São os pesos-pesados da gastronomia nacional e internacional. Reinventam a cozinha, encontram-lhe novos caminhos e soluções. São também ativistas de causas sociais, ambientais, inspiram tendências, tornaram-se as estrelas de rock deste início de século XXI. Não obstante todos os atributos que lhes possamos somar, os chefes de cozinha são humanos. Erram, irritam-se e desafiam-se.
Nos últimos anos, o jornalista Nelson Marques, sentou-se à conversa com nomes maiores da cozinha mundial. Na escrita do jornalista do Expresso, perpassam as vozes de Anthony Bourdain, Massimo Bottura, Alain Ducasse, Ljubomir Stanisic, José Avillez, Andoni Luis Aduriz, Alex Atala, Vítor Sobral, Nuno Mendes, Hans Neuner. Nelson coligiu as demoradas conversas que manteve com estes cozinheiros maiores, num livro que entregou recentemente aos escaparates. “Chefs sem Reservas” revela-nos que há vida para lá das jalecas.
É essa vida que revelamos nesta conversa.
A capa de um livro também dialoga connosco. No caso deste “Chefs sem Reservas” a imagem escolhida para ilustrar a capa é a de um prato partido. Há uma mensagem implícita?
Sim. Tive com a editora longos debates sobre a capa. Houve, provavelmente, pelo menos, 12 versões de capa para chegarmos a este resultado final. Um processo que incluiu, inicialmente, capas com uns pratos de alta cozinha, muito bonitos, mas que podiam transmitir a mensagem de que estaríamos perante um livro de receitas. E, não era, e não é, essa a mensagem a passar. Houve, ainda, um projeto de capa que incluía a imagem de um cutelo e de uma faca. Muito provocadora, mas não estava totalmente convencido.
Certo dia, acordo às quatro da manhã e, eureka, vou sugerir para capa um prato partido. Isto porque, como referi, queria desconstruir a ideia de um livro de receitas, mas também trazer o outro lado da vida dos chefes de cozinha que entrevistei. Mostrar imperfeições, angústias, erros, mas também as alegrias, conquistas e sucessos. Há estes dois lados, que nem sempre perpassam para o público.
Não obstante, a editora ainda não era favorável à ideia. Perante as duas capas, fiz uma sondagem a 60 pessoas e, no final, deu um empate. Pensei, “bom qualquer uma das duas estará bem”. Entretanto, recordei as palavras de Andoni Luis Aduriz [chefe de cozinha do restaurante Mugaritz]: “quando tens um restaurante onde vão pessoas de 60 nacionalidades, a quem é que tu agradas? A tua preocupação não pode ser a de agradar a toda a gente. Em última análise é a ti que tens de agradar”. Segui a minha intuição e o conselho do Andoni. Com a concordância da editora acabei por seguir a capa que estava no meu coração.
Todos nós gostávamos um pouco de ser o Bourdain. A sua morte deixou-nos um vazio.
O Nelson ao incluir no título do livro o termo “Sem Reservas”, quis homenagear um homem que entrevistou e que já não se encontra fisicamente entre nós, o norte-americano Anthony Bourdain?
Este livro começou por ser um projeto que tinha como nome de código "à mesa com os chefes". Sempre soube que não seria esse o título, embora até quase ao fim do processo de escrita da obra, foi o nome que prevaleceu. A última parte que escrevi foi a introdução. Há um momento em que estou a escrever, a propósito de uma história sobre o Hans Neuner [chefe de cozinha do restaurante Ocean] e refiro que “aqui vai encontrar os chefes despidos da sua jaqueta, a revelarem as suas cicatrizes e a mostrarem as suas feridas sem reservas”. Penso: “é isto, é este o espírito do livro”. E ocorre-me intitular o livro “Sem Reservas”. Ato contínuo, penso, “isto é muito colado ao Bourdain” [o norte-americano encabeçava a série “No Reservations”].
Provavelmente a influência estava lá, não foi intencional. Para enquadrar, explico na introdução da obra como cheguei ao título e depois acabo por o assumir, porque o livro na altura já era dedicado ao Bourdain. É dele o primeiro capítulo. Foi com ele a primeira entrevista deste percurso. Acaba por ser uma presença marcante e que está em todos nós. Todos nós gostávamos um pouco de ser o Bourdain. A sua morte deixou-nos um vazio. Logo, se se assumir que o título foi influenciado pelo Bourdain, que assim seja. Eu diria que é uma homenagem de forma subliminar.
