta bebida na Madeira. “Videiras temos poucas. E precisávamos de um vinho barato para se beber. E foi aí que aparece a sidra na ilha porque é um vinho fácil de se fazer, sem cuidado nenhum”, afirma.
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Mas, como explica, apesar da importância que a produção e consumo teve na ilha, a sidra nunca foi verdadeiramente valorizada. “Ao sábado apanhava-se as maçãs, espremia-se no domingo, na segunda ia para fermentar, quinta-feira íamos provar e no dia seguinte estava azeda. Portanto, nunca se valorizou”, sublinha. A razão era simples: “Como pobres que éramos, usávamos a melhor fruta para comer ou para vender, a menos boa para comer em casa e a sidra fazia-se com maçã podre. É essa a razão para a sidra nunca ter a importância que era necessário ter”.
Quando adquiriu a Quinta da Moscadinha, Márcio nem sequer conhecia a tradição da produção de maçãs na Camacha. O próprio nome da quinta faz alusão à noz-moscada, especiaria que utilizavam para fazer um licor. “O pomar estava abandonado e, quando comecei a deitar as árvores ao chão, percebi que as pessoas à volta ficaram tristes, com nostalgia. 'Porque é que está a fazer isso?'. Então fui inteirar-me do real interesse das macieiras e percebi que a Camacha era considerada o ‘Pomar da Ilha’. Era ali que se concentravam as macieiras para produção de sidra.”
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“Os portugueses são desenrrascados”, explica, pois à falta de uvas, usavam-se maçãs para produzir o chamado “vinho dos peros”. Isso foi acontecendo desde o século XVIII e intensificou-se com a filoxera. O nome sidra vem bem mais tarde, seguindo a terminologia que já se usava em Espanha.
Com 134 variedades de maçã na Madeira, a escolha das melhores para a produção de sidra é uma experiência. “Para mim, tudo é novo”. Quais são as melhores variedades de maçã para produzir sidra? Como vai envelhecer em garrafa? Qual o comportamento ao longo do tempo? Que técnicas podem ser aplicadas? São muitas as perguntas, as respostas vão aparecendo. “Ainda é um caminho a desbravar”, enfatiza.
Os resultados já começaram a surgir. Em apenas três anos, a Quinta da Moscadinha passou de produzir duas mil garrafas para 35 mil. No entanto, a atual infraestrutura já não aguenta a crescente produção. Por essa razão, explica Márcio, foi submetido um projeto à autarquia da Camacha para a construção de uma nova “sidraria” (será este o nome correto? Talvez).
A produção não se limita às sidras tradicionais. A Quinta da Moscadinha também aposta na inovação com sidras fortificadas, inspiradas no vinho Madeira, criadas com a adição de álcool vínico a 96%, seguindo a desse vinho fortificado. Disponíveis em três estilos – seco, meio-doce e doce –, estas sidras representam uma nova categoria de produto recentemente reconhecida na regulamentação da ilha, mais precisamente em 2023, uma vez que antes disso, tinha sido proibido por Salazar, nos anos 1950, juntar-se maçãs ao vinho. Tudo graças ao trabalho e persistência de Márcio em fazer algo que nunca foi feito em Portugal.
E para quem já passou nos corredores do supermercado e viu as sidras no mesmo corredor das cervejas, esqueça. Não é dessa sidra que falamos aqui. É de algo bem diferente. O objetivo de Márcio nunca foi posicioná-la como uma bebida popular ao estilo da cerveja, mas sim elevar a sua qualidade ao nível dos vinhos. Mas sem ser um vinho.
“Eu faço a sidra como se fosse um vinho branco, tudo igual”, explica o produtor, que tem formação em Biologia e uma pós-graduação em Enologia. “Enquanto um vinho branco demora duas semanas a fermentar, as sidras, as minhas pelo menos, demoram três meses. Tenho mais cuidado nas fermentações porque as sidras são altamente oxidativas.”
