Fortunato da Câmara, crítico gastronómico, traz para esta conversa o mesmo sentido de humor, por vezes subtil, noutros momentos cáustico e incisivo, que talha nos cinco capítulos e muitas abordagens do seu livro “Manual para Se Tornar um Verdadeiro Gourmet” (edição da Manuscrito). Fá-lo por referência a uma atual realidade gastronómica confusa, histriónica, com um imediatismo com pouca margem para o sentido crítico apurado e onde “se colecionam experiências como pontos num jogo de computador”.
Gourmet é hoje termo banalizado e Fortunato da Câmara explica-nos os porquês e como de tanto o usarmos, nos produtos, nos eventos, lhe subtraímos o verdadeiro significado, bem mais prosaico e, definitivamente, mais apelativo. Prende-se à aventura e à curiosidade.
Uma conversa à qual não consegue escapulir o universo dos blogues e influenciadores, a ditadura dos likes, dos muitos fogos- fátuos da restauração e o de reencontrarmos nos chefs a sua primeira missão, a de cozinheiros. Isto sem qualquer carga depreciativa. Aliás, Fortunato da Câmara recorda-nos cinco génios que fizeram a revolução no seu tempo.
Para o também conselheiro gastronómico com quem aqui entabulamos prosa, a grande rede social do momento, vem de longe no tempo, é anterior à invenção da tecnologia, chama-se alimento.
O Fortunato da Câmara abre o seu livro “Manual para Se Tornar um Verdadeiro Gourmet” com uma abordagem interessante. Qualquer um de nós pode-se tornar nesse `verdadeiro` gourmet. Contudo, tem de ter espírito de aventura. Pode explicar-nos?
Criamos com frequência ideias feitas e temos apetência para nos situarmos na nossa zona de conforto. Ou seja, resistimos a contactar com realidades e experiências que não dominamos. Não estou a referir-me a coisas exóticas, incursões por áreas menos comuns no ato de comer, como ingerir insetos. Pode ser algo mais prosaico, como aventurarmo-nos na degustação de uma língua de vaca estufada.
Ou seja, abraçar novas dimensões da experiência à mesa. Dei o exemplo da língua de vaca para ilustrar que na cozinha regional portuguesa há muito por onde nos aventurarmos. Há pratos que muita gente desconhece. Por exemplo, sobremesas com sangue. As batatas fritas e arroz como acompanhamentos no mesmo prato enchem a barriga mas não são o paradigma de uma experiência gastronómica.
Em suma, trata-se de experimentar sem reservas, pelo sabor, encontrando as texturas. Ultrapassar o nosso preconceito em relação ao desconhecido. Repare, muitas vezes comemos algo e apreciamos até ao momento em que nos revelam o que se trata.
Ainda tocando no termo gourmet, este não é um gastrófilo, um gastrónomo ou um foodie. O que o diferencia dos restantes?
Gourmet é uma palavra de origem francesa que as pessoas associam a realidades caras. Gourmet, de tão usado, banalizou-se e hoje traduz muitas realidades sem qualquer interesse, dos produtos aos eventos. Gastrónomo, foodie, gastrófilo abrangem todas essas realidades. Mas, Gourmet é a palavra mãe de todos eles.
Gourmet, de tão usado, banalizou-se e hoje traduz muitas realidades sem qualquer interesse, dos produtos aos eventos.
E que nos aparece quando e em que contexto?
Com a Revolução Francesa, em 1789, nasce a Burguesia, que poderíamos hoje equiparar à classe média. Pessoas com poder de compra, não sendo propriamente ricas. A palavra Gourmet nasceu para orientar essas pessoas e tudo o que se relaciona com o prazer de comer.
Ir ao restaurante implica um investimento por parte do comensal. O gourmet cabe nesse âmbito. Ou seja, tem as condições que já referi e alguma capacidade de escolha. Pessoas que querem saber onde comer, procuram qualidade, variedade, produtos bem tratados. Não estamos a falar propriamente de preço, antes de escolhas, tal como as que fazemos quando vamos ao teatro, a um espetáculo musical.
Infelizmente há quem tenha esta vontade de aventura mas, por questões de diferente ordem, não a possa praticar.
Na prática como se alcança esse estatuto gourmet?
Hoje passa um pouco por aquilo a que se designa “colecionar experiências”. As redes sociais criam um pouco essa dinâmica. A pessoa à medida que vai acumulando experiências ganha uma classificação. Uma espécie de colecionador de classificações que tanto pode referir-se ao café onde se come o pastel de nata, como ao menu de degustação. É como um jogo de computador, onde se acumulam pontos.