Aliás, sem reservas, pode dar-nos grande abertura, como também nos pode dar falta de disponibilidade. No caso vertente, encontrou essa abertura por parte destes chefes de cozinha de topo?
Na maior parte destes restaurantes, tens de estar meses para conseguir a reserva. Dou como exemplo a viagem que fiz a Itália, para entrevistar o Massimo Bottura [chefe de cozinha da Osteria Francescana]. Na altura, passei um dia inteiro com Bottura e, mesmo marcando com três meses de antecedência, não consegui comer no seu restaurante. Mas, assumindo o trocadilho, o que o livro mostra é o segundo significado que referiu. Tentei, na maior parte das conversas, que os chefes se abrissem, ao ponto em que revelam as camadas que as pessoas muitas vezes não mostram.
Nas conversas, procurei que os chefes se abrissem. Isto, ao ponto de mostrarem muitas das camadas que nos constituem. Não temos apenas uma dimensão.
Como o Nelson refere no livro, manteve conversas de quatro a cinco horas com homens que, publicamente, assumem um papel, são estrelas, de quem esperamos uma determinada reação. Sentiu que é um guião público para não defraudar expetativas?
Atualmente, estes chefes são uma espécie de estrelas de rock e as pessoas estão à espera de um certo comportamento, de um papel que, por vezes, se faz com dificuldade por parte destes homens e mulheres. Mas, ao passares todas estas horas com estas personalidades, que te revelam mais do que aquilo que mostram publicamente, permite-te, de certa forma, chegar ao outro lado. Sentes esse substrato nas pessoas. Naturalmente, quando te propões esta abordagem, a tua missão é que os visados quase se esqueçam de que estão a falar com um jornalista.
Dou, novamente, o exemplo do Bottura. Quando lhe entrei pela casa dentro, logo aí mudou toda a dinâmica. A entrevista iria decorrer no escritório, com tempo marcado, uma hora e trinta minutos, antes do almoço. Quando cheguei, esperei um pouco e a assessora diz-me: “mudança de planos, vou levá-lo à casa de campo do Bottura”. A dinâmica muda e a ideia da persona pública não existe mais. Pode existir durante cinco ou dez minutos. Entras na casa do Bottura, vez a coleção de discos, de arte contemporânea, conversas descontraidamente. A dada altura aparece a mulher, depois a arquiteta e Bottura diz-me, “bom esta é a minha primeira namorada de infância e hoje é arquiteta dos meus projetos”. Pergunto-me como é que um homem com a vida deste chefe, uma rock star, que tem no telemóvel os contactos do Obama e do Papa, mantém os pés assentes na terra. Perguntei-lhe se o facto de ter um filho com um problema cognitivo o ajuda a manter os pés na terra. Ele diz-me, “vai lá à escola e vê como mantenho os pés no chão". E fui. Ou seja, uma dinâmica muito diferente de uma entrevista fechada num escritório.
Não podes ter um grande prato sem teres grandes ingredientes e não podes ter grandes ingredientes se não cuidares o produtor. Durante anos descurámos isto.
Em relação aos chefes de cozinha portugueses o Nelson sentiu esta abertura?
Onde mais o senti foi com o José Avillez [restaurante Belcanto] porque, justiça lhe seja feita, é o chefe português de maior sucesso. Este é um facto que ninguém conseguirá refutar. É, também, e isto não tem nenhum juízo de apreciação implícito, o chefe com a máquina mediática mais bem montada. É uma pessoa que está muito treinada. Para um jornalista é um desafio muito grande, porque tudo o que ele diz é muito pensado. Mas, nós vamos para uma conversa de duas horas e meia que se prolonga para quatro horas e meia e a dada altura, o José já me fala da morte do pai, da psicanálise, aspetos privados, como o fato das longas jornadas de trabalho em Lisboa e de como isso pesava na relação com os filhos. A certa altura, deixa de fazer o programa na rádio para, pelo menos, da parte da manhã, poder estar com os filhos. Acabei por sentir que havia uma conversa confidente. É uma conquista.
