No campeonato nacional das aquisições, transferências e permutas no que toca às labutas gastronómicas, recebemos já neste julho de 2018 a nota do novo rosto e inspiração a liderar a cozinha do restaurante Vistas, do Monte Rei Golf & Country Club, em Vila Nova de Cacela, no Algarve.
Albano Lourenço, chefe de cozinha que nos últimos três anos construiu a carta desta unidade no Sotavento algarvio, sai, cabendo agora a responsabilidade de elevar a casa à estrela Michelin (é o objetivo traçado pela administração) a um filho destes territórios meridionais. Rui Silvestres, 32 anos, algarvio de gema, o nosso mais jovem chefe de cozinha a alcançar, em 2015, a tão ambicionada estrela do universo da gastronomia, já se encontra de armas e bagagens no Vistas. Rui, depois do seu restaurante Bon Bon, no Carvoeiro, onde apontou à Estrela, e do Quorum, em Lisboa, ruma de novo a sul, com a sua cozinha plena de técnica francesa, mas com os pés bem assentes no produto nacional.
Silvestre vai encontrar neste Vistas, que visitámos, ainda, sob a égide de Albano Lourenço, uma figura de carácter, entusiasmo e empenho. A cozinha de Silvestre vai ligar à mesa, com uma outra carta, a de vinhos, esta liderada por um outro algarvio de raiz, Nuno Pires.
Nuno, folha académica preenchida na Escola de Hotelaria e Turismo de Faro, é o sommelier do Vistas. É, também, a dois tempos, um genuíno entusiasta do mundo dos vinhos e, chamemos-lhe deste modo, um psicólogo, se para ele olharmos como bom entendedor (que o é) do perfil de gosto daqueles que se sentam à mesa do restaurante.
Aqui, numa refeição a seis momentos, Nuno Pires tem a oportunidade de nos propor um périplo pela sua “mais do que adorada garrafeira”. Há que descer um piso, desde a iluminada sala e varanda deste Vistas, casa de amplo horizonte sobre o Barrocal algarvio e para os 40 hectares do premiado campo de golfe da unidade, desenhado por Jack Nicklaus e considerado um dos melhores do mundo.
É de elevador que baixamos à porta do “salão dourado” do sommelier.
Diríamos que este nosso anfitrião ao universo dos vinhos com assinatura Vistas, entra, aqui, no seu País das Maravilhas. Neste caso, numa história não escrita pelo novelista britânico, Lewis Carroll, antes por um também narrador nato e que conta no seu currículo alguns anos de labor vínico fora de portas, no Dubai, na Península Arábica, e em Barcelona, na vizinha Espanha. Nuno guarda em poucos metros quadrados, mais de 320 referências vínicas, representando cerca de 150 castas. Um “tesouro”, como se lhe refere. O sommelier sublinha a total liberdade para adquirir os vinhos que constroem a identidade da carta do Vistas.
É dentro de uma caixa de boa feição que Nuno Pires deixa repousar a sua “menina”, como lhe chama ternamente. Trata-se de uma garrafa de Czar 2009 (do produtor Fortunato Garcia), um néctar nascido em pleno Atlântico, na açoriana ilha do Pico. “Só existem 75 garrafas destas no Mundo”. Um vinho parido nos solos de lava, “um fenómeno da natureza”, rebento da humidade insular, da temperatura quase sempre constante, dos ventos marítimos, da proximidade do mar. De olhos colados à garrafa, Nuno enfatiza, “falta-nos memória coletiva. Há que trazer para a mesa vinhos emblemáticos, como este. Antes dos vinhos da Madeira e do Porto serem fortificados tínhamos o Czar. Assim se chama porque foi encontrado algum vinho deste nas caves de Nicolau II, o último imperador da Rússia”. Um licoroso pujante, com 18 a 19 graus de teor alcoólico.
Há entusiasmo na voz de Nuno na descrição do seu Czar. Como também o há na resposta pronta, na sua toada algarvia, face à pergunta: “Qual o melhor vinho que alguma vez provou?”. “Um Penfolds Grange de 1987, um vinho australiano que degustei no Chile. Parecia que tinha sido feito ontem”, enfatiza o nosso interlocutor.
É com esta preâmbulo que reconhecemos a matriz de Nuno Pires: ocupado, ou melhor, preocupado em manter a nossa identidade vínica, em resgatar do esquecimento referências que fizeram a nossa história, reabilitar outras e, transversal a tudo isto, rotulá-las com paixão.
Um homem que no decurso do trio de horas de conversa assume, sem rodeios, opiniões. Como esta: “somos mestres mundiais do blend de castas. Devíamos revelar, sem rodeios, as castas ´escondidas` nos nossos vinhos”.
E, desta forma, abre um jantar de memórias ainda ao sabor da mesa do conimbricense Albano Lourenço.