Vivemos, atualmente, uma realidade que se assemelha a um jogo de computador, somos protagonistas nesse jogo, deixamos likes por todo o lado, colecionamos pontos. As redes sociais vão por esse caminho, estimulam a acumulação. Mas, será que essa pessoa é um grande conhecedor? Não está a fazer uma análise crítica.
Vivemos, atualmente, uma realidade que se assemelha a um jogo de computador, somos protagonistas nesse jogo, deixamos likes por todo o lado, colecionamos pontos.
“A vida é curta para se aturarem maus restaurantes, fracos sabores, falsos atores e outros dissabores”. Isto é uma crítica ao atual panorama dos comeres nacionais?
O conteúdo dessa frase refere-se ao grupo de pessoas que se tornaram opinantes profissionais, influenciadores, que têm blogues, ou muitos seguidores nas suas páginas no digital. A este propósito, assistimos a um debate no “Peixe em Lisboa” [evento anual de divulgação dos comeres e produtos do mar] sobre redes sociais e a sua influência atual. Houve um momento interessente. Alguém deixou uma pergunta a um indivíduo que detém uma série de restaurantes. A pergunta era sobre o impacto na divulgação de um restaurante quando os instagrameres lhe atribuem muitos likes. A resposta foi interessante, qualquer coisa como: “Os que fazem like não são os meus clientes”. Ou seja, preferia uma análise mais distante e ponderada num meio de comunicação de referência do que “gostos” num meio abstrato. Acresce saber se todos os likes são verdadeiros ou não. Inclusivamente é possível comprá-los hoje em dia.
O italiano Humberto Eco deixou-nos estas palavras que o Fortunato traz para o seu livro: “As redes sociais deram o direito da palavra a uma legião de idiotas”. Estamos a tornar o banal em excitante?
Quando um cliente vai a um restaurante, gostaria que comparasse o que leu antes da visita e avaliar se faz sentido com a experiência que está a viver. Por vezes lemos um conto de fadas e encontramos uma história banal. A questão é essa, a da promoção de projetos vulgares, face a outros conduzidos por pessoas com um trabalho de mérito. Abre uma casa nova e, durante duas ou três semanas todos falam sobre isso. Cria-se uma expetativa. E quantas vezes é que isso se concretiza? Ou seja, o problema é a indiferenciação com que se trata tudo. Não é apanágio de Portugal.
O Fortunato também não poupa a crítica ou melhor a falta de sentido crítico de muitos dos articulistas. Em boa verdade talvez tenhamos substituído o papel do crítico pelo de influenciador. Há diferenças?
Não temos jornalismo gastronómico forte. Repare, é ótimo haver a notícia sobre a abertura de um restaurante. O problema é que, muitas vezes, essas divulgações resultam já de um interesse prévio e não chegam, à partida, destituídas de uma apreciação valorativa. Há opiniões muito adjetivadas. Não se percebe a fronteira que se está a passar e quem faz a comunicação entre o restaurante e os opinantes sabe isso. É fácil ter retorno nos meios informais de produção de conteúdos a partir do momento em que se oferece uma refeição. Por outro lado, a distância dá credibilidade ao meio de comunicação.
Não temos jornalismo gastronómico forte. Repare, é ótimo haver a notícia sobre a abertura de um restaurante. O problema é que, muitas vezes, essas divulgações resultam já de um interesse prévio
Estamos a criar uma legião de chefes de cozinha estrelas mediáticas?
Neste momento estamos num momento ímpar, com jovens cozinheiros muito bem formados e com experiências acumuladas, o que não é sinónimo de tarimba. Há uns anos, faltava-nos um certo cosmopolitismo como capital europeia. Hoje em dia já conseguimos comer diferentes cozinhas. Basta recuarmos dez anos para só quase encontrarmos o restaurante chinês para europeus. Esta nova realidade traz-nos uma avalanche em termos de turismo. Quem viaja já sabe que encontra o restaurante libanês, chinês, entre outros. mas também quer encontrar a cozinha local e fazer aí algum investimento na experiência. Isso está muito desprotegido atualmente.
Muitas vezes rendemo-nos ao facilitismo, ao turismo e misturamos tudo, porque queremos ser rentáveis, concorda?
Isso é confundir cozinha portuguesa com cozinha com produtos portugueses. Se produzir um ceviche com um robalo capturado na costa portuguesa, não estou a fazer cozinha nacional. Pessoalmente, gosto muito de um queijo Gouda que é produzido em Lavre, no Alentejo. É muito bom, as vacas estão cá, o leite é português, mas não deixa de ser um queijo originalmente holandês.
