Ao segundo livro, Daniela Ricardo, sem esquecer a mensagem e princípios da alimentação, deixados no primeiro título (“As Viagens da Comida Saudável”) leva-nos para novos territórios. Daniela propõe-nos, agora, “Cozinhar com Amor” (Edições Chá das Cinco). Licenciada em enfermagem, área onde praticou 20 anos, Daniela assume-se como uma “chef de cozinha natural e professora e consultora de alimentação natural”. Conceitos que transpõe para o presente título.

A propósito do lançamento deste título, conversamos com Daniela e sobre aquilo que entende ser uma alimentação responsável e muito pouco egoísta, porque preocupada com o nutrir bem, mas também com a sustentabilidade do planeta. Em “Cozinhar com Amor” Daniela não está sozinha, vem acompanhada por amigos. F

átima Lopes, Geninha Varatojo, Pedro Norton de Matos, Rute Caldeira, Luís Baião e Alexandre Gama contam as suas histórias de vida e sugerem receitas. Sempre com o mesmo espírito de partilha desta apaixonada pela alimentação em equilíbrio com corpo e alma. Em 2004 Daniela decidiu tirar o curso de Shiatsu, mais tarde estudou no Instituto Macrobiótico de Portugal, formando-se como professora e consultora de Macrobiótica. Atualmente abraça a iniciativa aBiofamily.

Daniela, não é a primeira vez que falamos, fizemo-lo quando lançou o seu título anterior, “As Viagens da Cozinha Saudável”. Como define esta sua cozinha?

Defino a minha cozinha como consciente e natural. Consciente porque é necessário sabermos o que colocamos no prato e se está nutricionalmente equilibrado. Natural porque prefiro que todos os alimentos sejam o menos processados possível. No fundo, escolho ser eu fazer o processamento dos alimentos o que me traz uma garantia acrescida. Depois, a minha cozinha é simples, tem como objetivo nutrir o corpo de forma equilibrada mas tendo em conta que somos um todo, vivemos num planeta, temos que o preservar, caso contrário ele irá perecer e, consequentemente, também nós.

O título do presente livro sintetiza a sua forma de olhar para a alimentação, “Cozinhar com Amor”. Vivemos numa sociedade onde se cozinha em modo automático e esquecemos a entrega e os outros?

Acho que se perdeu a ligação à cozinha. O que eu via a minha avó fazer, hoje em dia já não lhe vejo fazer. A vida e o mundo mudaram. Mas noto que há muito cuidado quando temos crianças, nos primeiros anos queremos dar-lhes o melhor em termos de nutrição. As pessoas reinventam-se para dar àquela criança o melhor. Dou algumas consultas de orientação alimentar a crianças e adultos e noto que os pais estão sempre preocupados com os filhos e menos com eles mesmos. Muitas vezes consideramos, no campo alimentar, que para nós, adultos, qualquer “coisa” serve. Mas, repare, tudo o que comemos entra no sistema que somos nós mesmos e fica como nossa parte constituinte. Vai alimentar as nossas células e construir o nosso corpo de alguma forma.

“A alimentação de cada um de nós é um ato de responsabilidade para com o planeta”
“A alimentação de cada um de nós é um ato de responsabilidade para com o planeta”

Por vezes existe a preocupação com o factor físico mas esquecemo-nos do equilíbrio da nossa componente emocional. Porque há esta dissociação?

É verdade. Costumo dizer que existem várias formas de nos alimentarmos, pelo alimento físico que colocamos na boca, mas também pelo que sentimos e pensamos, pelas relações que temos. Tudo isso são formas de nos nutrir. Dou muitas vezes este exemplo: podemos ter uma alimentação muito equilibrada, como a dieta alcalina, que está na moda e que eu defendo e recomendo. Contudo, se paralelamente tivermos pensamentos negativos e uma atitude hostil perante a vida essa alcalinidade extingue-se. Isto porque estamos a nutrir sentimentos que acidificam o nosso meio interno. Temos de ganhar consciência de nós próprios, contribuindo para um todo.

A Daniela diz-nos logo na abertura do livro que este nos traz não uma dieta, mas antes um estilo de vida. Quer explicar-nos?

