Que o alimento também se come com os olhos é, há muito, termo assente e assumido e evidência orgânica do próprio ato de nutrir. Vemos primeiro, operamos com o olfato entretanto e, só depois, degustamos. Quando a relação entre estes três momentos flui sem desilusões entre a apresentação e a ingestão, dá o comensal por muito bem empregue a função.
Serve o preâmbulo para ilustrar aquilo que Vera Silva, chefe no Ânfora, restaurante do hotel Palácio do Governador, em Belém, nos apresenta na sua carta de verão.
Nos perto de 20 momentos à mesa que engendrou, Vera Silva assume-se como uma purista do sabor e do produto. Individualiza-o e apresenta-o de forma irrepreensível no prato, dispondo o elenco de ingredientes para os provarmos per si, ou para os combinarmos a nosso prazer.
Vera propõe-nos este exercício de degustação sem perder o norte às raízes da cozinha portuguesa (embora com concessões a alguns sabores internacionais), à sazonalidade e à procura de ingredientes esquecidos ou em vias de o serem.
“As minhas raízes alentejanas, próximas a Reguengos de Monsaraz, em São Marcos do Campo, pesaram na forma como olho para a cozinha”, sublinha Vera, recordando os avós e a cozinha rústica com os produtos que dava a região. Uma cozinha com as contingências que conhecemos aos comeres do território alentejano, parco na diversidade, mas rico na inventiva.
Vera traz no currículo académico um curso de Gestão e Produção de Cozinha, Gestão de F&B, e algumas especializações. Uma profissional que não deixa em mãos alheias os seus créditos com uma boa dose de assertividade, humildade quanto baste e uma enorme criatividade. Uma assinatura profissional já demonstrada anteriormente nas cozinhas do Sana Lisboa e do The Vintage (Lisboa).
“Na presente carta, tenho como ponto de partida a ideia de abrir um livro e contar uma história. Sendo uma carta de verão, naturalmente inspirei-me no calor, no sol, na praia, num bom livro”, substancia Vera ao SAPO Lifestyle, acrescentando, “na primeira carta que produzi para o Ânfora criei identidade. Agora `compliquei` um pouco e introduzi mais técnica. Cada prato tem seis a sete ingredientes. Procurei fugir do calor do fogão e trabalhei mais com a faca sobre a tábua”.
Vera sublinha o muito trabalho de pesquisa subjacente a esta sua nova carta, mas também a diversão de toda a equipa no processo de construção do elenco.
Um desfilar de propostas que incluem elementos inusitados como o tremoço, “um desafio dado ser normalmente um petisco servido a frio e com casca. Dado ver como acompanhamento de uma carne maturada, aconselho que seja degustado com uma cerveja Bohemia”.
E começa a história
Sob o teto abobadado da sala que acomoda 60 convivas - outros 30 no exterior, na esplanada - e onde pontua uma decoração inspirada nos séculos dos Descobrimentos, temos a oportunidade de percorrer uma carta que nos conta uma história.
Uma narrativa que entronca na própria história do lugar. O hotel ergue-se onde foi em tempos a Casa do Governador da Torre de Belém e, onde, os séculos pretéritos assistiram ao afã de uma salga romana e à exportação do preparado de peixe (o garum) para muitas latitudes e longitudes do Império. Uma exportação feita, precisamente, em ânforas. Escusado será, partindo deste termo, explicar onde cunha o restaurante o nome.
E como entrar na história é exercitar a veia da narrativa, esta carta do Ânfora apresenta-se precisamente como tal. Vera faz do seu périplo pelas entradas, peixes, carnes, legumes e sobremesas uma proposta de viagem e um espicaçar da nossa imaginação. “Começamos o nosso conto” e com ele uma seleção de pães, manteigas simples e com algas (3,00 euros).
“A Caminho da Descoberta” numa aproximação aos pratos de resistência, aqui ainda com uma configuração ligeira, destacando-se a Sardinha, com bôla de cebola e coulis de pimentos (7,00 euros), dando prova de que também esta espécie se presta a pratos com agradável sentido estético e numa exploração de sabor além da nossa tão querida sardinha assada. Um prato onde não falta um apontamento comestível recriando o, também tão nosso, Coração de Viana.
Ainda no elenco das carnes do mar, um “Camarão sem medida”, ao alhinho e com pimenta da horta (12,00 euros), a que se acrescenta um Carpaccio do lombo, as repolgas (um cogumelo) e um aveludado de parmesão (17,00 euros).
“Caiu na rede é peixe” é o segundo momento desta carta de verão. Um descritivo que não nos deixa margem para dúvidas. Quatro sugestões com sabor a mar que incluem um Pregado e lulas, numas ervilhas e os seus cuscos transmontanos (20,00 euros). Um prato que reabilita para a mesa um recurso local, cozinha das memórias transmontanas, um produto confecionado a partir de trigo Barbela. Ainda nas afeições marítimas, destaque para o Salmonete e salada algarvia e mescla de alface (25,00 euros).
“Não há carne sem osso” marca outra das etapas desta história sensitiva contada no restaurante Ânfora. De sublinhar o Lombo de novilho, com batata rosti e legumes baby (22,00 euros), o Entrecôte maturado, acompanhado de legumes grelhados e uma leve textura de tremoço. Uma vez mais, a preocupação de Verão no que respeita ao trazer para a mesa um produto arreigado aos nossos comeres, embora afastado das refeições de robustez, o tremoço.
Uma carta que não esquece o pendor vegetariano - “Os legumes os reis da festa” - num quarteto de sugestões. Destaque para os Brócolos numa leve salada de ananás, maçã e renda de amêndoa (9,00 euros), um Burguer de grão, com creme de cogumelos, alface, cenoura baby (13,00 euros).
“A cereja no topo do bolo” apresenta-se-nos como o remate natural da degustação, com um quinteto de sobremesas onde há a salientar a mestria de uma das criações. Vera chama-lhe “A goiaba” e sobre o prato chega ao comensal um falso gelado Magnum, de brilho na feição e que se derrete ao encosto da colher. Um creme delicioso de caramelo e manjericão.
A ter em muito boa consideração a carta de vinhos e entregue ao enólogo Manuel Moreira que lhe desenhou 300 entradas, com néctares de todas as regiões portuguesas e algumas referências internacionais.
Hotel Nau – Palácio do Governador
Rua Bartolomeu Dias, 117 (Belém), Lisboa
Reservas: Tel: 212 467 800; E-mail: palaciodogovernador@nauhotels.com
Horário: Das 12h30 às 15h00 e das 19h30 às 22h00
Comentários