Na entrevista com Avillez, este refere o prazer dos outros em lhe verem o insucesso. Uma realidade que também está presente no percurso dos chefes. Há um certo deleite humano em expor o fracasso dos outros. Neste caso o que sentiste sobre a forma como estes homens olham para os seus fracassos?
Todas estas figuras que trago para o meu livro, em determinado momento das suas vidas, se estatelou ao comprido, alguns deles com tragédias pessoais, como o Alain Ducasse que tem uma história que pouquíssimas pessoas no mundo podem contar. É o único sobrevivente de um acidente de avião. Outros enfrentaram falências, como o Andoni Luis Aduriz, que viu o restaurante incendiar-se e ficou com dívidas de um milhão e meio de euros. Mas conseguiu sobreviver a isso.
Aquilo que se prova é que há pessoas com uma paixão muito grande por aquilo que fazem, que nem sempre é óbvia e uma determinação férrea em triunfar. Essa é a narrativa do sucesso, ou seja, vais ao tapete, montas todos os ´ossinhos` do esqueleto, voltas a levantar-te e continuas o teu caminho. Esta é uma história comum a todos estes chefes de cozinha. Todos eles conheceram o insucesso, vários deles passaram por falências.
Há uma frase que me baila sempre na cabeça. No prefácio ao livro, o Ferran Adriá [chefe que revolucionou a cozinha espanhola], recupera a memória do Andoni Luis Aduriz, falando desta vontade férrea que é preciso ter. Diz-nos algo assim: “a nossa vontade tem de ser como a água de um rio, pode encontrar uma montanha e vai contorná-la e vai dar sempre ao mar”. É o que sinto com estes chefes. Não é que fossem mais talentosos do que outros. Persistiram mais.
A José Avillez, justiça lhe seja feita, é o chefe português de maior sucesso. Este é um facto que ninguém conseguirá refutar. É, também, e isto não tem nenhum juízo de apreciação implícito, o chefe com a máquina mediática mais bem montada.
São uns solitários neste caminho?
Por vezes não o fazem sozinhos. O Ljubomir Stanisic [restaurantes 100 Maneiras] também precisou de quem lhe dessem a mão para se levantar, o Bottura teria desistido da Osteria Francescana se a mulher não lhe dissesse para insistir mais um pouco. O que aconteceu com ele, aconteceu com Ferran Adriá [restaurante El Bulli], quando já tinha uma estrela Michelin, aconteceu com os irmãos Roca [restaurante El Celler de Can Roca]. Não está neste livro, mas aconteceu-lhes. Muitos foram uns incompreendidos. Houve todo um percurso para chegar ao topo.
Na realidade, estes homens são muito mais do que cozinheiros, são pensadores, filósofos, criadores.
São feitos de uma massa que os torna bem sucedidos. Acredito que teriam sucesso em outras áreas. O Andoni, por exemplo, sinto que é um filósofo que, por acaso, cozinha.
Como para a generalidade das pessoas o Bourdain seria um ativista. Quando vem a Portugal trazia interesse pela nossa história política, social.
Aliás, o Bourdain vai-se afastando da cozinha. Acho que no imaginário das pessoas, o Bourdain não era cozinheiro, era um tipo que desvendava o mundo, que viajava. Era o homem que comia o mundo, que gostava dos prazeres da vida. Esquecemo-nos que certo dia foi um cozinheiro. Curiosamente, só descobri agora que é filho de uma jornalista. Esta dimensão de contador de histórias já estava nele.
Estaremos a dar uma importância mediática desproporcional aos chefes de cozinha?
Discordo. Ouço muitas vezes que se entrevistam muitos chefes e que se lhes dá demasiada importância, mas não se diz o mesmo face a futebolistas, músicos ou escritores. Há mais profissões com mais destaque que os escritores. Há dias ouvia: “hoje em dia estes chefes cobram refeições de 200,00 euros e todos eles vão salvar o mundo”. Em jeito de provocação ripostei que esse era um exclusivo das estrelas rock.