Tudo o que fazemos contribui para a nossa dieta, logo o nosso dia-a-dia tem de estar de acordo com esse estilo de vida. No fundo vai ao encontro do que expressei na resposta anterior.

“A alimentação de cada um de nós é um ato de responsabilidade para com o planeta”
“A alimentação de cada um de nós é um ato de responsabilidade para com o planeta”

Daniela, defende que a alimentação de cada um de nós é um ato de responsabilidade para com o planeta. Quer aprofundar?

Sim. Para nos nutrirmos de acordo com o que precisamos não temos necessidade de aditivos químicos. A agricultura biológica está na moda, mas mais do que estar na moda é mesmo necessária. Repare, a agricultura intensiva está a estragar os solos e o ecossistema. Muitas espécies vegetais e animais desaparecem e não deviam porque contribuem para todo um equilíbrio do planeta. Um alimento proveniente de agricultura biológica tem muitos mais nutrientes do que o mesmo alimento proveniente de agricultura intensiva. Se compararmos tabelas de valores verificamos que certos elementos nem aparecem nos produtos provenientes de agricultura intensiva. Um alimento teve tempo para crescer ao seu ritmo e o outro não. Outro aspeto que condiciona muito o nosso planeta é o consumo de carne, consumimos muita. Sem entrar em questões de ética, fundamentais nesta questão, sublinho que a Organização Mundial da Saúde já referiu que grande parte do buraco do ozono é provocada pelo metano produzido pelas vacas. Os animais não têm, naturalmente, culpa. Nós, humanos, é que criámos uma base da cadeia de consumo viciada. Não digo para erradicarmos completamente o consumo de carne, mas para o reduzirmos. Em suma, devemos pensar mais em termos globais, na pegada ecológica, nos estragos que aquele tipo de indústria traz ao planeta, que é a nossa casa.

Costumo dizer que existem várias formas de nos alimentarmos, pelo alimento físico que colocamos na boca mas também pelo que sentimos e pensamos, pelas relações que temos

Ou seja, na sua perspetiva ainda estamos num ponto de retorno. Mas, o contexto atual dá-nos argumentos para encararmos esta inversão?

É uma resposta complexa. Digamos que o planeta evolui sempre. Ou seja, mesmo que nós deixemos de existir, sei que temos de fazer algo e não ficarmos sentados à espera que a humanidade se extinga, o rumo não mudará. Cabe-nos a nós enquanto consumidores fazermos boas escolhas e preservar o futuro comum.

A Daniela é uma pessoa viajada e como tal tem muitos termos de comparação. Quando olha para o nosso país quais são os pensamentos que lhe surgem em relação a estas questões?

Em termos alimentares a primeira coisa que me surge é que comemos demais, doses de comida muito grandes, muito fartas. Temos que comer menos, pois o excesso nota-se na população, temos crianças com diabetes e com obesidade, o que não acontecia há alguns anos. A nossa sociedade está a ficar doente.

“A alimentação de cada um de nós é um ato de responsabilidade para com o planeta”
“A alimentação de cada um de nós é um ato de responsabilidade para com o planeta”

No seu livro a Daniela apresenta uma visão muito sua da Pirâmide Alimentar. Quer partilhar connosco?

Sim, a minha pirâmide é muito semelhante à da macrobiótica, muito semelhante à pirâmide atual, a da Universidade de Harvard e tem a ver com a minha experiência. Na minha perspetiva nenhum alimento está proibido, ao olharmos para a pirâmide verificamos que todos os grupos estão lá. A frequência e a quantidade do que se come é que deve ser diferente do que se pratica hoje em dia. Na base da alimentação devem estar os cereais integrais, os legumes e as leguminosas, no livro explico porquê. Os primeiros dão-nos os hidratos de carbono complexos, os segundos as fibras e as vitaminas e as últimas são a fonte proteica de origem vegetal, evitando o colesterol proveniente da fonte animal. Tudo o resto é um acrescento. Semanalmente devemos, ainda, incluir as sementes, as frutas, as algas. De uma forma mais esporádica consumir os outros alimentos como a carne, os peixe, os ovos, as aves. Estes são quase opcionais e em menor quantidade, não são para frequência diária, são a ponta da pirâmide.

arroz de coentros
arroz de coentros Arroz de coentros

Verificamos que isso contribui para a variedade de receitas que encontramos neste seu livro, contrariando a ideia de que uma mesa com pouco alimentos é restritiva.

