Certo dia, em 2012, Shiro Oguni, realizador nipónico de documentários, estava a almoçar na cantina de um lar para pessoas com demência. Pediu um hambúrguer e foram-lhe servidas guiozas (pastéis asiáticos de massa fina). Oguni prestava-se a devolver o prato à cozinha, quando percebeu que se encontrava num mundo diferente, com vários graus de funcionalidade. “Porque não aceitar o prato que lhe serviram, como forma de respeitar as dificuldades vividas por estas pessoas?” Foi a pergunta que Shiro Oguni fez a si mesmo. Este foi o ponto de partida para um novo projeto, o Restaurante dos Pedidos Trocados que, atualmente, funciona em modo pop-up em várias localidades do Japão (e em algumas fora do “país do sol nascente”), onde 37% dos pedidos podem sair errados.
Como escreve Shiro Oguni no prólogo ao seu livro O Restaurante dos Pedidos Trocados (edição Pergaminho) este é um lugar que “celebra os erros”. Sublinha o autor: “surgiam-me imagens de um restaurante onde as pessoas que serviam tinham todas demência. Estava a imaginar um sítio onde um cliente pedia um prato e recebia outro (…) mas, como sabia estar no Restaurante dos Pedidos Trocados, não ficava perturbado (…) Senti um entusiasmo enorme perante a ideia de criar uma nova forma de encarar as interações, em que as pessoas aceitam que os erros acontecem e desfrutam juntas da experiência”.
Em fevereiro de 2017, Shiro Oguni já tinha uma equipa a postos. O Restaurante inaugurou em julho daquele ano, na cidade de Tóquio. Tinha apenas 12 lugares. A bola de neve mediática que se seguiu à discreta abertura do Restaurante dos Pedidos Trocados, fez do projeto um sucesso. Aquele é um “sítio muito emocionante”, como confidencia Oguni nas páginas do seu livro, “é normal um cliente receber dois copos de água, uma colher com a salada ou uma palhinha com café quente”.
Nas mais de 130 páginas da obra, o autor partilha histórias daquele singular restaurante e recorda-nos: “quando interagimos com pessoas com demência, se lhes dedicarmos um pouco mais de tempo e mostrarmos a simpatia e a atenção necessárias para compreender a sua posição, isso pode trazer ganhos importantes”.
Do livro, publicamos um excerto com duas histórias enternecedoras.
História de Midori:
«O quê? De que é que está a falar?»
Midori, agora com 81 anos, é uma mulher de uma beleza impressionante, com uma elegância e um sentido de juventude marcantes, para além de ter uma personalidade jovial e extrovertida.
A sua demência progredira já ao ponto de não se conseguir lembrar de coisas do dia anterior, mas quando chegou ao lar pela primeira vez, era tão organizada e competente que por vezes pensavam que era uma das cuidadoras.
– Gostava de voltar a trabalhar, nem que fosse só uma vez.
Estava constantemente a fazer este desabafo; no lar, já o sabíamos de cor. Antes de se casar, fora secretária executiva numa empresa de renome.
Midori fora sempre uma pessoa muito ativa. A sua família contava que, antes de surgirem os sintomas de demência, ela costumava fazer pequenas viagens de carro sozinha, mesmo já com idade avançada. Parecia ser uma pessoa que se mantinha ativa fazendo coisas que lhe davam prazer.
Por isso, assim que ouvi falar do Restaurante dos Pedidos Trocados, pensei logo na Midori. Sabia bem que, devido tanto à sua saúde física como ao progresso da sua demência, ela não poderia trabalhar muitas horas. Mesmo assim, como sentia tanta vontade de trabalhar, quis dar‑lhe a oportunidade.
No dia da inauguração, Midori divertiu‑se muito a trabalhar.
Mas, após a primeira hora, estava bastante cansada e teve de se deitar na sala de descanso. Parecia mesmo exausta, não só fisicamente, como também mentalmente.
– Hoje trabalhou muito, Midori. E se fôssemos para casa?
Ela concordou, e avisámos o resto das pessoas da sua saída antecipada. Ao fim do dia de trabalho, voltei ao lar com os meus colegas. Assim que chegámos, vi Midori na varanda do segundo andar. Parecia cheia de energia – estava a dobrar a roupa lavada. Isso fez‑nos lembrar que, desde que ela pudesse descansar, conseguia recuperar de tudo.
Chamei‑a, de lá de baixo, e o rosto de Midori rasgou‑se num sorriso. Acenou‑me, com os dois braços esticados.
Acenei de volta e disse:
– Midori, obrigada pelo dia de hoje.
– O quê?! De que é que está a falar? – respondeu ela, ainda a sorrir.
A experiência de trabalhar no Restaurante dos Pedidos Trocados apagara‑se por completo da memória de Midori.