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A visão da Quinta da Moscadinha, que além da oferta turística também tem um restaurante, Adega do Pomar, com o Chef Dúlio Freitas no comando, está a atrair atenção. Por essa razão, são várias as parcerias como uma sidra exclusiva desenvolvida para o restaurante William, na Madeira, que tem uma estrela Michelin. Mas também com o Il Gallo d’Oro (com duas estrelas Michelin) ou com o Chef Ljubomir Stanisic. A distribuição, apesar de se fazer, para já, essencialmente na restauração, expandiu-se, chegando ao El Corte Inglés desde 22 de janeiro, além de serem comercializadas através dos Altos Provadores, ou diretamente com a Quinta da Moscadinha, graças ao site, com preços entre os 9 e os 50€. Mas a ideia é, em breve, terem mais pontos de venda.
A vinda de Márcio Nobrega a Lisboa foi uma oportunidade para mostrar não só a qualidade das bebidas, mas também a experiência “sidroturística” que está a ser desenvolvida na ilha (“queremos ser o primeiro projeto de sidra e turismo do país”, afirma). As sidras da Quinta da Moscadinha, produzidas com métodos artesanais, vão desde as sidras mais naturais, às mais sofisticadas.
A excelência destas produções tem sido reconhecida internacionalmente, com prémios como a Medalha de Ouro no Cider World 2023 (logo na primeira vez que foi a concurso e por insistência de um produtor espanhol de sidras, que teve oportunidade as experimentar) e 2024 em Frankfurt e distinções no World Drinks Awards. A produção, que começa com uma rigorosa seleção manual das maçãs, utiliza técnicas inovadoras como fermentação espontânea em talha ou usando o método clássico para os espumantes.
Mas o crescimento também traz desafios. A atual capacidade de produção está no limite, e a nova adega permitirá aumentar a produção e responder à crescente procura. Ao mesmo tempo, o mercado da sidra está em ascensão, ao contrário do vinho. Para Márcio isso deve-se essencialmente a quatro fatores: a mudança geracional, o facto de essa geração não querer bebidas com alto teor alcoólico – a sidra tem 7,5º enquanto um vinho tem em média 12º – ter poucas calorias (30 por copo, em média) e, também, ser probiótica.
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A Quinta da Moscadinha já foi reconhecida como um dos 24 projetos na Europa que mais contribuíram para a economia local. Mas para Márcio, o caminho não pode ser trilhado sem concorrência. “Eu sozinho não chego lá. Se houvesse mais três ou quatro pessoas a produzir boa sidra…”, deixa no ar, explicando que em vez de muitos pequenos produtores de sidra, o que a Madeira precisa neste momento é de produtores de boa maçã. E depois, de outros que encarem a sidra como uma bebida séria.
O que começou como um resgate tornou-se numa inovação. E na ilha da Madeira, onde o vinho com o mesmo nome é o grande protagonista, a sidra está, aos poucos, a conquistar o seu espaço.
Algumas das sidras da Quinta da Moscadinha
Sidras Fortificadas
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Inspiradas no vinho Madeira, as sidras fortificadas são uma das grandes inovações da Quinta da Moscadinha. Com adição de álcool vínico a 96%, apresentam um perfil aromático intenso e estrutura complexa. A versão seca destaca-se pelas notas de frutos maduros, enquanto a meio-doce equilibra doçura e acidez com notas cítricas e de compota. Já a doce oferece camadas de frutos secos, laranja e compota, sendo ideais para acompanhar sobremesas sofisticadas ou chocolate.
Sidra de Talha
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Fermentada em talhas de barro, esta sidra tem um caráter cítrico e aromático. Destacam-se a sua fermentação natural e a estrutura mineral. A textura é envolvente. Ideal para pratos de peixe, saladas, mariscos e carnes brancas ou simplesmente para brindar.
Sidra TN
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Com a contribuição da casta Touriga Nacional, esta sidra exibe aromas de frutos do bosque. Com bolha fina crocante e acidez equilibrada, que lhe confere uma
frescura muito subtil, torna-se uma excelente opção para acompanhar pratos de marisco, peixe e saladas ou como aperitivo.
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Sidra 3 Barricas
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Resultado de uma fermentação prolongada em garrafa, esta é uma sidra de cor cristalina e aromas cítricos, com uma bolha fina crocante e acidez equilibrada, que lhe confere uma frescura muito subtil. Harmoniza bem com pratos de peixe, marisco ou saladas, mas também como aperitivo.
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