Poucas horas mediaram entre o envio de um e-mail a Luca Cesari e a resposta desde Itália. A Luca, pedimos-lhe para início de conversa, uma breve descrição da sua pessoa: “sou um gastrónomo apaixonado e lido principalmente com a história da culinária italiana. Escrevo para várias revistas e jornais italianos, como Gambero Rosso, Dissapore e Il Sole 24 Ore”.

O também jornalista foi sucinto na apresentação que faz de si, o que contrastou com a generosidade nas respostas às perguntas que lhe enviámos a propósito do tema do seu primeiro livro:  Breve História da Massa em Dez Pratos Célebres (Bertrand Editora). Para temperar o BI de Luca, bolonhês, nascido em 1971, acrescentamos mais uma pitada de informação, retirada da sinopse ao seu livro inaugural de gastronomia: “foi uma criança ‘esquisitinha’, alimentada a tagliatelle e tortellini por uma avó cozinheira”. E, como sabemos, na origem, está sempre aquela avó ou mãe obreira de uma cozinha poderosa. Talvez por isso, Luca, já adulto, se tenha tornado historiador do fenómeno alimentar, com um especial interesse na origem dos pratos mais famosos e representativos da tradição italiana.

Luca, contudo, não se acomoda a lugares-comuns sobre a mesa transalpina. Em quase 300 páginas, vasculha o baú da origem para nos responder a perguntas como: a lasanha é comida de camponeses ou um prato luxuoso? A carbonara leva natas? A massa é há quanto tempo sinónimo de cozinha italiana?

Com Luca percebemos que a cozinha italiana que tomamos como perene, sobrevivente a séculos, é relativamente recente, não mais de cem anos. Às massas, esse marco das mesas das mães e avós italianas, não coube qualquer referência no mais importante livro de receitas do século XIX na então jovem nação.

Os fatores que levaram à mundialização das massas, o seu impulso à boleia, primeiro do Cinema, depois da Internet, estão entre os territórios que percorremos nesta conversa com o homem que “adora” a cozinha portuguesa. Luca não abre grandes exceções a provar pratos de massa fora de Itália. Mas, em Portugal, provou um que lhe traz memórias.

No prefácio de Breve História da Massa Italiana recorda a cozinha da sua avó. É inevitável falarmos da cozinha italiana sem referirmos as avós e mães ou temos outros “construtores” anónimos?

Na realidade, muitos chefs italianos, a começar por Massimo Bottura, sempre disseram que a sua primeira escola de culinária foi a avó. O verdadeiro motivo é que, ao contrário de hoje, há 40 ou 50 anos, era muito mais fácil ter em casa uma avó que preparava refeições para toda a família, repetindo as dezenas de receitas que fazia desde pequena. Obviamente, cada um tinha as suas próprias receitas de família e havia milhares de variações, mas olhando para trás percebemos que esses foram os anos em que a culinária italiana se consolidou no mundo.

Uma Breve História da Massa em Dez Pratos Célebres
Uma Breve História da Massa em Dez Pratos Célebres "É muito difícil estabelecer o momento exato em que um prato foi inventado: a maioria desses pratos são completamente anónimos e decorrem da evolução de preparações que existiam anteriormente", afirma Luca Cesari. créditos: Gianluca Simoni

O Luca contraria no seu livro a ideia de uma cozinha italiana que se mantém imutável há gerações. A atual cozinha italiana é uma invenção do século XX?

Sim, a cozinha italiana que conhecemos é uma invenção do século XX. Obviamente, existia uma cozinha italiana ainda antes do século XX, mas era muito diferente do que imaginamos e, se quiser, ainda mais fragmentada: o Norte da Itália comia muito pouca massa. Aliás, os livros de receitas da época não diferiam muito da cozinha francesa e, nalguns casos, da alemã, enquanto no Sul se dava a grande revolução que envolveria toda a Itália após a Segunda Guerra Mundial. Os pratos que nos representam e de que falo no meu livro alcançaram a sua forma atual nos últimos anos de 1970.

No seu livro usa a expressão “gastropurista” para designar “o novo sacerdote da tradição culinária italiana” o que pressupõe que “os pratos tradicionais sempre foram idênticos aos que conhecemos hoje”. Ou seja, o “grastropurista” não vê a evolução que refere. Há muitos “grastropuristas” em Itália?

Muitos, muitos. O facto é que cozinhar faz parte da nossa identidade e, como uma bandeira, gostaríamos que fosse imutável. Como tal, quando alguém propõe mudanças, temos dificuldade em aceitá-las.

Qual foi o critério que usou para escolher as dez massas que apresenta no seu livro?

Escolhi as receitas mais representativas (ver caixa), das quais todos já ouviram falar pelo menos uma vez, mesmo que não morem na Itália. Também tentei contar a história de pratos com uma longa evolução que pudessem explicar como se formou a nossa gastronomia nacional.

As dez massas que Luca Cesari inclui no seu livro:

Fettuccine Alfredo
Amatriciana
Carbonara
Gnocchi
Tortellini
à bolonhesa
Ragu à napolitana
Ragu
à bolonhesa
Lasanha
Pesto
à genovesa
Esparguete com molho de tomate

Se tivesse incluído mais um prato de massa no seu livro qual seria o 11º?

Teria incluído um prato de massa que saiu de moda, mas que adoro e comia quando era criança: o Canelone. Um prato incrível que hoje em dia raramente se cozinha, por motivos que não são muito claros e que precisavam de uma investigação.