Mas não fazia mal. Isso faz parte da nossa vida diária, assim como da dela. Senti o calor do seu sorriso aquecer‑me o coração.
No restaurante, os meus colegas e eu ficáramos a pensar se não teríamos subestimado o fardo que o trabalho seria para Midori. Todos nos sentíramos muito mal ao vê‑la tão cansada.
O Restaurante dos Pedidos Trocados é um sítio maravilhoso, onde os erros são aceites como fazendo parte da vida. Mas, por outro lado, não deixa de ser um restaurante, com clientes que pagam pelas refeições, e tínhamos de admitir que nem todas as pessoas com sintomas de demência estariam aptas para trabalhar lá. Talvez este trabalho fosse simplesmente demasiado difícil para Midori.
Mas, ao ver o seu sorriso, senti que todas estas dúvidas se desvaneciam. Embora Midori se tivesse esquecido de tudo, tinha um sorriso radiante no rosto. E esse sorriso dizia‑me tudo o que eu precisava de saber.
A História de Emiko:
«Achas que está com fome?»
Emiko tem 80 anos. É muito extrovertida e gosta de ajudar os outros. É claro que, no Restaurante dos Pedidos Trocados, era a melhor no serviço ao cliente. Perante a simpatia e o radiante sorriso de Emiko, era impossível não sorrir de volta.
Por vezes, ficava a tagarelar com os clientes, mas ela é mesmo assim.
A sua personalidade encantadora e cheia de entusiasmo fez dela uma das pessoas mais queridas do restaurante. Quase todos os clientes pediam para tirar uma foto com Emiko, e ela ficava sempre bem! Parecia mesmo contente, cheia de vida.
Contudo, reparei que, algum tempo depois de começar a trabalhar, o seu sorriso foi desaparecendo e ela parecia estar a ficar irritada.
– Oh não! Achas que a Emiko está com fome? – perguntei a um colega.
– Pois é! Deve estar…
– Metemos o pé na poça, não foi?
Emiko não comera ainda, e fora um erro crasso da nossa parte não nos apercebermos disso mais cedo.
Toda a gente fica maldisposta quando tem fome. Os bebés exprimem a sua irritação através do choro; já os adultos de barriga vazia exprimem‑na refilando. Um cérebro plenamente funcional permite‑nos controlar esse impulso e esperar, mais ou menos pacientemente, pela refeição. Mas no caso das pessoas com demência, os mecanismos cerebrais que controlam esses impulsos são menos eficazes. Para além disso, podem sentir‑se frustradas com o mais pequeno desconforto, como excesso de frio ou de calor. Ficam muito rapidamente de mau humor, e não o conseguem esconder.
O dia da inauguração do Restaurante dos Pedidos Trocados foi bastante agitado. Tínhamos uma hora marcada para abrir o restaurante; saímos do lar já com bastante pressa, mas tivemos o azar de apanhar um engarrafamento. Ficámos todos stressados, com medo de não chegar a horas e de começar mal este dia tão importante. É claro que sabíamos que os nossos residentes precisavam de comer; mas, sem tempo para preparar uma refeição ligeira, tivemos de deixar isso para mais tarde.
Chegados ao restaurante, contudo, também não tivemos tempo de o fazer; tínhamos de preparar tudo para a abertura de portas, para além de voltar a explicar ao nosso grupo porque estávamos ali (muitos haviam-se esquecido, entretanto). Não houve sequer tempo para lhes preparar um snack.
Assim, Emiko começara a trabalhar sem ter comido. Sabíamos que era arriscado, mas não havia outra opção.
– Emiko, que tal fazer uma pausa?
Quando fiz esta sugestão, ela estava já com uma expressão muito irritada. Fomos para a sala de descanso e esperámos que lhe fosse servida a sua refeição. Quando chegou a piza, Emiko estava com tanta fome que a comeu todinha! De barriga cheia, voltou a ser a pessoa sorridente e simpática que conhecíamos.
Entretanto, chegara a hora de fechar o restaurante. Se nos tivéssemos preparado melhor, Emiko poderia ter convivido com mais pessoas e espalhado mais o seu radiante sorriso.
Ainda hoje penso nisso.
– Ontem foi um dia muito divertido, não foi, Emiko? Toda a gente gostou tanto de si…
Quando disse isto a Emiko, no dia a seguir à inauguração, ela lançou‑me um olhar perplexo. «Ah», pensei, «ela já se esqueceu, pois é».
Quando se convive com pessoas com demência, estes esquecimentos fazem parte do dia a dia. Não poderia perguntar‑lhe se ela gostaria de ter trabalhado mais, ou se quereria voltar.
Tenho pena.
Lembro‑me muito bem de Emiko nesse dia. Estava tão animada, a fazer toda a gente sorrir. Fico tão feliz por ela.
Mas, da próxima vez, comemos antes de sair!
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