Uma mesa que inaugura com um cestinho com seleção de pães, de azeitona, de passas, de alfarroba, uma gulodice de boa fermentação a pedir casamento com manteiga.Arranque para dois pratos, em jeito de amouse bouche, o mesmo é dizer um prólogo para nos dispor para os comeres de resistência. No caso vertente, uma Almofadinha de borrego com massa tenra, casando com uma Cornucópia de massa de Brie com queijo de São Jorge; e uma Sopa de tomate do Algarve com ovo de codorniz. Um creme onde cabe, ainda, azeitona preta, presunto desidratado e rebentos de ervilha.
Para o emparelhamento vínico, Nuno Pires apresenta-nos o Espumante Bucellas Arinto Spécial Cuvée Bruto 2010, com degorgement em 2016. “Para mim o espumante mais elegante de Portugal. Pessoalmente, não sou grande apreciador de espumantes e este é o único vinho nesta categoria que consigo beber. Há um registo familiar que me cativa. Hoje em dia, o que se vende é o que é moda. Este é um caso diferente. No século XIX, devido ao cerco imposto pelas Invasões Francesas nas Linhas de Torres, o vinho do Douro não chegava ao sul do país. Assim ganharam relevância os vinhos de Lisboa. O português tem dificuldade com a secura. Precisa de açúcar”.
Segundo momento com a mesa do chefe Albano Lourenço. Um carabineiro acompanhado de tomate, baunilha e couve-flor.
Nuno Pires seleciona para esta mesa, um Madeira Terrantez 2015. “Esteve esquecido no continente durante algum tempo”. Trata-se de uma casta branca, uma das mais nobres do vinho da Madeira, a par da Malvasia. Uma casta menos cultivada e, como tal, mais valorizada e capaz de nos entregar alguns dos melhores vinhos da Madeira. “Por vezes, ao envelhecer, devolve-nos um travo a fruta cozida. Um vinho muito mineral”, sublinha o sommelier.
Prato de marisco. Ou melhor, um enlace de Lourenço entre a terra e o mar, com uma Sopa de morango onde cabe a ostra de Cacela.
Nuno Pires surpreende uma vez mais. À mesa apresenta um Ninfa da Teresa 2014 (Sociedade Agrícola João Teodósio Matos & Filhos), um néctar de casta Maria Gomes, “muito sui generis. Faz-me lembrar o Malvasia de Colares. Há salinidade e, considero, que as pessoas em Portugal deixaram de apreciar vinhos com este sabor salgado. Toda a gente fala dos vinhos de regiões mediterrânicas como a Córsega e Sardenha e esquecemos os nossos atlânticos. Esta é uma pequena dedicatória que deixo a quem fazia e faz vinhos junto ao litoral”.
Vez à carne, concretamente um Black Angus na companhia de uma batata violeta e molho de zimbro.
Proposta cárnica a casar com “um tinto da minha região favorita, a Beira Interior. Vamos beber um fóssil vivo e que nos remete para as origens do cultivo do vinho e sua casta original, a Vitis sylvestris. A Marufo é uma dessas castas. Tem 60 mil anos. Temos de proteger este património urgentemente, porque não vemos a Marufo nas garrafeiras e tem sido desvalorizada”.
“Só foram feitas 840 garrafas deste Vinha Velha 2013. Trata-se de uma carolice do produtor Jorge Roda, da Quinta da Caldeirinha, de Figueira de Castelo Rodrigo. Veio entregar-me pessoalmente este vinho aqui ao Algarve. Trata-se de um vinho elegante, mas rústico. Bom volume de boca, arredondado”.
Na sobremesa, repousa agora sobre a mesa um Leite creme de café com gelado de Queijo da Serra.
Sobremesa em harmonia com um Carcavelos Quinta dos Pesos 1989. Um histórico, produzido pelo Marquês de Pombal na quinta que detinha em Oeiras. “As últimas seis garrafas deste de 1989 vieram para aqui. Uma referência de vinhas velhas que casa as castas Galego Dourado, Boal, Ratinho e Arinto. Para mim, o melhor vinho de Portugal”, enfatiza Nuno, substanciando: “Se o Douro tivesse sucumbido à Filoxera no século XIX, este teria sido o vinho que o iria substituir. Um vinho que marca a distinção”.
No que respeita a prova, percebemos um vinho muito delicado, ligeiro fruto seco, boca elegante e seca. Um final longo e macio.
Nuno Pires não quer fechar a refeição sem a presença de um extra. Um representante de terras nipónicas. Dos meandros da sua garrafeira, o sommelier do Vistas ´solta` um whisky japonês. Um Suntory Yamazaki 12 anos, com zeste de laranja. Uma casa que data dos anos de 1920 e que detém atualmente a maior parcela do mercado de single malts no Japão. “Escolhi este whisky pela presença cítrica. Não esqueçamos que foram os Jesuítas portugueses que trouxeram a laranja deste a Ásia para a Europa”.
Como se usa dizer, Nuno “não dá ponto sem nó”, nas ligações vínicas que engendra. De um longínquo whisky do País do Sol Nascente, constrói a ponte com a nossa identidade e história. E isto é também provar um vinho.
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