Obviamente também há um bom marketing em torno destes chefes. Mas, sobretudo, há que perceber que têm hoje uma voz, têm protagonismo, que nos pode envolver em causas.
Estou a pensar, por exemplo, no brasileiro Alex Atala, do restaurante D.O.M. Também merece destaque no livro do Nelson.
No caso do Alex tem uma forte intervenção no que respeita a produtos ligados ao Brasil, aos povos indígenas, da Amazónia. Já o Bottura aparece-nos ligado aos produtores locais, assim como no apoio aos sem-abrigo, desfavorecidos. Criou refeitórios sociais onde o que se quis fazer foi dar dignidade a essas pessoas. O sítio onde vão comer não tem de ser decadente. Para além disto, criou uma escola onde os miúdos com problemas cognitivos podem estar com as mães e com as avós e com outras mães e avós que passam pelas mesmas dificuldades. Aí, num mesmo espaço, cozinham tortellini, juntando à tradição italiana a oportunidade destas crianças se expressarem de outras formas. Há, ainda, um rendimento associado porque, depois, os tortellini são vendidos.
Essa é a narrativa do sucesso, ou seja, vais ao tapete, montas os ´ossinhos` todos do esqueleto, voltas a levantar-te e continuas o teu caminho.
Chefes de cozinha que também são guardiões de memórias. Na entrevista que o Alain Ducasse dá ao Nelson, toca nestas questões da memória, da afinidade aos territórios, às pessoas. É também muito importante o papel deles nesta defesa deste nosso património. Concorda?
Sim e estão muito ligados a estes aspetos. O Alex Atala diz uma coisa muito interessante: “as pessoas esquecem-se que a comida não começa na prateleira do supermercado”. Aliás, não nasce nem no prato, nem na prateleira do supermercado. Não podemos ter um grande prato sem termos grandes ingredientes e não podemos ter grandes ingredientes se não cuidarmos do produtor. Durante anos descurámos isto. Muitos produtores tradicionais foram definhando porque ninguém queria saber deles. É bom que se faça alguma justiça a muitos destes chefes, que se têm empenhado em dar protagonismo aos produtores locais. Cozinheiros como o Ljubomir Stanisic ou o João Rodrigues, que não está no livro, mas tem feito um trabalho assinalável com o seu projeto Matéria. Muitas vezes, diz-se destes chefes que se estão a afastar da tradição. Criam novos pratos e técnicas, mas a base é tradicional.
O conteúdo deste livro contempla entrevistas no período entre 2011 e o presente. Acima de tudo enquanto autor o que mudou na sua perceção sobre estas pessoas e sobre esta abordagem?
Neste contexto, a primeira entrevista, com o Bourdain é um caso à parte. A conversa teve lugar há mais de oito anos. O grosso das entrevistas decorreu nos últimos dois anos. Parto para as coisas com poucos preconceitos. Logo, a minha perceção não mudou muito porque não partia com esta ou com aquela imagem sobre as pessoas. É claro que há sempre alguns referenciais. Por exemplo, que o Ljubomir é mais desbocado, o que se confirma. É ótimo para um jornalista porque, numa entrevista, dá-te 15 títulos [risos]. O Ljubomir é um cozinheiro estupendo. É um tipo que veio de fora e que tem feito uma promoção de Portugal, das tradições portuguesas, da cozinha portuguesa como poucos chefes. Um aspeto que raras vezes é destacado porque fica ofuscado debaixo do mediatismo. Ele próprio diz que é um duro com um coração mole.
Tive, também, uma grande surpresa com o Hans Neuner. Não o conhecia e, na época, disseram-me que ele era muito reservado. Entrei em pânico, tinha oito páginas de jornal para fechar. A última coisa que queres é falar com uma pessoa reservada. Na realidade, chego à Madeira, apresento-me, conversamos e o Hans diz-me, “esta noite ficas na nossa mesa”. Falámos ao jantar, criámos empatia e, no dia seguinte, aquando da entrevista, a conversa fluiu.
Hans Neuner deixa uma critica dura aos jovens cozinheiros. Querem estar uns meses na cozinha e depois escreverem livros, programas.
O Avillez também refere os cozinheiros que se vão embora e deixam as facas para trás. Querem um elevador para o topo sem antes percorrerem a montanha.
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