Os pratos que escolheu para o seu livro mereceram consenso em Itália entre críticos de cozinha, leitores, chefes de cozinha, como sendo os melhores representantes da vossa gastronomia?

Diria que sim, estes pratos podem ser considerados os mais representativos, embora cada região, na verdade cada cidade, tenha as suas especialidades locais que em alguns casos são muito famosas.

A história de Itália enquanto país unificado é recente, data do século XIX. As massas foram um objeto de afirmação das identidades regionais?

Apenas em parte. Mesmo depois da unificação da Itália [1861], existem livros de receitas com muito poucas especialidades de massas, sendo um dos mais famosos La Cuciniera Bolognese (A Cozinheira Bolonhesa) de 1874. Esta obra não contém um único prato de massa. Este é um fenómeno recente que ganhou corpo no século passado, quando as diferentes identidades regionais se formaram, talvez em resposta à unificação italiana.

As histórias que frequentemente lemos sobre a invenção de um prato, exceto em casos raros, de grandes chefs, vinculado a um cozinheiro ou personalidade da Idade Média ou do Renascimento, costumam ser apenas lendas.

Sente que em cada um dos pratos de massa que apresenta lhes chegou às origens ou é impossível determinar o quando e o onde?

É muito difícil estabelecer o momento exato em que um prato foi inventado: a maioria desses pratos são completamente anónimos e decorrem da evolução de preparações que existiam anteriormente. O livro de receitas é uma fonte privilegiada que nos informa da existência do prato, que já deve ter sido conhecido de alguma forma dentro de um território, mas nunca revela o momento exato do seu nascimento. As histórias que frequentemente lemos sobre a invenção de um prato, exceto em casos raros, de grandes chefs, vinculado a um cozinheiro ou personalidade da Idade Média ou do Renascimento, costumam ser apenas lendas.

Na minha investigação para o livro usei diferentes fontes, a principal continua a ser os livros de receitas, mas a literatura e os artigos de jornal também foram muito importantes na reconstrução da história dos pratos.

Breve História da Massa em Dez Pratos Célebres
Breve História da Massa em Dez Pratos Célebres créditos: Bertrand Editora

Como sabemos, para onde foram os italianos, foi a sua cozinha. O que fez das massas italianas um sucesso global? A sua adaptabilidade?

Certamente que a migração maciça de italianos exportou a nossa cultura alimentar para todo o mundo, mas o sucesso global da comida italiana foi alcançado ao longo de 30 ou 40 anos, quando o mundo culinário havia sido dominado pelos franceses nos três séculos anteriores. Os motivos desta ultrapassagem e, sobretudo, a velocidade com que aconteceu são espantosos. O facto da massa poder servir para fazer pratos simples, num curto espaço de tempo, provavelmente permitiu uma adaptação às necessidades do mundo moderno. A criatividade dos chefs de todo o mundo fez o resto.

Considera que o Cinema foi um dos grandes construtores da cozinha italiana do século XX?

Certamente. O Cinema, mais do que qualquer outro meio de comunicação moderno, influenciou o sucesso e a difusão da imagem das massas à escala mundial. Nos últimos anos, o mesmo tem acontecido graças à internet e às redes sociais, porque certos tipos de massas, como a carbonara, se prestam bem a serem fotografados e compartilhados.

No livro abala alguns mitos sobre a cozinha italiana. Quer partilhar alguns com os leitores portugueses?

Por exemplo, o de que a massa carbonara é um prato tanto italiano quanto americano e nasceu no final da Segunda Guerra Mundial. A primeira receita para este prato pode ser encontrada num guia de restaurantes de Chicago. Muita gente acredita que a carbonara sempre se preparou da mesma forma que conhecemos hoje, com ovos, bacon, queijo pecorino e pimenta, mas teve muitas variações ao longo dos anos. A primeira receita publicada na Itália, em 1954, tinha ingredientes como bacon, ovos, gruyere e alho.

O cinema, mais do que qualquer outro meio de comunicação moderno, influenciou o sucesso e a difusão da imagem das massas à escala mundial.

As histórias que apresenta no seu livro surpreendem. Enquanto historiador, houve algum facto que o surpreendesse em particular?

Estranhamente, fiquei surpreendido ao descobrir que a primeira forma de lasanha provavelmente remonta aos tempos da Roma Antiga. Não era um facto nada óbvio e, julgo, fui um dos primeiros a encontrar evidências disso.

Que limites nunca devemos ultrapassar na recriação de um prato de massa italiana?

Nenhum. Cada cozinha tem a sua própria interpretação de massa e traz a sua própria cultura para o prato. Temos de ser claros num ponto: se eu comer nos Estados Unidos, provavelmente irei comer uma especialidade ítalo-americana, não italiana. Não devemos confundir a culinária local que usa massas, e cria o seu próprio estilo de cozinha, com a culinária de Itália.

No estrangeiro já provou um prato de massa que superasse os pratos feitos em Itália?

Não nunca. Mas não costumo comer muita massa no exterior, gosto de conhecer a culinária local quando viajo.

Já visitou Portugal?

Sim, já visitei e fi-lo ainda recentemente. Adoro a cozinha portuguesa. Para além dos fantásticos pastéis de bacalhau que adoro, descobri o fantástico leitão assado que me enlouquece literalmente. Entre as sobremesas, pode ser banal, mas um pastel de nata fresquinho continua o meu favorito.

Luca, provou massa em Portugal? O que lhe ficou na memória?

Na minha última viagem ao vosso país provei uma excelente massa recheada do chef Henrique Ferreira no Paço dos Cunhas de Santar.