Em convívios de amigos lanço-lhes um desafio. Se acham que a cozinha portuguesa está num ótimo momento, digam-me cinco locais onde comer em Lisboa um bom bacalhau à Gomes de Sá. A cozinha portuguesa é o que nos identifica ao longo dos tempos. É óbvio que os pratos que hoje consideramos como matriz, dentro de 30 ou 40 anos não o serão. A Sopa da Pedra era algo local que assumiu, entretanto, estatuto nacional.
Não é propriamente uma realidade estanque…
Temos muitos pratos em que criámos fusão. A cozinha goesa tem essa influência. Por exemplo a canja, vai encontrá-la em Goa e na China. Dentro da nossa dimensão fomos influenciadores e aculturámos muito pouco. Cristalizámos no tempo e quem vem de fora vê autenticidade. Mas estamos a perdê-la. Quem faz cozinha tradicional, que o faça da forma mais perfeita que conseguir, com produtos nossos e com as receitas que nos identificam.
O que está a acontecer agora é que os restaurantes tradicionais, nas grandes cidades, estão muito pressionados pelo custo de vida e fazem os comeres tradicionais cada vez com piores produtos.
Em boa verdade temos descurado os territórios que podem servir de base a tudo isto que refere. A cidade serve de mostra mas o mundo rural produz. Como avalia esta realidade?
O que está a acontecer agora é que os restaurantes tradicionais, nas grandes cidades, estão muito pressionados pelo custo de vida e fazem os comeres tradicionais cada vez com piores produtos. Está-se muito dependente dos grandes mercados abastecedores. Este cosmopolitismo que nos faltava, com as inerentes pressões, está a ser extensível a outras cidades. Por seu turno, um exemplo de uma boa ligação entre o mundo rural e o urbano é Braga, no Minho, onde existe proximidade às quintas, às boas hortas e aos fornecedores.
Nós, consumidores, temos de cooperar, percebendo que a qualidade tem de ter um preço justo. O proprietário do restaurante verá que essa qualidade terá retorno. Porque não abrir nas áreas limítrofes dos grandes centros urbanos bons restaurantes apostados na cozinha tradicional?
Comer é um negócio. Muito do que comemos é uma invenção comercial e o Fortunato aborda, no seu livro, alguns destes alimentos. Estamos a matar as raízes dos nossos comeres em prol de um negócio apenas interessado em faturar?
Sim, a partir do momento em que o livro assume o título de “Manual para Se Tornar um Verdadeiro Gourmet” parte do princípio que os leitores estão interessados em tudo aquilo que se relaciona com a gastronomia. Face ao que me pergunta, o iogurte grego é um exemplo interessante. Em boa verdade, tecnicamente, este iogurte não existe. Se perguntar a um grego, provavelmente não saberá do que está a falar. Tradicionalmente, na Grécia produz-se o Molho Tzatziki, utilizando-se neste um iogurte feito com leite gordo, separando o soro da parte gorda, tornada uma pasta muito sedosa. A indústria percebeu que era apetitoso e a partir daí passou-se a fazer um iogurte mais encorpado.
A indústria é o grande papão?
A indústria tem as suas responsabilidades. Não podemos, contudo, ver só o preto e o branco. Ela mantém-nos a todos vivos. Não podemos comer só o biológico. Temos de perceber que a rotina é uma realidade. Há que ir ao supermercado adquirir os bens comuns. Quem tem possibilidade de ter um interesse, pode salpicar o quotidiano com outras experiências. A indústria é muito rápida a interpretar os sinais dos consumidores. E aqui, voltamos novamente à questão do iogurte grego, do queijo Mozzarella, dos próprios pastéis de nata, que hoje encontra congelados. E digo-lhe, alguns melhores do que os que encontramos nas pastelarias.
A indústria tem as suas responsabilidades. Não podemos, contudo, ver só o preto e o branco. Ela mantém-nos a todos vivos. Não podemos comer só o biológico.
Não serão alguns dos responsáveis por manterem viva a nossa matriz culinária, nomeadamente os chefes de cozinha, que cedem ao apelo dos gabinetes de marketing?
Não se pode é andar a ´bater´, por exemplo, num determinado tipo de peixe, por um lado e, depois, vamos promovê-lo por outro lado. Isso não é válido. Agora, se divulgam um caldo de cozinha e o assumem na sua cozinha, tudo bem. Não podem é, depois, reivindicarem o reconhecimento numa determinada linha de restauração mais cuidada.