Existe uma variedade muito grande de alimentos que podemos incluir numa dieta equilibrada, ao contrário do que as pessoas pensam. Isso é um mito, é uso ouvirmos a seguinte expressão: “Se não comes carne nem peixe, então comes o quê?”. O planeta tem tantas coisas boas para nos oferecer e basta observarmos à nossa volta. Perdemos foi esse hábito, basta vermos o que cresce nas árvores. Nesta altura temos dióspiros, romãs, castanhas, uma série de cereais como o arroz. Contudo, comemos sempre as mesmas coisas; massa, batata e arroz branco, que eu não recomendo, mas sim o integral; mais a carne e o peixe. Dos legumes quase nem se fala, quando muito uma salada muito fraca. No pão podemos diversificar para o de espelta, de aveia, de arroz. Podemos variar, agora está na moda a quinoa que é low carb e tem mais proteina. O millet é bom para quem tens problemas de estômago, para quem quer nivelar teores de açúcar. Já o pai da medicina, o grego Hipócrates dizia no século I a.C. que a comida é um medicamento, “que o teu alimento seja o teu remédio e que o teu remédio seja o teu alimento”.

“A alimentação de cada um de nós é um ato de responsabilidade para com o planeta”
“A alimentação de cada um de nós é um ato de responsabilidade para com o planeta”

Conte-nos um pouco sobre essa frase de Hipócrates…

Os doentes iam ter com Hipócrates e a forma inicial de ele os tratar era passar-lhes uma dieta. Atualmente a maior parte das doenças da sociedade moderna são doenças de excessos, então se retirarmos esses excessos já é suficiente para a pessoa readquirir o equilíbrio. Ou seja, por vezes é melhor retirar do que acrescentar. Hipócrates levava as pessoas para uma dieta de cevada durante uma semana, se não resultasse passava então para as `mezinhas`, as ervas e xaropes.

 O planeta tem tantas coisas boas para nos oferecer e basta observarmos à nossa volta. Perdemos foi esse hábito, basta vermos o que cresce nas árvores

A Daniela neste livro não está sozinha, trouxe alguns amigos que também partilham com o leitor as suas experiências. Pode falar-nos um pouco sobre isso?

Convidei a Geninha Varatojo, o Pedro Norton de Matos, o Luís Baião, o Alexandre Gama,a Fátima Lopes e a Rute Caldeira, porque eles têm as mesmas preocupações que eu tenho no meu dia-a-dia. Nem todos eles fazem exactamente o mesmo tipo de alimentação que eu mas têm essa preocupação. Foi isso que eu quis demonstrar. Seja qual for o nosso estilo de vida isso é possível, independentemente da nossa atividade profissional, promover uma alimentação saudável. A Geninha dá-nos o exemplo de como criar quatro filhos tendo uma alimentação deste género. O Pedro mostra-nos como levar uma vida mais sustentável e a razão de ele ter mudado. A Fátima Lopes tem uma grande preocupação em nutrir a família. A Rute dá-nos o exemplo com a sua atitude face a uma doença que teve. Curou-a através da mente e da boca. Um alimento pode promover a uma cura e é um bem acessível a todos nós.

Tapenade de azeitona preta
Tapenade de azeitona preta Tapenade de azeitona preta

É curioso vermos um especialista em Feng Shui no seu livro. Gostava que aprofundasse.

O Feng Shui está muito ligado às cinco trasformações que ocorrem na natureza. Partindo destas cinco transformações e organizando-as de acordo com as estações do ano, conseguimos equilibrar o nosso prato. Por exemplo, agora estamos no outono. Esta altura do ano é a da queda da folha, tudo tem uma energia descendente, em relação ao solo. Em termos de elemento, é mais metal. Mostra-nos que a emoção associada é, por exemplo, a tristeza e logo temos mais depressões. Os órgãos que estão associados a esta época do ano são o intestino grosso e o pulmão. Quais são os cereais mais associados? O arroz integral. É só um exemplo de como podemos associar o Feng Shui à alimentação.

“A alimentação de cada um de nós é um ato de responsabilidade para com o planeta”
“A alimentação de cada um de nós é um ato de responsabilidade para com o planeta”

Há uma pessoa que assume particular importância neste contexto, o Luís Baião, o seu marido. Dedica-lhe inclusivamente a dedicatória.

O Luís é de extrema importância em todas estas questões que temos abordado. Foi com ele que desenvolvi mais a minha paixão pela cozinha consciente e natural. Começámos a viajar e a contactar com outras realidades e isso fez-me perceber que podemos sempre adaptar a nossa alimentação mesmo em viagem. Por exemplo não comer doces. Ele também passou por um desafio de vida, o que me fez tornar mais consciente. O Luís teve um cancro na base da língua que se curou com os dois tipos de medicina, a tradicional e a convencional. Juntos temos um projeto chamado “Casa dos Sonhos”. É o nosso lar, mas também um local onde recebemos hóspedes, melhor dizendo, amigos. Procuramos que tenha uma energia acolhedora. O objetivo dos nossos retiros é que as  as pessoas se sintam em casa.

Que salientar algumas das receitas que inclui no seu novo livro?

Podemos falar de algumas que são bem aceites mesmo por quem não tem uma alimentação isenta de proteína animal. O “Seitan assado no forno com castanhas”. Há pessoas que pensam que estão a comer carne. Mas não, pois na realidade é a parte proteica dos cereais. As crianças adoram. O segredo é fazermos comida apetitosa e sabe-la temperar. Ela pode ser saudável e muito saborosa como é o caso das pizas, das granolas. Gosto muito de uma receita, a “Nutella de cacau”, porque é à base de feijão branco com avelãs e cacau. Os desportistas adoram dado ser hiperproteica. Tenho no livro algumas opções de peixe, mas também de pequeno-almoço, de lanches, de snaks, de sumos. Algumas receitas já havia produzido anteriormente, outras desenvolvi especificamente para o livro, outras alguns convidados do livro sugeriram, como o “Salame de chocolate” da Fátima Lopes.

Brownie sem pecado
Brownie sem pecado Brownie sem pecado

Daniela, cozinhar com amor não quer dizer que não possamos comer doces?

O ideal é conciliarmos o doce natural dos alimentos e isso satisfazer-nos. Como nem sempre é possível, vamos buscar o açúcar de melhor qualidade, como a geleia de arroz ou a geleia de milho, obtida através de um processo enzimático muito natural, em que se extrai o doce diretamente do alimento. Tem mais nutrientes do que o açúcar de cana, não são calorias vazias.

Pensou todo o livro ao pormenor. As louças onde apresenta a comida são orgânicas, certo?

Este livro foi todo fotografado em louça 100% orgânica e toda feita à mão. Nós desenvolvemos uma linha de louça especificamente para este livro. Ou seja, não posso aconselhar produtos orgânicos, tudo biológico e, depois, dispo-los numa louça qualquer. Esta louça, em grês, foi desenvolvida em parceria com a Barru uma olaria portuguesa de Redondo, no Alentejo. Pode encontrar uma mostra desta louça na minha página, aBiofamily.

Daniela, com tudo isto a enfermagem ainda faz parte da sua prática diária?

Confesso que em janeiro deste ano tive de tomar uma decisão. Trabalhei 20 anos no Instituto Português de Oncologia do Porto, na unidade de transplante de medicina óssea. Entre a casa, os livros, as apresentações, as palestras, a cozinha não tinha tempo. Pensei, onde posso fazer maior diferença? No hospital onde não posso ajudar com a alimentação? Ou cá fora onde posso trabalhar na prevenção? No hospital trabalhamos no controlo de danos. E a cura de um dano pode trazer outros danos. O diagnóstico precoce para mim não é prevenção. Com as minhas iniciativas trabalho à priori, antes do dano.

Sumo carregado de energia vital
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