No seu livro, o Fortunato da Câmara destaca cinco cozinheiros “(re)volucionários”, como diz. Porquê este quinteto?
Cinco cozinheiros no âmbito da cozinha Ocidental. No Oriente a cozinha é milenar, mas os cozinheiros estão atrás do produto. Por cá, neste momento, os cozinheiros estão à frente de tudo o mais e os clientes estão na última fila.
Os cinco que trago para o meu livro estão associados a momentos em que a cozinha passou para um nível diferente na história da alimentação. Ou seja, são quatro franceses pela força natural que a cozinha francesa teve nos últimos 200 anos. O último é espanhol, pela importância que o país vizinho, entretanto, assumiu.
Todos eles passarem a fazer uma mesma coisa de forma completamente diferente e com sucesso. O primeiro deles, Pierre de La Varenne, nos meados do século XVII, mudou o curso da história da cozinha europeia com o seu livro “Le Cuisinier François”. Até 1651 quando foi publicada a obra, a cozinha não tinha ordem; tudo se misturava. Comia-se doce e salgado simultaneamente, abusava-se nas especiarias, não se sentia o sabor dos produtos. Pierre de La Varenne separou os dois campos, organizou os sabores. Atualmente o grande reformador é o espanhol Ferran Adrià.
Um dos temas que aborda no livro é o das competições como a Michelin. Hoje muitos jovens já entram numa cozinha com o objetivo da estrela. Não estará também errado? Ou melhor, não corremos o risco de trabalhar para o gosto dos inspetores do guia e menos para os comensais?
Muitos já dizem “sou cozinheiro” antes de se afirmarem como chefes de cozinha. Assim como a palavra gourmet se banalizou, também o chef se tornou banal. Os jovens vão atrás das tabelas, do reconhecimento que a profissão dá. Todos querem ter o seu agente, serem promovidos, associarem-se a marcas. No fundo atingirem o protagonismo.
No outro nível, o dos cozinheiros já estabelecidos, há os que trabalham por objetivos. Estes são salutares. A questão é que dentro das tabelas há muita manipulação. Por exemplo, a La Liste [elege os mil melhores restaurantes franceses] trabalha com algoritmos e conta muito menos com a componente humana. Já a Michelin tem os seus famosos inspetores que ninguém sabe quem são. Sabemos que não são cozinheiros, antes indivíduos que saíram da indústria da restauração.
A Michelin com todas as suas idiossincrasias serve para nivelar, entre si, os cozinheiros. Um cozinheiro com três estrelas sente-se mais distinguido entre pares do se situar em oitavo ou décimo numa lista.
Temos, ainda, a inglesa “World´s 50 Best Restaurants”, que nasceu para retirar protagonismo ao Guia Michelin, logo a cozinha francesa clássica. A “World´s Best” é formada por um colégio com centenas de votantes. A partir das suas votações são anunciados cem restaurantes, entre eles os “50 Melhores do Mundo”. O elenco dos que votam é secreto, mas sabe-se que são cozinheiros, empresários da restauração, gourmets e jornalistas da especialidade. A partir do momento em que há uma lista de cozinheiros que votam entre eles, há algo estranho. Não só sou eu que digo, tem sido amplamente debatido.
Fortunato da Câmara nasceu em Lisboa em 1977. Desde 2006 que exerce a crítica gastronómica, primeiro no semanário Sol, depois no jornal Público. A partir de 2012, e desde 2015 que é o responsável pela crítica gastronómica no semanário Expresso.
Tem publicados diversos livros sobre gastronomia, premiados pelos “Gourmand World Cookbooks Awards”. Entre estes títulos “Os Mistérios do Abade de Priscos – 80 histórias curiosas e deliciosas da gastronomia”, também premiado pela Academia Portuguesa de Gastronomia em 2013, “Viver Portugal Com o Mediterrâneo à Mesa” (CTT, 2015), “A Vida e as Receitas Inéditas do Abade de Priscos” (prémio “Littérature Gastronomique” da Academia Internacional de Gastronomia em 2017.
Frequentou a licenciatura de Produção Alimentar em Restauração da Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril. É diplomado pelo Institut des Hautes Études du Goût na pós-graduação “Goût, Gastronomie, et Arts de la Table”. Entre 2013 e 2015 foi convidado do Institut des Hautes Études du Goût para lecionar na Universidade de Reims uma masterclass em crítica gastronómica.
É conselheiro gastronómico, dá formações de treino e educação do gosto, sendo convidado para participar em palestras na área da gastronomia.
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